quinta-feira, 28 de julho de 2016

Uma pintura feminina: Santa Rita de Cássia


Nunca comprei pintura. Segui até esta altura da minha vida, em que estou prestes a fazer cinquenta e três anos, o conselho do meu pai de que quando não se tem meios para comprar boa pintura o melhor é decorar a casa com gravuras antigas. Com efeito, é raro ou impossível encontrar boas pinturas a um preço económico. Na sua qualidade de arte nobre, a pintura carece de mecenas ricos para se desenvolver e os preços praticados foram sempre altos. Digamos, que a boa pintura não está ao alcance de amadores de arte pobretanas.

Mas talvez por estar a trabalhar como bibliotecário num museu há cerca de seis anos ganhei algum olho clínico para identificar uma pintura antiga, mesmo quando ela se encontra no meio da habitual traquitana de uma banca de uma feira de velharias. Recentemente, na exposição sobre a Josefa de Óbidos realizada no Museu Nacional de Arte Antiga, vi uma colecção de pinturas sobre cobre daquela artista, todas de dimensões muito pequenas, que me encantaram pelo seu virtuosismo técnico. Voltei à exposição várias vezes só para admirar aquelas pinturinhas em cobre e registei-as bem na memória.
Santa Madalena de Pazzi. Josefa de Óbidos, óleo sobre cobre. Museu Nacional de Arte Antiga. inv. 208 min. foto matrizpix

Há poucas semanas, na feira de Estremoz um vendedor colocou-me nas mãos esta imagem de Santa Rita de Cássia de pequenas dimensões e mesmo sem a retirar da moldura suspeitei logo que fosse uma pintura original, um óleo sobre cobre, provavelmente antigo, do século XVIII ou talvez mesmo do XVII. O preço estava muito convidativo e quando dei por mim já estava a caminho de casa com ela debaixo do braço. Quando cheguei a casa, o Manel retirou a pintura da moldura e confirmamos os dois tratar-se de um óleo sobre cobre. Mais tarde, mostrei esta Santa Rita de Cássia aos meus colegas do Museu, que me confirmaram que será uma pintura do século XVIII ou eventualmente do séc. XVII.

Cristo no mar da Galileia. Jan Brueghel, o velho. óleo sobre cobre. Museo Thyssen-Bornemisza
O cobre como suporte da pintura proporcionava ao artista uma superfície especialmente lisa, que permitia pintar pequenas cenas, plenas de detalhes e minúcias e em que as cores ganhavam tonalidades brilhantes. A partir de meados do século XVI e ao longo dos séculos XVII e XVIII, o cobre foi um suporte de eleição para executar paisagens, retratos e cenas religiosas de dimensões reduzidas. Essas pequenas pinturas eram concebidas para serem vistas muito de perto e eram ideais para espaços privados ou lugares de meditação e oração se o tema fosse sacro.
 
A pintura tem o seu je ne sais quoi de feminino e poderá ter sido um trabalho freirático, ou seja de uma mulher
Esta minha Santa Rita de Cássia será pois um trabalho destinado a uma cela de uma monja ou a um oratório particular de uma casa abastada. A pintura tem o seu je ne sais quoi de feminino, como diriam os franceses e poderá ter sido um trabalho freirático, ou seja de uma mulher. Nos conventos, as mulheres estavam libertas dos encargos próprios da condição feminina, como tratar dos filhos, do marido e do governo da casa e poderiam algumas delas dedicar-se a trabalhos artísticos e muitas delas fariam pequenas pinturas, que venderiam para o exterior como forma de arranjar proventos para o convento. No catálogo Rouge et or : trésors du Portugal baroque. - Lisboa : Gabinete das Relações Internacionais, 2001 o Professor Vítor Serrão refere várias monjas portugueses pintoras como a Irmã Joana Batista, do convento das Maltesa de S. João de Estremoz, Cecília do Espírito Santo, freira do convento das Chagas de Vila Viçosa, da nobre Maria Madalena de Castro, de Maria dos Anjos, professa no convento de Santa Maria de Sena, em Évora, de Teodora Maria Andino, activa em Faro e da nobre Dona Ana de Lorena, consideradas pelos documentos da época como artistas de uma certa capacidade e de uma grande sensibilidade.

