quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Décimo primeiro aniversário do blog velharias do Luís

Um aspecto da minha sala de jantar

A 30 de Setembro de 2009 iniciei o blog velharias do luís e ao longo destes 11 anos tenho escrito regularmente novos textos e novas publicações, é certo que nos últimos tempos com uma periodicidade mais espaçada. Como o próprio nome indica, é um blog sobre velharias, antiguidades, historia e memórias familiares

Por vezes quem está ai do outro lado do monitor, pergunta-me se eu sou saudosista ou se vivo mais no passado que no presente. Naturalmente que um blog sobre velharias é sempre uma coisa mais virada para o passado e com uma conotação algo saudosista. A minha formação académica é em história e sou bibliotecário num museu e digamos que a conservação da memória do passado faz parte da minha profissão. Vivo rodeado de livros escritos por gente que já morreu ou por objectos executados há mais de cem anos, duzentos ou trezentos anos. Mas o que aqui escrevo é a minha versão pessoal do passado, de uma forma livre e sem preocupações de usar uma linguagem académica.

A minha trisavô. No último quartel do século XIX a esperança de vida era baixa, mesmo entre a fidalguia.

Tive talvez a sorte de ter nascido numa família antiga, com um passado histórico de quatro séculos. Mas isso poderia não querer dizer nada. Há muita gente com apelidos sonantes e que se está nas tintas para a história. Digamos que para elas um bom apelido é como se fosse uma gravata Armani ou Yves St. Laurent. Mas na família paterna havia um gosto pela história, que remonta ao meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio e que me foi transmitido pelos meus avós e depois pelo meu pai. Continuei essa tradição aqui e evoco muitas vezes esse passado familiar, um tempo que já não conheci, talvez de uma forma algo idealizada. O passado empresta sempre uma certa patina romântica aos acontecimentos, o que por vezes não corresponde à realidade, que era bem mais crua e cruel. Recentemente, andei outra vez às voltas, com a vida da minha trisavó, a Maria do Espírito Santo, uma personalidade interessante, que manteve uma ligação amorosa com um padre e descobri que quer ela, quer os seus pais e a maioria dos seus irmãos morreram antes dos cinquenta e poucos anos. No terceiro quartel do século XIX, mesmo entre uma família abastada e fidalga a esperança de vida era baixa e os cuidados médicos incipientes. Não acredito de todo que os tempos passados tenham sido melhores que os de hoje. Também não tenho qualquer nostalgia da minha adolescência passada num bairro incaracterístico e mesquinho de Lisboa, onde todos viviam segundo as regras do parece bem e do parece mal e do quê é os outros vão pensar, nem tão pouco me apetece recordar a escola primária, onde a tabuada era aprendida à custa de estaladas e reguadas.

Não vivo no passado e não serei um saudosista, mas acredito na importância de conservar a memória daquilo que já passou. Como a Yourcenar escreveu na obra De olhos abertos, "Quando se gosta da vida, gosta-se do passado, porque ele é o presente tal como sobreviveu na memória humana".

Alguns retratos de família


terça-feira, 22 de setembro de 2020

A varanda do adeus

Tenho muitas fotografias da minha avó materna, tiradas em vários momentos da sua vida, na infância e na idade adulta, mas esta apresenta-a mais ou menos com a idade com que ainda a conheci, com cerca 70 e pouco anos. Morreu em 1969 e era eu miúdo, teria uns seis anos. Aliás, nem sei se me recordo ainda desta avô, ou se a memória que dela tenho foi construída a partir desta fotografia, que se encontra na casa de Vinhais e que me habituei a ver nos quarto dos meus pais desde sempre. A nossa memória de acontecimentos da infância é muitas vezes enganadora e confundimos filmes e fotografias, ou relatos que ouvimos repetidas vezes acerca desta ou daquela pessoa com as nossas próprias recordações. Em todo o caso, este plano, este cenário, de alguém debruçado na balaustrada da varanda sempre foi muito usado nas fotografias da família. Creio que há fotografias de quase todos os membros da família, de quatro gerações seguidas, debruçados nesta balaustrada e tiradas por alguém, que está cá em baixo. Em todas as grandes casas de família há sempre uns cenários preferidos para as fotografias e encontramos instantâneos tirados no mesmo sítio ao longo de 40 ou 70 anos. 

A localização em que a minha avó Adelaide (1894-1969) se encontrava nesta fotografia era também um sítio preferido pela família para saudar alguém, que chegava ou alguém que partia. Quando chegávamos de Lisboa, depois de uma viagem indeterminável de 550 km por estradas nacionais, cheias de curvas e buracos, havia sempre alguém que assomava à varanda para nos receber e saudar. Da mesma forma, quando terminávamos as férias e partíamos de Vinhais, havia também gente naquela varanda para se despedir. Creio que ali vi a avó Adelaide, provavelmente pela última vez na minha vida, a tia Maria Adelaide, a tia Chica e a minha própria mãe na varanda a dizerem-nos adeus. Enquanto tinham saúde, desciam cá em baixo para de despedirem, depois quando envelheciam e lhes custava a andar, ficam lá em cima na varanda a fazerem as suas despedidas.

Nesta imagem, os olhos da minha avó parecem estar prestes a encherem-se de lágrimas, o que reforça a mais a sensação de que a fotografia foi feita numa dessas emotivas despedidas de filhos e netos, que partiam para Lisboa, para o Porto, Luanda ou até para o Rio de Janeiro. Na verdade, talvez não seja a partida de mais uma filha ou filho a razão do seu ar triste, pois a minha avô, tinha o saco lacrimal roto. Recordo-me de uma vez a minha tia Maria Adelaide me ter mostrado o lencinho todo amarrotado, que a sua mãe usou ainda para enxugar as lágrimas, umas horas antes da sua morte súbita. Estava guardado como uma pequena relíquia, numa caixinha da cómoda do quarto grande. A tia Maria Adelaide nunca o lavou, pois queria guardar as últimas lágrimas da mamã. Recentemente, já passados muitos anos, mas muitos anos mesmo, lembrei-me de procurar esse pequeno lenço com as últimas lágrimas da minha avó na cómoda do quarto, mas já não o encontrei. Creio que a Tia Chica ou a minha mãe, que eram menos sentimentais e mais práticas, mandaram lavar o pequeno lenço e arrumaram-no numa gaveta qualquer.

Este Verão quando regressei a Vinhais, resolvi digitalizar esta fotografia e tê-la comigo, pois é uma imagem muito emotiva, que simboliza esse tempo em que existia sempre alguém a saudar-nos ou despedir-se de nós na varanda da casa de Vinhais. Hoje a casa está vazia durante o ano inteiro e só a abrimos nas férias durante uns breves quinze dias. No momento da partida, quando olhamos lá para cima, para a varanda, não há ninguém a a dizer-nos adeus. Para trás deixamos o silêncio e as ausências de uma grande casa familiar nos seus últimos anos de vida.