quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Serviço de chá de porcelana francesa da segunda metade do século XIX


Recentemente o meu amigo Manel adquiriu um serviço de chá, com uma porcelana muito fininha e uma decoração muito requintada, que apesar de não estar marcado acreditamos ser de porcelana francesa, provavelmente do período Segundo Império (1852-1870).

 Claro, quando as peças não estão marcadas é sempre um risco fazer atribuições, pois a segunda metade do XIX, é um período de plena revolução industrial, em que há já um intenso comércio mundial e as ideias, as formas e as técnicas circulam rapidamente de país para país. Os russos, os portugueses ou os ingleses copiam a porcelana francesa, os franceses não são indiferentes à cerâmica inglesa e toda a gente se inspira na China e no Oriente. Por consequência, uma peça de porcelana que nos parece francesa poderá ser apenas um reflexo do brilho artístico de Paris na produção de uma fábrica em Viena, Bruxelas ou Praga.

No entanto, fiz algumas pesquisas na net e de facto encontrei em alguns sites de antiquários franceses uns quantos serviços, cujas peças tem formatos semelhantes, embora com decorações diferentes e são dados como porcelana francesa do Segundo Império.
 
 
Na obra La porcelaine européene au XIX siècle / Antoinette Fay-Hallé, Barbara Mundt. - Fribourg : Office du Livre, SA., 1983 encontrei reproduzido outro serviço com formas idênticas a este, produzido pela manufactura parisiense Clauss, por volta de 1860. Aliás, um dos traços mais característicos de todas estas peças são as pegas, que formam como que umas canas de bambu entrelaçadas. Esta decoração das canas de bambu inspirada na China é muito típica do chamado estilo Segundo Império ou Napoleão III (1852-1870) e foi usada não só na loiça como também no mobiliário, ou em pequenas peças decorativas como molduras.
Cadeira estilo Segundo Império, que pertenceu a Madeleine Castaing
 
Este estilo eclético do segundo Império, que misturava a China com neogótico e usava e abusava da passamaneria e dos canapés estofados em capitonée, passou entretanto de moda e durante toda a primeira metade do século XX, toda a gente o achava um horror. Nessa época, em França, as pessoas chiques e de bom gosto escolhiam para mobillar e decorar as suas casas antiguidades nos estilos Luís XIV, Luís XV ou Luís XVI. Só a partir dos anos 40, quando a decorada e antiquária francesa Madeleine Castaing (1894- 1992) abre a sua loja em Paris é que progressivamente consegue influenciar o gosto da sociedade e valorizar o século XIX. Curiosamente, uma das características do gosto quase vitoriano de Madeleine Castaing, foram as canas e os bambus, com que decorou o corredor do seu apartamento em Paris, na Rua Bonaparte.

Enfim, este post não é muito conclusivo. O serviço de chá parece ser francês e apresenta as características decorativas do estilo do segundo Império. Mesmo que não seja parisiense, o adjectivo que o melhor o define é sem dúvida o termo francês raffiné.

Alguma bibliografia:
 
La porcelaine européene au XIX siècle / Antoinette Fay-Hallé, Barbara Mundt. - Fribourg : Office du Livre, SA., 1983
 

sábado, 16 de janeiro de 2016

São Sebastião socorrido por um anjo: uma estampa flamenga do século XVII


S. Sebastianus
No meio de um molhe de registos de santinhos dos anos dos anos 40, 50 e 60 do século XX, todos vendidos a um euro cada um, descobri esta estampa colorida a aguarela, que suspeitei de imediato que fosse do século XVII. Comprei-a sem hesitar e lá levei todo contente para casa mais um S. Sebastião.

A única palavra que consegui ler da assinatura do impressor foi Merlen
Vi que tinha no canto inferior direito a assinatura do impressor, mas como estou muito pitosga e a estampa é muito pequenina não a consegui ler. Digitalizei então a imagem e ampliando-a no computador consegui identificar a última parte do nome Merlen. Fiz algumas pesquisas combinadas no Google por S. Sebatianus e Merlen, mas não obtive resultados. Como suspeitei que a estampa fosse flamenga, lembrei-me de acrescentar o típico artigo van antes do nome e procurei pela expressão Van Merlen engraving no Google imagens e imediatamente encontrei umas quantas estampas onde assinatura do impressor, que aparecia esborratada na minha gravura se lia claramente Cor. Van Merlen.

Cor. Van Merlen.
Munido destes dados, reformulei a pesquisa e descobri que o autor desta estampa foi um senhor flamengo, chamado Cornelis van Merlen, um gravador activo em Antuérpia na segunda metade do século XVII e que pertencia a uma dinastia de gravadores. Além de uma obra mais séria composta por retratos de personalidades e grandes composições religiosas, este Cornelis van Merlen dedicou-se a produzir registos de santinhos, provavelmente em grande quantidade, a julgar pelos exemplares que encontrei na net e que foram exportados para toda a Europa, inclusive Portugal. Aliás a cidade de Antuérpia é no século XVII um centro editorial próspero e florescente, cujas obras são vendidas em pelo menos todas as nações católicas, apostólicas e romanas.

