sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

La Fuite à dessein, gravura segundo Fragonard

Numa banca de uma feira de velharias, encantei-me com esta pequena gravura colorida, impecavelmente emoldurada e sem hesitações comprei-a e trouxe-a para casa. O meu amigo Manel fez o favor de se desencaixilhar a estampa, mas infelizmente não apresentava qualquer marca de gravador, o que significava que teria que identificar aquele pedacinho de papel a partir de milhares de imagens disponíveis na internet.


Desde logo fiquei com a ideia, que esta gravura representando uma jovem com um vestido esvoaçante seria uma dessas estampas coloridas inglesas, dos finais do XVIII ou inícios do século XIX ou até talvez uma obra de Bartolozzi, pois na mesma banca vendiam-se umas quantas gravuras daquele artista italiano, que trabalhou em Londres e em Lisboa. Abri então a internet e fiz umas quantas pesquisas com os termos combinados Bartolozzi e colour engraving, que não deram resultados. Lembrei-me também que poderia ser uma gravura feita a partir de uma das obras de Angelika Kauffmann, que pintava muitas vezes umas jovens envergando uns vestidos de tecidos leves e suavemente drapeados, mas as buscas no Google foram igualmente decepcionantes.


Apliquei então uma técnica nova e no menu pesquisa por imagens do google, carreguei uma fotografia que fiz da estampa e ordenei ao motor de busca que encontrasse imagens idênticas. Acrescentei à pesquisa alguns termos significativos, como colour engraving e antiques, young woman e zás, surgiu-me uma imagem a preto e branco da estampa da colecção do The Metropolitan Museum of Art. O mistério estava resolvido, a minha estampa tinha sido feita a partir de uma obra do célebre artista francês, Jean Honoré Fragonard (1732–1806), o pintor de cenas galantes e libertinas.
La Fuite à Dessein. Jean Honoré Fragonard (1732–1806). The Metropolitan Museum of Art
O título da obra é La Fuite à Dessein, o que em português quer dizer, fuga com propósito, isto é, a jovem rapariga foge de um pretendente, que aparece representando no canto inferior direito da gravura. No entanto, ela não está nada aflita. Pelo contrário, parece deliciada com a situação e foge em direcção a um sítio qualquer afastado e protegido, onde se poderá entregar sem reservas ao rapaz.

A rapariga é perseguida por um pretendente

É uma obra típica de Fragonard, que trabalhava sobretudo para uma clientela privilegiada, pintando quadros de pequenos formatos destinados a decorar os interiores de residências aristocráticas. O traço fogoso, as cores vivas e luminosas das suas telas celebraram com poesia a juventude e a natureza. Fragonard foi pintor de numerosas cenas galantes, moda iniciada por Watteau, que apresentam os divertimentos da nobreza, no meio de uma luxuriante natureza, onde a coberto do jogo, o desejo exprime-se sem entraves

La Fuite à Dessein. Jean Honoré Fragonard. Harvard Art Museums/Fogg Museum

O quadro que serviu de modelo à estampa encontra-se nos Estados Unidos, no Harvard Art Museums/Fogg Museum e foi pintado originalmente para a Marquesa de Turpin de Crissé.

As obras de Fragonard estão impregnadas de uma grande sensualidade e mesmo de um certo erotismo


Contudo ao contrário da gravura da colecção do The Metropolitan Museum of Art, que está assinada por Charles François Adrien Macret (1751–1789) e Jacques Couché (1750-1800?) e datada no ano de 1783, a minha estampa não tem qualquer assinatura de gravador ou impressor. Será talvez uma cópia posterior dessa estampa, talvez já do século XIX, até porque as gravuras feitas a partir das obras de Fragonard, impregnadas de uma grande sensualidade e mesmo de um certo erotismo, conheceram um grande sucesso junto do público.

Esta pequena estampa representa um tempo em que o espírito libertino das luzes pairava sobre a França.

8 comentários:

  1. Pois, só não sabia que era baseada num Fragonard, mas que me pareceu lindíssima logo desde início, lá isso pareceu.
    De tal forma que estava igualmente tentado a comprá-la.
    E foi colorida de forma muito delicada.
    A peça é muito delicada e o tema leve, esvoaçante, quase etéreo.
    Creio que fizeste uma boa aquisição.
    A forma como fizeste a pesquisa não a conhecia, mas é muito prática e eficaz. Pena que não possa ser aplicada a outros tipos de objetos
    Manel

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Manel
      Este método de pesquisa, que consiste em carregar uma fotografia no menu imagens do Google produz sobretudo resultados para a gravura, mas sem as molduras, razão pela qual trabalhei a imagem para lhe retirar o passepartout. Com a louça não resulta de todo, mesmo para a cerâmica europeia, que está bem estudada.