 
Em todo o caso, certamente esta pequena pintura foi objecto de grande devoção. Santa Rita de Cássia era vencedora das causas impossíveis e a vida é e foi sempre de tal maneira atravessada por obstáculos impossíveis, que muitos recorreram certamente a ela. Em Portugal, Santa Rita foi também advogada dos terramotos e em muitos registos gravados é representada com um fundo em que se veem casas a desmoronar-se o mar revolto invadindo a terra firme.

Foto de http://www.csarmento.uminho.pt/
 
Em termos de iconografia Santa Rita é mostrada como monja agostiniana, segurando um Cristo e um espinho de Cristo cravado na testa. Segura uma palma, o que nos poderia levar a crer tratar-se de uma mulher que morreu martirizada, mas é de facto uma palma da glória, com três coroas, aludindo possivelmente à sua vida triplamente exemplar: donzela, esposa e monja.
 
 
Claro, esta Santa Rita não é uma obra-prima, nem tão pouco tem grande qualidade, mas é uma pintura original do século XVIII a qual não falta algum encanto. Além de tudo, Santa Rita era objecto de grande devoção na casa de Outeiro Seco da minha família paterna. Ter colocado esta imagem nas paredes de minha casa, foi de certa forma dar continuidade a uma tradição.
 
Santa Rita em minha casa
 
Algumas fontes:

-para informações sobre monjas pintoras consultei Rouge et or : trésors du Portugal baroque. - Lisboa : Gabinete das Relações Internacionais, 2001

- acerca de pinturas a óleo sobre cobre consultei um texto sobre Jan Brueghel, o velho, escrito por Beatriz Fernández, no site do Museo Thyssen-Bornemisza

 
- o site dos Bens Culturais do Patriarcado tem um texto muito bom sobre a vida e iconografia de Santa Rita

terça-feira, 19 de julho de 2016

Faiança Portuguesa: comparar sem concluír


Neste blog já se tem escrito muitas vezes sobre a dificuldade em identificar os centros de fabrico ou fábricas de muitas da faianças portuguesas do século XIX, pois raramente estão marcadas e muitas vezes e apresentam decorações muito semelhantes, já que procuravam corresponder a um gosto dominante do publico. Ainda recentemente comprei o livro A Fábrica de Louça e Vilar de Mouros / Paulo Torres Bento [et al]. Vilar de Mouros: Centro de Instrução e Recreio Vilarmourense: Câmara Municipal de Caminha, 2015 e fiquei baralhadíssimo. Aquela fábrica produziu peças que até há pouco tempo acreditava serem da região centro, outras que se costumam atribuir à Fervença e ainda muitíssimo cantão popular, que como toda a gente sabe, os chicos-espertos do mercado de velharias afirmam a pé juntos que é Miragaia. É um livro muito interessante, que recomendo a todos os amantes da faiança, mas que nos faz pensar ainda mais no perigo de fazer atribuições de fabrico com ligeireza. Por vezes penso, que talvez fosse mais interessante na faiança estudar os gostos dominantes no público ao longo do século XIX, do que concentrarmo-nos tanto na questão da atribuição do local de fabrico através dos motivos decorativos.

Estas linhas, que acabei de escrever, servem para justificar que a associação de peças que hoje apresento, não tem por objectivo classificar ou catalogar faianças. Pretendo apenas fazer uma associação de padrões que parecem mostrar um certo ar de família e que corresponderam a um gosto do público, que talvez diferentes fabricantes procuraram satisfazer.

O primeiro prato apresenta uma decoração algo familiar com o padrão das perdizes, que já foi mostrado pela Ivette Ferreira no seu blog, tempo e histórias . Em vez da perdiz, o prato representa um passarinho. A Maria Isabel mostrou também um prato encantador como este no seu blog e associou-o muito bem ao padrão das perdizes, mas atribuiu-o a fábricas do Norte, Vilar de ou Mouros ou Bandeira, a meu ver sem fundamento, mas cada um é livre de pensar o quer e o mundo seria uma coisa cansativa se estivéssemos sempre de acordo.

