sexta-feira, 29 de abril de 2011

Estatuetas de Sto. António de Vale da Piedade no Brasil

Mais uma vez do Brasil, chegam reacções interessantes aos posts sobre as Fábricas de faiança portuguesa, demonstrando-nos que aquele país sul-americano sempre foi um bom mercado para as loiças, azulejos e artigos decorativos portugueses, ao longo de todo o século XIX.

Estas reacções mostram também, a nós os portugueses, que existe uma ligação muito forte ao Brasil, apesar de nos últimos tempos termos feito por esquece-la um pouco, tão entusiasmados que andámos com o facto de pertencermos à União Europeia, que é o clube privado dos países dos ricos. Desculpem-me o tom moralista, mas a crise económica torna-me sentencioso, característica que evito assumir normalmente.



Um amigo nosso do Brasil, o João Gimenez , de Botucatu, no Estado de S. Paulo, enviou-me a imagens de duas estatuetas em faiança, de Sto. António de Vale da Piedade, localizadas na sede da fazenda do Conde de Serra Negra.

São duas figuras femininas que representam dois continentes, a África e a Ásia. As marcas são idênticas as apresentadas no post de 10 de Janeiro, e terão sido por isso executadas entre 1861 e 1886, período em que a fábrica esteve sob direcção de João do Rio e em que se introduziram modificações, que levaram à produção de peças de ornamentação em relevo para interiores e exteriores.

Estas duas estatuetas devem ter estado em tempos que já lá vão acompanhadas de pelo menos outro par, representando a América e a Europa, como era comum na época.

No século XIX, as famílias burguesas ou enobrecidas há pouco, os parvenus, como lhe chamavam os franceses, copiavam as estatuetas, urnas e vasos dos palácios aristocráticos, só que usando faiança ou terracota, que eram produzidas em série e portanto muito mais acessíveis economicamente.
Os temas também eram semelhantes aos que decoravam as grandes casas fidalgas. Eram comuns as figuras femininas representando os 4 continentes, como aqui em Botucatu, as 4 estações do ano, ou as virtudes teologais, fé, caridade e a esperança. Também estavam na moda alegorias femininas que simbolizavam as actividades económicas, como o comércio, a indústria, a agricultura, a pesca ou as artes ou ainda musas como a comédia ou a tragédia, se o edifício em causa fosse um teatro.


Ao João Gimenez, de Botucatu, temos que agradecer o envio das imagens e além disso, graças a ele ficámos também a saber mais sobre a produção de Sto. António de Vale da Piedade e iremos certamente conseguir identificar a partir deste momento estatuetas, que enfeitam as casas e palacetes burgueses das cidades portuguesas e que tanta curiosidade tem despertado nesta comunidade de bloguers.


quinta-feira, 28 de abril de 2011

Incursões de Paiva Couceiro: alguns episódios ocorridos no Solar dos Montalvões

Em Outeiro Seco, no Solar dos Montalvões, ainda há vestígios de um antigo quarto secreto, que durante muitos anos, alimentou de fantasias a minha imaginação de menino e depois de jovem. Na realidade, como vim a saber mais tarde, já a casa era uma ruína com os tectos caídos a desvendar todos os segredos, esse quarto, era uma espécie a espécie de divisão interior, cuja porta se podia tapar com um armário e que normalmente servia de arrumos, junto à casa de banho.
Hoje, escreverei um pouco sobre a história que está associada a esse quarto secreto, que é não só um episódio familiar antigo dos Montalvões, mas também faz parte de um conjunto de acontecimentos da história da região de Chaves e de Portugal e que começa logo a seguir á implantação da República, em 1910, quando os monárquicos levaram a cabo três tentativas para derrubar o regime, todas elas ocorridas no Norte do País e que afectaram a vida das terras da raia.