S. Sebastião socorrido por um anjo. Musée de l’archerie et du Valois, Crépy-en-Valois. Obra anónima flamenga do séc. XVII, inspirada numa gravura de Paul Pontius, de Antuérpia (1603-1658), que reproduziu um quadro, hoje perdido de Gérard Seghers (1591-1651), um dos mestres do barroco, contemporâneo de Rubens.
Esta estampa representa o momento posterior à sagitação de S. Sebastião. Sagitação é um palavrão que quer dizer o acto de martirizar com setas. Não é a iconografia habitual do martírio de S. Sebastião, que normalmente é mostrado só, atado a uma árvore ou a uma coluna com o corpo flagelado por setas. Esta cena simboliza o momento, em que depois do seu martírio, a viúva Irene, juntamente com a sua serva, descobrem o corpo do jovem e extraem com precaução as setas e limpam as suas feridas. Porém, aqui, a figura de Santa Irene é substituída por um anjo, forma típica da Contra Reforma de solenizar uma cena de martírio e de transpor um plano familiar para um plano divino. Esta iconografia de S. Sebastião acompanhado de anjos é rara e foi só praticamente usada na Flandres no século XVII.

S. Sebastião de Cornelis Van Merlen
Contudo, um homem ou uma mulher devotos, que vivessem no século XVII, ao abrirem o livro piedoso onde guardariam esta estampa, não ficariam indiferentes ao corpo voluptuoso do santo, que parece mais oferecer-se de bom grado aos desejos de um anjo brincalhão, do que a sofrer as penas de um martírio.

Pela minha parte, quando olho para esta estampa, não consigo deixar de trautear there must be an angel , playing with my heart, o êxito pop de Annie Lennox


 Alguma bibliografia:


Iconographie de l'art chrétien / Louis Réau. Paris: Puf, 1958.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Castanheiros de Vinhais ou as árvores da vida

Foto Henrique Montalvão
Já há uns tempos que prometi a mim mesmo fazer um álbum de imagens dos castanheiros centenários, que abundam por todo o Concelho de Vinhais, na província de Trás-os-Montes. Desta vez encarreguei o meu filho Henrique de fazer as fotografias destas árvores, das quais é fácil encontrar nas terras frias de Vinhais espécies, com duzentos, trezentos ou quatrocentos ou até mesmo mil anos, como é o caso do célebre castanheiro da aldeia de Lagarelhos. Estes castanheiros parecem conseguir desafiar o tempo, ao contrário do que acontece connosco, a quem o tempo escorre pelas mãos sempre demasiado depressa.

Em quase todas as civilizações e culturas humanas, as árvores simbolizam a longevidade e são usadas para representar a ligação entre o céu e a terra, mas também a genealogia de uma família, em que os parentes ancestrais têm os seus nomes inscritos nas raízes e as gerações mais novas espalham-se pelas ramagens superiores.
Foto Henrique Montalvão
Creio que o meu apreço e admiração pelos castanheiros se relacionam com este significado de ligação entre o passado e o presente, entre os que morreram e os que cá estão, pois Vinhais é a terra da minha família materna e talvez o único sítio onde sinto que realmente pertenço, apesar de ter passado mais de metade da minha vida num bairro incaracterístico de Lisboa e ter nascido nos confins do antigo império colonial português. 

Quando regresso todos os anos a Vinhais e abro a casa, onde a minha mãe, os seus irmãos e os seus pais viveram e que agora está vazia e em decadência, sinto de uma forma pungente as suas ausências. Na grande mesa de jantar parecem faltar pessoas, vozes e na cozinha a lareira está apagada, pois a Ana a velha criada, morreu há muito tempo e já ninguém faz ao lume o almoço e o jantar nos potes. Nos escassos dez dias por ano que passamos naquela casa, a minha irmã e a sua filha, bem como eu e os meus filhos não conseguimos encher todas aquelas divisões, nem apagar as ausências de todos os que lá viveram há muito. É uma sensação de angústia, mas que é atenuada pelas recordações felizes das férias da infância, passadas naquela casa, pelo prazer de estar com os meus filhos e a minha irmã, bem como pelos passeios que damos todos os anos naquela paisagem extraordinária de Vinhais, em pleno Parque Natural de Montesinho.
Foto Henrique Montalvão
Uma paisagem e os sentimentos subjectivos que nos despertam são qualquer coisa difícil de descrever, sobretudo a quem falta talento literário como eu, mas a visão daqueles montes e sobretudo daqueles castanheiros centenários enchem-me a alma. Sinto nessa altura que a solidão daquelas montanhas reflecte o meu próprio isolamento e é através dos castanheiros, que se perpetua minha ligação aquela terra, ao passado, aos que partiram há muito e sobretudo à minha mãe, que já só vejo nos sonhos.