Julgo que a faiança decorada com o passarinho tem com uma cor de fundo demasiado creme para ser do Norte, pelo menos comparando com o que vi atribuído a Bandeira, cuja pasta tem sempre uma cor de fundo mais branquinha. Do que observei do livro A Fábrica de Louça e Vilar de Mouros, também não encontrei nada nem de perto nem de longe parecido com este pratinho.
 

A segunda peça é uma chávena de faiança linda comprada a um preço irrecusável, também de uma faiança tosca, decorada com uns motivos vegetais muito sóbrios, que o Manel interpretou como estilização da Salsa prestes a florir.


Talvez respondendo uma intuição qualquer resolvi juntar a chávena com o prato do passarinho e as duas peças parecem que foram feitas uma para a outra.


Este ar de família da decoração e da cor da pasta podem não indicar que foram produzidos pela mesma manufactura. Significará antes que a chávena e o prato foram manufacturados de acordo com um mesmo gosto. O mesmo se passa com o chamado padrão das perdizes. É talvez a única conclusão segura que posso tirar desta associação. Mas, também, o tempo quente que se faz agora sentir convida mais à contemplação destas faianças de ar campestre, do que a especulações sobre fabricantes.


terça-feira, 5 de julho de 2016

Visitas de cortesia em Chaves num quarto de hora...



Tenho especial apreço por esta fotografia da minha mãe tirada em Lisboa, a 18 de Janeiro de 1946. A minha mãe, a última figura da direita usa aquele penteado todo puxado para cima e aqueles sapatos de sola compensada tão típicos dos anos 40. Tinha umas belas pernas. Aliás, manteve uma boa figura até muito tarde. Mas talvez o que goste mais desta fotografia é que captou o andar característico da minha mãe, que conseguia caminhar muito rapidamente, como que aos saltinhos, em cima de uns sapatos muito altos. Essa capacidade de correr em cima de sapatos saltos altos era aliás uma característica de muitas mulheres da sua geração.
Oura fotografia da minha mãe, tirada também Lisboa, em Março de 1946

Esta fotografia recorda-me sempre um episódio da minha mãe, que gravei de forma muito nítida na minha memória, não sei exactamente porquê, mas o cérebro humano regista umas informações e apaga outras sem nenhuma razão aparente. Um dia, regressávamos de Vinhais para Lisboa de camioneta e esta fazia sempre uma paragem de cerca de um quarto de hora em Chaves, na antiga estação, que era praticamente no centro da cidade. A minha mãe insistiu em sair e ir visitar a minha avó e a minha tia Natália. Os meus irmãos e eu que conhecíamos o seu carácter sociável, dissemos-lhe que não fosse, que não tinha tempo de fazer uma visita, quanto mais duas, sobretudo porque a minha mãe falava imenso e que um quarto de hora nem para os primeiros cumprimentos daria. A minha mãe para nos calar, ter-nos-á dito que éramos uns bichos-do-mato iguais ao nosso pai e lá saiu disparada fazer as referidas visitas de cortesia. O quarto de hora passou, os vinte minutos também e vinte e cinco minutos depois o motorista pôs o motor a trabalhar e quando fazia marcha atrás para sair da estação, apareceu a minha mãe a correr aos saltinhos em cima de uns sapatos muitos altos a mandar parar a camioneta. Eu e os meus irmãos, que estávamos a entrar na adolescência, naquela fase em que se tem vergonha dos pais, achamos aquilo ridículo, pois toda a gente se virou para nós, mas ao mesmo tempo não conseguimos deixar de admirar uma certa elegância naquela maneira de correr aos pulinhos em cima dos saltos altos, nem de nos divertir com o seu à vontade.

A célebre escritora de romances policiais, Agatha Christie escreveu na sua autobiografia, que só amámos realmente alguém quando gostamos dos seus momentos ridículos e esta fotografia da minha mãe, que registou para sempre sua forma de caminhar em saltos altos, recorda-me esse momento ocorrido há quase quarenta anos na estação de camionetas de Chaves, em que a amei profundamente.