Henrique Paiva Couceiro

Essas três insurreições tiveram todas como responsável Henrique Paiva Couceiro (1861-1944), um militar, que se tinha distinguido em campanhas pacificadoras em Angola e Moçambique e idealista ao ponto, de levar a cabo duas tentativas para invadir Portugal a partir da Galiza, sem grande apoio do rei D. Manuel II, sem o suporte do Governo espanhol, que não estava interessado em chatices com o País Vizinho, com poucas armas e homens sem treino militar. No entanto, apesar de todas essas limitações, fez correr tinta e mais tinta nos jornais, sobressaltou as populações fronteiriças e provocou movimentações de exércitos de um lado para o outro. Tentarei aqui descrever como é que esses acontecimentos se relacionaram com a vida da família Montalvão e de Outeiro Seco.

Diz-se muitas vezes, que a República foi implantada em Lisboa através de uma revolução e no resto do País por telégrafo, isto quer dizer, que na Província os ideais republicanos tinham uma expressão reduzida e que para a maioria da população, cerca de 80 a 90 por cento de analfabetos, república ou monarquia eram conceitos abstractos, aos quais eram quase indiferentes. Claro existia a fidalguia local que por tradição era monárquica e os sacerdotes, que também defendiam a aliança entre o trono e o altar. Estes dois grupos tinham tendência a ser os líderes das comunidades rurais onde estavam inseridos e reagiram à república, embora sem uma convicção por ai além. Nestas categorias, incluíam-se os montalvões e o Padre Rodrigues Liberal Sampaio, unido a essa família por laços de sangue.

Assim, logo nos finais de 1910, à semelhança do que aconteceu um pouco por todo o Norte de Portugal, nalgumas aldeias do Concelho de Chaves, como Vilela Seca, Valdanta, Vilar de Nantes houve manifestações de hostilidade para com o regime. Em Outeiro Seco, os partidários da república, que tentaram fazer uma sessão de propaganda, foram recebidos por uma espécie de jacquerie ameaçadora, armada de facas, foices e estadulhos. Uma coluna militar foi chamada a intervir para dominar a população e também para prender o meu trisavô, o Padre Rodrigues Liberal Sampaio, que segundo constou na altura, teria sido o instigador do motim. Esta versão consta da obra A República em Chaves / Júlio M. Machado. Chaves: Grupo Cultural Aquae Flaviae, 1998 e é confirmada pela tradição familiar, que data este acontecimento, logo em 1910, por alturas da matança do porco, ritual que ocorre por volta de Dezembro.

Liberal Sampaio
Segundo ainda a tradição familiar, o meu trisavô ter-se-á refugiado então num quarto secreto existente no Solar e aí manteve-se durante uma semana, período durante o qual, a aldeia de Outeiro Seco foi ocupada pela coluna militar, mantendo-se aboletada, o que quer dizer, que a população local teve que prover ao sustento da tropa.
O chamado quarto secreto é o nº 34 da planta

Ao fim desse tempo, a força militar finalmente abandonou Outeiro Seco, e o meu trisavô abandonou o seu quarto secreto e fugiu para a Espanha, que se encontra a meia dúzia de kms dali e ter-se-á mantido cerca de um ano ou mais na povoação galega de Feces de Abajo, mesmo na raia. Os dados são incertos.

Estas sublevações de aldeias o e clima de suspeição pioraram por toda a região transmontana, quando Paiva Couceiro saiu do Pais depois de Maio de 1911, em direcção à Galiza, ao que parece com claras intenções de reunir exército, entrar em Portugal pelo Norte, tradicionalmente monárquico e formar um cortejo triunfal até Lisboa. Talvez baseado nestas notícias de motins monárquicos em comunidades rurais do Norte, Paiva Couceiro, tivesse imaginado, que à medida que entrasse em Portugal, a população espontaneamente daria vivas a el-rei, expulsasse os caciques republicanos e num cortejo triunfal, marchariam juntos sobre a jacobina Lisboa.

