segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Um Cristo preto


Na catequese, nos manuais escolares e nos livros de religião e moral, quase todos nós formámos uma imagem de Jesus Cristo como um homem loiro, cabelos escorridos, penteados com um risco ao meio e olhos azuis. Mesmo hoje, em que já não acreditamos em nada, quando nós ocorre, ainda que apenas por breves momentos, que talvez pudéssemos pedir ajuda a Deus, vem -nos sempre à memória esse Cristo das imagens piedosas do passado.

Talvez por essa razão eu goste deste insólito Cristo preto, que o meu amigo Manel me ofereceu. Faz um contraste interessante com as todas beatices do século XVIII ou XIX com que enchi a minha casa, registos de santos, imagens de roca ou medalhões ovais em espuma de mar com representações de Nossa Senhora.
 
É uma peça africana em pau-preto, comprada talvez em Angola ou Moçambique por um soldado em serviço militar, um funcionário público em final de comissão de serviço, ou por um daqueles muitos milhares de portugueses, que construíram as suas vidas em Luanda ou Lourenço Marques. Tenho até ideia de ter vistos filmes antigos dos anos 60 e 70 com artificies africanos a venderem peças de artesanato no chão das ruas de Luanda. Os meus pais, que estiveram em Timor e regressaram de barco, fazendo em escala em Luanda e Lourenço Marques (a actual Maputo) compraram uma ou outra peça africana.

Hoje em dia, essas peças africanas, que os milhares de portugueses, que passaram por África trouxeram nos seus caixotes nos porões do navio são consideradas hediondas e encontram-se no chão das feiras de velharias por tuta-e-meia, e, é pena pois algumas delas são muito interessantes. Mas o passado colonial português é uma coisa mal vista, politicamente incorrecta e quando o morre o cidadão comum, que trouxe esses objectos de artesanato africanos na sua bagagem, os descendentes tratam de os despachar rapidamente.
 
 
Embora não me interesse por arte africana, gosto muito deste Cristo preto, que com a luz solar, ganha reflexos muito interessantes. Até o pó da parede a esfarelar lhe assenta bem na pele escura. Aprecio também a sua expressão serena, de que quem cansado de tantos trabalhos forçados,  pancada e guerras se deixou adormecer para sempre. Recorda-me igualmente "Lágrima de Preta", o poema de António Gedeão, que não consegui deixar de transcrever aqui.

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.




sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Uma estampa de moda portuguesa da década de 30 do século XIX

Cazaca cor de pinhão, botões de metal amarellos; vestido de setim rosa. Lithographia da rua Nova dos Martyres, n.º 12
As gravuras de moda francesas do século XIX aparecem muito nos mercados de velharias. São normalmente estampas, que em tempos fizeram parte de revistas como Le Moniteur de la mode, Journal des demoiselles ou Petit courrier des dames, que eram muito populares entre as classes mais favorecidas, em Portugal, na Europa e nas Américas, numa época, que Paris era a rainha incontestável de todas as modas.

Contudo, gravuras portuguesas de moda desta época são relativamente raras de modo, que quando encontrei esta estampa à venda, que mostro hoje, resolvi não a deixar escapar. Ainda para mais, pareceu-me mais antiga do que é normal encontrar. Não, que eu saiba muito de história da moda, mas quando vi a toilette do cavalheiro, lembrei-me logo do retrato do escritor Almeida Garrett, gravado por Pedro Augusto Guglielmi, em 1844 e que constava de todos os manuais escolares. Almeida Garrett era um verdadeiro janota, sempre bem perfumado, vestido e calçado segundo o último figurino da moda e que não hesitava em espartilhar-se para se parecer com o cavalheiro desta estampa de moda.
Almeida Garrett, gravado por Pedro Augusto Guglielmi, em 1844
Resolvi fazer alguma pesquisa sobre publicações periódicas de moda portuguesas, que tinha a ideia que existiram primeira metade do século XIX e encontrei na Biblioteca Nacional de Portugal O correio das damas : jornal de litteratura e de modas, publicado em Lisboa, na Lisboa, na Typ. Lisbonense, entre 1836-1852 e que se encontra inteiramente digitalizado.