      Talvez alqui no blog não seja possível apreciar devidamente esta estampa tão delicada, cujo diâmetro não ultrapassa os 4 dedos. A primeira imagem que aqui apresento tem o tamanho real da gravura.

      Enfim, tenho um pequeno Fragonard em casa, que poderia muito bem ilustrar qualquer edição das ligações perigosas de Choderlos de Laclos.

      Um abraço

      Eliminar
  2. Luis.

    Sem susto.
    Mais uma vez venho dizer que não falo do além,embora tenha enfrentado alguns embates que, se não mortais, ao menos causticantes, prolongados e que tiram os ânimos de qualquer mortal por mais valente que seja.

    Quanta coisa tenho perdido ou vivido pela metade. Só no seu blog por exemplo...

    Lá atrás vi uma postagem sobre Santa Madalena e me lembrei que quis fazer uma postagem sobre ela. Por dois motivos: mostrar uma bela imagem sua (que nem tenho mais) e pela elevação de sua memória a categoria de Festa promulgada pelo papa Francisco com dois mil anos de atraso. Não muda muita coisa mas acrescenta o Glória em sua Missa própria. Merecido reconhecimento.

    Ainda sem PC. Não gosto de ler e menos ainda atualizar o blog pelo celular. Daí outro motivo de demora.

    Mas saber que você está em plena vitalidade me deu alegria. Espero retomar as postagens e também acompanhar com mais atenção o que os amigos partilham.

    Um abraço daqui mesmo por enquanto.

    ab

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Amarildo

      Com efeito, já estava preocupado consigo. A internet tem destas coisas. As pessoas desaparecem no espaço virtual e nós nunca sabemos se desapareceram também desta vida ou se estão ocupadas a resolver os seus problemas.

      A figura da Madalena é das mais simpáticas do Catolicismo romano, porque representa o perdão, conceito moral que o Cristianismo introduziu no Próximo Oriente e na Europa.

      Foi o conceito moral do perdão, que permitiu à Europa renascer da Segunda Guerra Mundial, quando alemães, franceses, belgas, holandeses, italianos e luxemburgueses começaram a erguer a União Europeia, esquecendo que o terrível ódio que nutriam uns pelos outros.

      Julgo que essa decisão do Papa Francisco é muito acertada. Madalena representa a capacidade de perdoar, atitude imprescindível para as sociedades viverem em paz.

      Um abraço e fico feliz por ter regressado ao nosso convívio

      Eliminar
  3. Respostas
    1. Glória

      Esta fuga com propósito é quase um hino à juventude. Aqui não há reumatismo, dores nas costas e medo de doenças propagadas sexualmente. A jovem corre despreocupada, com o intuito de atrair o seu amante para trás de algum arbusto e entregar-se a ele. No fundo, temos aqui retratados os mesmos assuntos da Aventureira de Watteau, isto é, as festas galantes, a juventude e a libertinagem da França do século XVIII.

      Um abraço

      Eliminar
    2. Pois bem, Luis, identifiquei-me aqui, nas tuas palavras. Por vezes, me pego refletindo no que escolheria, de cada fase (verão, primavera, outono e inverno) da minha vida para eternizar em meu ser, caso um gênio saído da garrafa me perguntasse. Eu me contentaria com bem pouco e ficaria apenas com as idades que correspondem à primavera (juventude/fertilidade) e inverno (anciã/sabedoria).

      Da primavera eu pediria a permanência desta "jovem que corre despreocupada". Você, Luis, definiu muito bem o que há de melhor na juventude. Eu não consegui este feito, mas senti em meu coração.

      E já que não teriam “doenças” (risos), eu escolheria o inverno e então, pediria a permanência de não me preocupar com absolutamente nada com que os outros vão pensar, época em que os medos não tem mais importância e vivemos realmente. A mente no seu melhor do que significa liberdade, mas o corpo, nem tanto.

      Despreocupação e rendição!

      Eliminar
    3. Gloria

      Não há dúvida que o inverno das nossas vidas nos liberta da preocupação de procurar o sexo ou da preocupação constante em estar integrado num grupo ou na sociedade, mas é difícil não nos esquecermos do brilho da juventude. Enfim, temos que aceitar a idade, atitude que já por si é própria da maturidade.

      Em todo o caso, é sempre fascinante observar como alguns artistas, como Fragonard, conseguiram captar numa tela um breve momento da despreocupação e brilho da juventude.

      Um abraço

      Eliminar