Os boatos sobre este exército a formar-se na Galiza criaram um clima de nervosismo em Portugal, movimentaram-se tropas, prenderam-se activistas monárquicos um pouco por todo o lado e é natural, que o meu trisavô tivesse permanecido prudentemente em Espanha. Não sabemos é se manteve contacto com os apaniguados de Paiva Couceiro, os paivantes como eram conhecidos. Mas é natural que sim, pois uma grande parte deles estavam estacionados em Verin, a poucos kms de Feces de Abajo. Aliás, muitos padres faziam parte do exército dos Paivantes.

No entanto, depois da sua fuga, teve oportunidade de escrever dois artigos para jornais portugueses, explicando os motins de Outeiro Seco: A Folha, jornal de Viseu, a 26 de Fevereiro de 1911; e o Concelho de Chaves, jornal republicano, mas dirigido pelo irmão da nora, Luís Alves, a 18 de Maio de 1911. Portanto, a liberdade de imprensa continuava a funcionar, bem como as facilidades proporcionadas pelas relações familiares.

Na Galiza, os paivantes tiveram sérias dificuldades em organizarem-se. As autoridades espanholas não os deixavam reunir na mesma cidade, não os autorizavam a realizar exercícios militares conjuntos e faziam-lhes ainda grandes apreensões de armas. Eram espiados pelos republicanos espanhóis e os próprios paivantes careciam de um perfil adequado à missão de guerrilha revolucionária. Muitos deles pertenciam as melhores famílias do Reino, com apelidos e títulos do mais sonante que havia e rapidamente ficaram conhecidos como os pinocas, pelos paivantes menos afortunados. Esta gente tinha as suas reuniões secretas nos fumiers dos hotéis em Espanha, perante toda a gente e os seus negócios de tráfico de armas eram rapidamente descobertos e os carregamentos apreendidos. 

Vinhais reocupada pelas tropas republicanas. A casa da rua que sobe, com um pequeno balcão, pertencia à minha família materna. Fotos da Ilustração Portuguesa


Não obstante Paiva Couceiro, conseguiu reunir esta tropa irregular e com menos armas que pessoas, entraram no País pelo Concelho de Bragança, pela Cova da Lua, na madrugada de 5 de Outubro, numa zona que já é gelada nesse final do ano. Percorrem esse caminho no meio de serras altíssimas, mal calçados, alguns de sapatos de verniz, com frio e fome e hesitantes.

Iº incursão de Paiva Couceiro
Pensam atacar Bragança, mas desistem. Marcham então sobre Vinhais, uma vila esquecida na estrada entre Chaves e Bragança e conquistam-na às 4 horas da manhã, acordando os seus habitantes pouco habituados a intranquilidades. 

Outro aspecto de Vinhais em 1911
Hasteiam a bandeira e Vinhais será novamente monárquica, mas só por umas breves horas. Receiam um ataque republicano e no mesmo dia, abandonam Vinhais. Recuam aos trambolhões ao longo da fronteira luso-espanhola até quase ao Gerês, entrando e saindo, em Portugal e com e exército republicano e os voluntários da Carbonária em sua perseguição. Só abandonam definitivamente Portugal a 20 de Outubro de 1911.
A minha avó materna numa foto tirada poucos anos antes das incursões monárquicas

A minha avó materna, Adelaide Maria (4-6-1894), natural de Vinhais terá assistido a estes acontecimentos e deles terá guardado uma memória precisa, pois já tinha cumprido 15 anos. Terá talvez espreitado da janela a chegada dos paivantes, mas apesar de os pais serem monárquicos, naturalmente não a autorizaram ir para rua, pois naquele tempo as meninas só saíam para ir à Missa. Infelizmente, isto é uma mera suposição, porque as filhas da Adelaide Maria não registaram nada do que a mãe lhes terá dito sobre estes acontecimentos, ou melhor, talvez nós tivéssemos deixado partir as filhas sem as interrogar sobre a incursão de Paiva Couceiro de 1911.