O correio das damas : jornal de litteratura e de modas, Abril de 1836. Foto Biblioteca Nacional de Portugal.
Comecei logo pelo ano 1836 e de com efeito as primeiras estampas deste periódico parecem-me muito com aquela que comprei e são igualmente impressas na Lithographia da rua Nova dos Martyres, n.º 12. Até os caracteres tipográficos usados são iguais. Porém, à medida que fui avançando no tempo, logo em 1837, as estampas desta revista passaram a ser impressas no Almeida, apresentando então um ar um pouco mais sofisticado e no pé de página, a numeração da revista.

Carreguei então a imagem digital da minha gravura no Google e o motor de busca apresentou-me uma centena de resultados de imagens semelhantes, e com algum espanto, encontrei na National Portrait Gallery, de Londres, uma estampa praticamente igual à minha, mas o cavalheiro não consta da imagem e o fundo é diferente. Na figura portuguesa, o fundo é um chão de mosaico e a parede um apainelado, ao passo que na gravura inglesa a jovem elegante apoia-se naquilo que parece ser uma consola barroca. A estampa inglesa foi publicada no The Ladies' Pocket Magazine, em Dezembro de 1836 e apresenta uma legenda muito curiosa sobre este traje, um Paris Evening Dress, isto é, vestido de noite parisiense, que deveria ser confeccionado num cetim rosa estampado.
Paris Evening Dress. The Ladies' Pocket Magazine, Dezembro de 1836. Foto de National Portrait Gallery
 
Na descrição que o site National Portrait Gallery transcreve, aconselha-se as elegantes que mandassem fazer este modelo, a pentearem-se à La Vallière, isto é, com um risco ao meio, cabelo liso no topo e os restantes cabelos caindo em caracóis e cachos artísticos. O termo La Vallière refere-se a uma personagem histórica, Louise de La Vallière (1644-1710), que foi amante de Luis XIV e cujo penteado fez furor na corte de França e foi copiado por toda a Europa. A pobre Louise veio mais tarde a arrepender-se seriamente desta ligação ilícita, cortou os seus belos caracóis e fez-se freira carmelita, tomando o piedoso nome de Sœur Louise de la Miséricorde. Porém a fama do seu penteado permaneceu ao longo dos tempos e em 1836 era outra vez moda entre as elegantes de Paris.

Louise de La Vallière, a amante de Luís XIV, cujo penteado fez furor. Jean Nocret, Palácio de Versalhes
Em suma, é muito provável, que esta minha estampa tenha sido impressa entre 1836 ou 1837 e levou às damas portuguesas as últimas modas da Europa. Quando escrevi este post, não tinha conseguido apurar em que publicação periódica portuguesa saiu. Posteriormente um seguidor deste blog, que está a fazer uma tese de mestrado sobre este assunto, o Ricardo Braga informou-me que esta gravura foi publicada em O Recreio: jornal das Famílias (Lisboa, 1835-42), no tomo II, n. °12 de dezembro de 1836, o que prova que a imprensa periódica portuguesa seguia a par e passo ás últimas modas da Europa.


A minha estampa foi publicada no periódico O Recreio: jornal das Famílias (Lisboa, 1835-42), no tomo II, n. °12 de dezembro de 1836


Relativamente à estampa inglesa, não sei se foi a fonte de inspiração para o autor desta gravura. Tenho o vago palpite que haverá uma terceira estampa, francesa com toda a probabilidade, que inspirou os portugueses e os ingleses.



sábado, 8 de fevereiro de 2020

Uma terrina de faiança da região do centro


Nos últimos tempos tenho escrito pouco sobre faiança. Não porque faltem peças para mostrar, pois o meu amigo Manel tem imensas terrinas, bules e pratos de faiança portuguesas do século XIX, mas pelo motivo, de que sabemos muito pouco sobre elas. São louças sem qualquer marca e parece-me um bocadinho inútil estar a escrever, coisas como esta peça parece-nos do Norte ou esta de Coimbra, apenas por mera intuição. Ultimamente só escrevo de faiança, quando sai um livro ou um estudo novo sobre o tema, que nos esclarece sobre uma caneca ou uma travessa da qual o Manel e eu não sabíamos nada. Mas mesmo assim, a tentação é grande de escrever sobre peças das quais nada sei, quanto mais não seja para arrumar ideias.