Vinhais em 1911. Foto Ilustração Portuguesa

Entretanto, não sei o que se passou neste tempo com o meu trisavô. Talvez ainda permanecesse em Feces. A Família conta que um guarda português de passeio a Espanha, reconhecendo-o, terá tentado agarra-lo e que o Liberal Sampaio escapou por pouco. Seja como for, terá regressado a Portugal, aproveitando algum indulto, pois os governos da república sucediam-se a uma velocidade alucinante.

Mas, Paiva Couceiro, o eterno idealista não desistiu e voltou a reunir tropas e a congregar apoios, mas mais uma vez o governo espanhol dificultava-lhe os movimentos. O Rei D. Manuel II, exilado em Londres, continuou de má vontade, porque Paiva Couceiro se entendeu com os pretendentes miguelistas. O que é certo, é que os Paivantes, em Julho de 1912, lançam-se outra vez sobre Portugal, sobre a região de Chaves, cujo comprido vale é um dos caminhos naturais para os invasores entrarem em Portugal. Pensou-se que Paiva Couceiro pretendeu seguir o exemplo do general Soult, que conduziu segunda invasão francesa através do vale de Chaves.
2ªa incursão de Paiva Couceiro, 1912. Mapa extraído da obra de Pulido Valente
Porém, nada nestas incursões parece seguir uma lógica. A primeira coluna, comandada por Paiva Couceiro entra por Sendim e dirige-se a Montalegre, uma terra sem grande importância estratégica. Mudam de ideias e de direcção e saltam sobre Chaves, que estava mais menos desprotegida, pois a guarnição local tinha partido em direcção a Montalegre para dar caça aos Paivantes.

A cidade de Chaves é atacada, mas surpreendemente, a guarnição oferece uma terrível resistência. Há muitos tiros e povoação sofre o fogo de um canhão dos monárquicos. Os civis na cidade mobilizam-se para apoiar os soldados e há mortos e feridos de ambos os lados.

Ao mesmo tempo, uma segunda coluna de Paivantes atravessa a fronteira em Vila Verde de Raia comandada pelo Capitão Mário Sousa Dias e dirige-se também para a Chaves. Mas, o seu avanço é confuso e um dos seus líderes, D. João Almeida Correia de Sá (Lavradio), que ouviu dizer que Paiva couceiro está prestes a entrar em Chaves, adianta-se às tropas para estar presente na entrada triunfal na praça-forte transmontana. É capturado por dois simples soldados republicanos.
O orgulhoso D. João deAlmeida preso por soldados republicanos- Foto Ilustração Portuguesa

Os sitiados republicanos conseguem aguentar as suas posições, até ao momento do regresso da guarnição que tinha ido perseguir os monárquicos a Montalegre. É então a grande debandada dos paivantes. Fogem desordenadamente. Muitos partem em direcção a Espanha por Outeiro Seco com os republicanos no seu encalço. Uns quantos deles terão passado pela vinha anexa ao Solar dos Montalvões, onde abandonaram armas, cantis e munições. O meu pai ainda se lembra de ver no Solar uma velha espingarda Winchester abandonada pelos Paivantes. Existia também no museu das curiosidades da casa uma granada disparada pela artilharia em Chaves, que nunca explodiu. Nessa perseguição que passou pelas terras do Solar, foi também morto um dos monárquicos.

Não sei a família ajudou estes fugitivos. Sou levado a crer que lhes deu algum amparo, pois, no final das hostilidades e por um período de tempo muito longo, a mãe do rebelde monárquico, vinha todos os anos rezar junto à árvore onde o filho foi morto. Tentei nos livros descobrir quem foi esse jovem ou esse homem, mas não consegui perceber. Talvez alguém lendo as linhas deste blog, se recorde de um antepassado seu, que tenha morrido na propriedade dos Montalvões, em Outeiro Seco, na defesa de uma bandeira azul e branca.

Quanto ao meu trisavô, ignoro a sua participação nesta segunda incursão. Talvez ainda estivesse em Espanha ou refugiado no interior do Solar. O certo é deixa de haver registo sobre a participação da família na causa monárquica, mesmo em 1919, durante a Monarquia do Norte, em que Paiva Couceiro voltou num dos momentos mais atrapalhados e confusos da história monárquica. A família limitou-se a mostrar a sua fidelidade à causa real, mantendo a bandeira azul e branca hasteada no solar, até aos anos 30, data da visita do Presidente Carmona à casa.

Para quem gostar deste assunto recomendo a leitura do livro de Vasco Pulido Valente, Um herói português: Henrique Paiva Couceiro. - Lisboa: Aletheia editores, 2006

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Velho candeeiro a petróleo e a Rua da Conceição

Era um velho candeeiro a petróleo que tinha sido modernizado algures no tempo. Foi pintado de um tom creme meio parvo, tiraram-lhe toda a parte superior, isto é, o mecanismo onde encaixava o pavio e o balão e meteram-lhe gesso para encaixar o casquilho eléctrico. Estava um lixo, mas vi nele uma possibilidade de fazer qualquer coisa engraçada.

A tinta foi toda raspada, mas como é feito em dois materiais, lata e ferro, ficou com dois tons muito diferentes. Então, o Manel como é um mestre nestas artes, deu-lhe um polimento com uma cera, que uniformizou o tom dos materiais e uma patine agradável.

Comprei-lhe um abat-jour vermelho na Rua de S. Domingos, onde há duas das melhores casas de Lisboa de candeeiros e acessórios e depois dirigi-me à Rua da Conceição, para lhe arranjar uma passamanaria adequada. O Manel costuma dizer que se não existir na Rua da Conceição o artigo de passamanaria que desejamos, então só mesmo em Paris, de tal forma é aquela rua bem abastecida. De facto, é curioso como naquele arruamento da Baixa sobreviveu a organização corporativa medieval, em que os comerciantes ou artificies do mesmo ofício se concentravam todos na mesma artéria., Mesmo nos dias de hoje, em que o comércio da baixa Lisboeta está todo a fechar, as retrosarias da Rua da Conceição resistem corajosamente, a vender os seus botões, galões, franjas, missangas e lantejoulas. A freguesia também é do mais curioso que há. Por lá se encontram velhas senhoras, que ainda mandam fazer roupa á modista, estilistas e estudantes de moda com ar destrambelhado, tias decoradoras de interiores, figurinistas, que se abastecem para fazer roupas para as marchas dos santos populares e claro, muito turistas e os amantes das velharias como eu ou Manel.

A entrada para o criptopórtico romano


A Rua da Conceição não é só curiosa pelas suas lojas cheias de pequenas miudezas de seda. Por debaixo do solo, existem uma série de galerias subterrâneas, quase sempre inundadas, que só abrem umas quantas vezes por ano. São conhecidas como as termas romanas pelo grande público, mas na realidade são as estruturas de edifícios comerciais romanos há muito tombados. Como o terreno era instável e alagadiço os romanos construíram uma plataforma nivelada, sobre a qual foram erguidos diversos edifícios. Esta estrutura é designada pelos estudiosos da antiguidade clássica, como criptopórtico.

O interior do criptpórtico
Mas voltando à superfície da Rua da Conceição, comprei numa das retrosarias este galão dourado com as borlas ou pincéis, que depois de aplicado, emprestou ao candeeiro um certo ar do decadente estilo Napoleão III, que eu adoro nos candeeiros.

Foi a prenda de anos para a minha sobrinha mais velha, que agora é também minha seguidora neste blog.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Muros e arcos: Travessa do José

Gosto de ser um turista na minha própria cidade e meter-me por ruelas e becos que não conheço. Há uns dias, depois de sair do emprego, enveredei por uma ruazinha entre a Embaixada do Luxemburgo e o antigo Instituto José de Figueiredo e subitamente vi-me numa azinhaga rodeada de altos muros, com o reboco a cair, atravessada por arcos e senti-me transportado ao uma Lisboa do Século XVIII, ainda meia rural, com reminiscências óbvias de um passado islâmico.