Desta vez apresento-vos uma terrina de faiança de grandes dimensões, decorada com um bonito motivo floral e que o meu amigo Manel recebeu da sua avô materna, que por sua vez a herdou da sua mãe. Se a avô do Manel nasceu nos primeiros anos da década de 90 do século XIX, pode-se especular que esta terrina será talvez dos últimos anos do XIX ou do início do XX.


A terrina é pesadas e com um certo ar grosseiro, própria para famílias, que queriam objectos sólidos e duradouros, capaz de resistir a diferenças altas de temperatura e a lavagens frequentes. No entanto, a decoração é muito cuidada. Ostenta uma faixa floral, com coloridos vivos, que me recorda os bordados de alguns trajes regionais, talvez aqueles aventais que se vestiam em dias de feira ou de procissão ou um lenço dito de namorados.

Contracapa da obra Bordados tradicionais de Portugal / Maria Clementina Carneiro de Moura. - Lisboa : Comp. de Linha Coats & Clark, [D.L. 1962].

A pasta é amarelada, o que é uma característica da região do centro, segundo quase todos os manuais de faiança. Com efeito encontrei uma ou outra terrina com um formato muito semelhante a esta, a primeira no catálogo de uma pequena exposição, intitulado Humildes faianças: louça tradicional de uso comum no Concelho de Arganil. Arganil: Câmara Municipal, 2007 e está classificada como louça de Coimbra a segunda, no livro de António Pacheco Louça tradicional de Coimbra: 1869-1965. Coimbra: DGPC, 2015. Esta última terrina tem um formato idêntico à do Manel e está marcada como monograma da fábrica Viúva Alfredo de Oliveira, de Coimbra, provavelmente feita pouco depois de 1936.

A terrina reproduzida na obra Humildes faianças: louça tradicional de uso comum no Concelho de Arganil. Arganil: Câmara Municipal, 2007

A terrina reproduzida na obra Louça tradicional de Coimbra: 1869-1965. Coimbra: DGPC, 2015
A terrina do Manel não apresenta nenhuma marca de fábrica. No tardoz, ostenta apenas um número, o 2, que creio eu que se deve referir ao tamanho da peça e não ao fabricante. Recordo-me que quando há quase 40 anos trabalhei numa loja de loiças e utilidades domésticas na Baixa Lisboeta e as panelas tinham sempre no fundo marcado um n.º com o diâmetro da peça.


Apesar de ter encontrado uma terrina da Viúva Alfredo de Oliveira muito semelhante a esta, é um bocadinho arbitrário atribuir-lhe o fabrico, pois quem se dedica ao colecionismo de faiança portuguesa, sabe bem como os diversos fabricantes usavam os mesmos moldes e provavelmente décadas a fio. Por essa razão também complicado, data-la. Talvez tenha sido produzida algures nas três primeira décadas do século XX.


Em suma, esta terrina do Manel, será um fabrico de Coimbra ou da região à volta desta cidade, onde existiram fábricas hoje pouco conhecidas. Ainda não há muito tempo a Maria Isabel, apresentou numa seu blog https://leriasrendasvelhariasdamaria.blogspot.com/2017/01/terrina-da-fabrica-telles-de-cantanhede.html uma terrina de uma fábrica em Cantanhede, de um tal Sr. Manuel José Teles, cuja existência andava esquecida de todos.

Em todo o caso, quem decorou esta terrina, não lhe faltava talento e a orla florida de cores vivas tem toda a garridice de um traje popular português.