É um daqueles sítios, cheios de tristeza, porque estão abandonados e sujos e provavelmente só ainda não foi destruído, porque estará na zona de protecção do Museu Nacional de Arte Antiga. No entanto esta sensação de abandono não está isenta de uma certa poesia. Se a rua estivesse recuperada e cheia de restaurantes para turistas e lojas de designers talvez não provocasse uma impressão tão forte.

Pelo que li este tipo de arquitectura em terraços, que vemos nestas fotografias, é muito característica do urbanismo daquela zona da cidade, o antigo bairro do Mocambo. Como há um declive muito grande entre a colina e a área ribeirinha, foi-se construindo em terraços e socalcos e o resultado acabou por tornar-se muito interessante esteticamente.

Num passado remoto, este Mocambo era um bairro fora de portas onde viviam os negros de Lisboa e os autores dividem-se quanto às origens do nome. Uns dizem que a palavra derivou de um termo africano, para designar um povoamento de negros refugiados na floresta, com uma raiz próxima do termo Quilombo, usado no Brasil. Outros afirmam que é um nome árabe, que etimologicamente quer dizer lugar sagrado.
O nome Mocambo desapareceu da terminologia oficial logo no início do Século XIX, mas, quando desci travessa que se dá pelo simples nome de José, lembrei-me desses negros que aqui viveram. Talvez José fosse um velho escravo que ainda sabia a antiga língua do país natal e que prometia aos companheiros da mesma condição o regresso a África.

domingo, 10 de abril de 2011

O estilo Segundo Império em Portugal e D. Maria Pia de Sabóia

Interior da carruagem oferecida a D. Maria pia por ocasião do seu casamento com o Rei D. Luís (Foto Mário Novais)
No meu anterior post sobre o estilo Segundo Império ou Napoleão III, referi o Palácio Nacional da Ajuda como um bom exemplo em Portugal, de interiores decorados nesse estilo pomposo, mas ao mesmo tempo confortável e sedutor. A esse propósito, a nossa seguidora misteriosa chamou-me a atenção para o facto de Maria Pia de Sabóia ser responsável por grande parte da decoração do interior do Palácio da Ajuda. De facto, a Augusta Senhora chegou a Portugal em 1862 para casar com o Rei de Portugal, D. Luís, em plena altura do reinado de Napoleão III em França e com ela vieram as mais recentes modas da Europa rica e civilizada.

O exterior da Carruagem, Foto de Mário Novais
O dernier cri chegou logo com a prenda, que o seu pai, o rei da Itália, Vítor Manuel, lhe deu por ocasião do seu casamento, uma carruagem luxuosa, decorada no mais puro estilo Napoleão III, com sofás cheios de franjas, passamanarias e capitonnés, que são aquela espécie de botõezinhos, que fazem um sulco na superfície do estofo. A carruagem ainda existe, pertence ao Museu da CP e creio eu que se encontra exposta no Carregado.
O interior pomposo mas confortável e sedutor da carruagem

Rapidamente, a Rainha, que era uma mulher gastadora (dizia muitas vezes Quem quer rainhas paga-as!), decorou o Palácio da Ajuda segundo a nova moda de França e um dos pormenores mais deliciosos de todo o Palácio, que nem sempre as guias mostram aos visitantes é o elevador privado da rainha. As fotografias que vos mostro de seguida foram-me enviadas pela seguidora misteriosa

O elevador da Rainha no Palácio Nacional da Ajuda
É um compartimento delicioso, apainelado, com espelhos e com pequenos sofás inevitavelmente capitonnés. Todo ele é um pequeno luxo, que nos ajuda a distrair destes tempos de chumbo que se avizinham.

Outro aspecto do Elevador da Rainha d. Maria Pia

A simplicidade da Faiança do Juncal


A nossa primeira seguidora misteriosa resolveu presentear-nos com 3 peças do Juncal e produzidas no período mais original desta fábrica, que estava localizada no Juncal, no Concelho de Porto de Mós, que para quem não sabe, fica perto de Alcobaça e Leiria.

Esta fábrica foi fundada em 1770, portanto em pleno consulado pombalino e como vimos no post anterior, gozou de um período de protecção alfandegária e isenção de taxas à exportação. As primeiras produções do Juncal eram muito semelhantes as fábricas suas congéneres do resto do país. Usavam formas emprestadas da ourivesaria e decoravam as peças à moda de Ruão.

Aqui convém abrir um parêntesis, para explicar que é um exagero chamar fábrica ao Juncal. Terá sido mais uma manufactura ou uma oficina. Nos vários inquéritos oficias que se fizeram a este centro, o número de empregados variava entre 15 e 7 pessoas.

Segundo Jorge Pereira Sampaio, na obra A faiança Portuguesa: séculos XVIII-XIX. Lisboa: ACD Editores, 2009, o segundo período da fábrica, começou em 1824, com a vinda de um ceramista de Coimbra, um tal José Fernandes da Fonseca e é o período mais original do Juncal. Integram-se nele o galheteiro e a travessa da nossa primeira seguidora misteriosa.

Os motivos decorativos deste período são conhecidos pelos nomes de Avencas e Fogos-de-artifício.

De facto, estas decorações evocam de imediato as avencas e aqueles foguetes, que deitam lágrimas luminosas, mas na realidade, segundo José Queiroz deverão derivar de algum motivo oriental. Independentemente da fonte de inspiração, estes motivos muito simples são muito sedutores.

A terrina da nossa amável seguidora corresponde já a uma fase mais tardia do Juncal. obra A faiança Portuguesa: séculos XVIII-XIX. Lisboa: ACD Editores, 2009 reproduz um exemplar muito semelhante datado do 3º quartel do século XIX. Corresponde a fase em que as louças inglesas entraram em força em Portugal, enchendo os lares da burguesia abastada e os centros de produtores de faiança, começam a dirigir as suas produções para um público menos endinheirado. A decoração perdeu qualidade, mas conserva aquele encanto singelo do Juncal.

Terrina da Colecção de Jorge Pereira Sampaio

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Cafeteira em faiança de Viana (1790 / 1820)

O Manel concordou em mostrar no blog esta sua Cafeteira em faiança de Viana, datada dos finais do século XVIII, princípios do século XIX, que é um óptimo pretexto para arrumar um pouco mais as ideias sobre as fábricas de cerâmica daquele período.

Tudo começa com o Marquês de Pombal, quem em 1770, faz publicar um Alvará régio, que estabelece barreiras alfandegárias às importações de cerâmica do estrangeiro, excepto porcelana chinesa trazida em barcos portugueses. Esta medida favorece a eclosão ou o desenvolvimento de uma série de manufacturas de cerâmica, como Miragaia, Massarelos, Juncal, Viana, Rato, Estremoz, Sto António de Vale da Piedade e etc. Esta medida Pombalina isenta de direitos as exportações portuguesas e as fábricas nacionais conseguem bons mercados no Brasil, conforme referi em posts anteriores.

A fábrica de Viana, ou melhor de Darque está neste grupo de manufacturas que beneficiaram deste diploma legal de Pombal. Foi fundada em 1774 e a sua produção divide-se em três períodos:

1º Período de 1774 até 1790-1795, a produção apresenta uma grande influência da Louça de Ruão

Considerada a época de ouro, o 2º Período, entre  1790 a 1820, foi muito produtivo. Dos fornos da fábrica saiu uma grande variedade de peças, com uma decoração relativamente original face à restante produção portuguesa, caracterizada por motivos florais alegres e um esmalte impecável.

A Cafeteira do Manel data desta época, 1790 a 1820, em que na fábrica de Darque experimentaram o uso de esmaltes coloridos, como o amarelo, o verde e este azul safra.

Marca característica do 2º período de Viana

O Artur Sandão na sua obra a Faiança portuguesa, reproduziu um serviço de chá de Viana exactamente com a decoração desta cafeteira. Dir-se-ia quase que falta a cafeteira do Manel na fotografia do serviço.


Apesar de original, Viana não era insensível às modas e este azul safra parece ter sido apreciado nas fábricas nortenhas. Miragaia usou muito este tom de azul. Descobri também no catálogo da Exposição: Fabrica de Louça de Massarelos- Lisboa: IPM, 1998, que na mesma época, Massarelos também fez louça em azul safra, conforme se pode ver no exemplar do Museu Nacional de Arte Antiga, mostrado  em baixo.
Prato Miragaia do Museu Nacional de Soares dos Reis, inv 48 cer
Bilha do Museu Nacional de Arte Antiga, inv 2450

O 3º Período vai de 1820 a 1855, ano em que a fábrica fecha as portas. A produção é estampilhada para concorrer com a faiança inglesa.

Precisamente em meados do século XIX fecham muitas das fábricas que floresceram no período pombalino. Terá sido porque as fronteiras abriram-se à entrada em massa da faiança inglesa, de muito boa qualidade e bonita ou talvez porque a Vista Alegre começou a fabricar porcelana mais acessível, o que é certo, é que destas antigas fábricas, só Massarelos parece ter sido a única a sobreviver aos novos tempos.

Quem quiser saber mais poderá consultar o livrinho Exposição de cerâmica das fábricas do distrito: duzentos anos de labor artístico. – Câmara Municipal de Viana do Castelo, 1970 ou ir ao Museu Municipal de Viana do Castelo


segunda-feira, 4 de abril de 2011

Peregrinações pelo alto dos prédios Lisboetas


Venho-vos dar conta de mais algumas peregrinações, pelos cimos e beirados dos prédios, que fiz por esta cidade de Lisboa. Faltou-me a companhia que teve Norberto de Araújo durante suas Peregrinações, mas os meus seguidores irão certamente desempenhar com boa vontade o papel do sobrinho Dilecto e ler aquilo que escrevo.

Comecei a descer a Calçada da Ajuda a fotografar urnas, vasos, pinhas e estatuetas alegóricas. Encontrei tantas que fui forçado a desistir, pois de outra forma não chegaria a minha casa, a tempo de fazer o jantar.

Descobri um par de urnas com uma grega, que não consigo identificar a fábrica, que são fantásticas.

Depois outro par de urnas, tendo por cenário um prédio da primeira metade do século XIX, revestido a azulejos e um guindaste ameaçador lá ao fundo, que nos recorda que as demolições ainda indiscriminadas prosseguem autorizadas pela CML.



Encontrei ainda uma espécie de flamula em faiança e uma pinha muito colorida, com um certo ar de ser alguma produção das Caldas.


Uns números mais abaixo, há uma antiga casa de espectáculos que poucos conhecem o teatro Luís de Camões, fundado em 1880.

No alto, uma de cada lado, há duas estatuetas, representando as musas da comédia e da tragédia, Thalia e Melpômene, respectivamente.

A iconografia das duas é muito semelhante. Ambas apresentam uma máscara na mão. Julgo que a imagem mostrada será a Thalia, cujo nome quer dizer a que faz florescer, pois de facto parece ter uma flor a desabrochar na mão. A fotografia da outra musa ficou agendada para as calendas, pois tive que ir apanhar o comboio para a Baixa.

No dia seguinte, num pequeno largo ao pé do jardim das Amoreiras rematei estas peregrinações com a descoberta de outra urna, decorada com folhas de videira, cachos de uva e folhas de acanto, numa decoração a aludir à antiguidade clássica. E com ela me despeço dos meus dilectos seguidores.