terça-feira, 30 de março de 2021

As quatro estações: porcelana de Capodimonte

As quatro estações: porcelana de Capodimonte
As quatro estações

Estas encantadoras figurinhas em porcelana de Capodimonte, representando as quatro estações do ano foram compradas pelo meu amigo Manel na Feira de Estremoz há uns meses.

Tal como Sèvres ou Meissen, Capodimonte é daqueles nomes míticos da porcelana europeia, que associamos sempre a luxuosas baixelas que iam à mesa de reis, príncipes e duques ou a figurinhas de porcelana barrocas, e que hoje só existem nas colecções dos museus ou aparecem à venda nas grande leiloeiras.
Marca de Capodimonte
O N coroado de Capodimonte. A coroa de 5 hastes foi registada em 1962. 

Estes putti de porcelana, que o meu amigo Manel comprou estão marcados com típico N coroado de Capodimonte, mas não são do período de ouro da fábrica napolitana, o século XVIII. São produções contemporâneas da fábrica de Capodimonte, assinadas pelo artista Giuseppe Cappé (1921-2008), um homem extremamente talentoso que se inspirou no barroco italiano e cujas criações são ainda muitíssimo apreciadas, sobretudo no mercado americano. A marca com a coroa de 5 hastes foi registada em 1962 e Giuseppe Cappé esteve ainda muito activo nos anos 80. Portanto estes meninos em porcelana terão sido produzidos entre estes anos.

Gcappè é assinatura de Giuseppe Cappé
Gcappè é assinatura de Giuseppe Cappé 

Esta alegoria às quatro estações representas por estes meninos, os putti, é um tema recorrente na arte europeia, que começou no Renascimento, atingindo o seu ponto alto no período barroco e que com os movimentos revivalistas se prolongou pelo século XIX fora e chegou até aos nossos dias, como o provam estas figurinhas de Capodimente. É uma alegoria que se inspira na mitologia clássica, em que cada um dos meninos apresenta consigo os atributos de uma divindade greco-romana, a Primavera, com as suas flores é Flora, o Verão, com as espigas de cereal é Ceres, o Outono, é Baco, o deus do Vinho com as uvas e finalmente, o Inverno é Saturno com o ramo sem folhas na mão, cuja festa na antiga Roma, se celebrava por ocasião do solstício de inverno. 

A Primavera, o Verão e o Outono
A Primavera, o Verão e o Outono

Estas figurinhas que o Manel comprou são coisas ainda contemporâneas, mas foram concebidas e executadas na melhor tradição desta fábrica napolitana, que deste o início do século XIX se especializou no supérfluo, nos espelhos, caixas de joias e candeeiros decorados com flores ou ainda figuras como estes meninos, de tal forma que Capodimonte se tornou praticamente um adjectivo em decoração, para qualificar bibelots em cerâmica inúteis e ornamentados com muitas florinhas. Mas, estes putti são feitos com a uma mestria tal, que os torna inutilidades irresistíveis.

As quatro estações: porcelana de Capodimonte
As quatro estações: porcelana de Capodimonte


Ligações consultadas:

quarta-feira, 24 de março de 2021

Menino Jesus, Salvador do Mundo


O meu amigo Manel foi contagiado já há uns anos pelo meu gosto por santinhos e hoje tem a sua casa do Alentejo cheia destas imagens devotas, emolduradas preciosamente em seda, enfeitadas com passamanaria e bordadas com lantejoulas, contas e a fio de prata. Este menino Jesus Salvador do Mundo é umas das peças da sua colecção e que hoje serve de pretexto a algumas considerações sobre estes trabalhos femininos, inspiradas pela leitura da obra Le monde merveilleux des images pieuses de Alain Vircondelet.

Normalmente são trabalhos conventuais, de freiras, meninas educadas em casas religiosas ou de senhoras devotas, mas nunca conseguimos data-los exactamente. Poderão ser do século XVIII, XIX ou até mesmo mesmo do início do XX.

Se a estampa é facilmente datável, porque é assinada por um gravador ou impressor, de que se conhece o período em que esteve activo, o trabalho de emoldurar nunca está assinado ou datado. Sabemos apenas que é antigo, pois apresenta as marcas do tempo, como as sedas sujas pelo pó dos séculos, o fio de prata oxidado ou os vidros com bolhinhas, sinal de que foram ainda feitos artesanalmente.


Estes registos antigos distinguem-se também dos modernos pela habilidade e técnica muito elaboradas, levadas ao virtuosismo pelas mãos destas senhoras do passado. Porque de facto, ao contrário dos registos que se produzem hoje em dia, quem fazia estes trabalhos há 100 ou 200 anos fazia-os com uma devoção intensa, quase que como uma oração intima e pessoal, para tornar ainda mais preciosa uma imagem da Virgem ou do Menino Jesus, que depois de terminada, se tornava quase uma relíquia na cela, no quarto ou no oratório, à qual se recorria em momentos de aflição. Estes registos do passado eram muito mais do que peças bonitas, eram objectos de piedade, carregados de virtudes contra a doença e o mau olhado e diante dos quais se rezava e se procurava acesso a um plano divino.



Apesar de hoje muitos de nós termos perdido a crença, ou se mantemos a fé, esta tornou-se uma prática mais serena, mais filosófica, não conseguimos deixar de ficar impressionados com o virtuosismo destes registos, que teatralizam simples estampas e transformam-nas em objectos mágicos.


Bibliografia consultada:

Le monde merveilleux des images pieuses / Alain Vircondelet. - Paris: Hermé, 1988

sexta-feira, 12 de março de 2021

Um bule de faiança portuguesa


Ultimamente tenho escrito pouco aqui sobre faiança portuguesa, que começou por ser um tema muito forte nos primeiros anos deste blog. Contudo, além de comprar menos peças de faiança, pois a minha casa de uma assoalhada e meia está cheia que nem um ovo, também sinto que tenho pouco a acrescentar ao assunto. A maioria das peças de faiança portuguesa do século XIX não se encontram marcadas e parece-me que ando sempre aqui a especular, afirmando se a pasta é amarelada é porque são peças fabricadas na região centro, se pelo contrário, a pasta é branquinha, serão produções do Porto ou de Gaia. Claro, por vezes sai uma nova publicação de faiança e nessa altura, consigo escrever sobre uma terrina ou um prato e atribui-la com alguma segurança a um centro de fabrico.

Mas a faiança portuguesa do século XIX é sempre tão bonita, que por vezes não resisto a apresentar aqui uma peça, com este pequeno bule, comprado há cerca mais de dois anos e depois a faiança desta época é tão fotogénica à luz do dia, que apetece partilhar aqui as fotografias que delas vou fazendo.

Uma inspiração num emaranhado de ramos

A decoração é qualquer coisa que hesito em escrever se tenta reproduzir o efeito de um marmoreado se o efeito de um emaranhado de ramos. Inclino-me mais para que seja um motivo vegetal, até por comparação com uma grande travessa que o meu amigo Manel tem em casa, onde é mais nítida essa inspiração num emaranhado de ramos. Olhando para a travessa e este bule, poder-se ia dizer que saíram da mesma oficina, mas a primeira apresenta uma pasta muito branquinha, mais característica das produções do Norte e este bule é um pouco mais grosseirão. Mas também a graça destas faiança portuguesa é este ar ingénuo, em que cada peça é única, pois o pintor nunca faz exactamente os mesmo traços, de bule para bule ou de terrina para terrina. Por esta razão as faianças portuguesa do século XIX ficam muito bem fotografadas tendo azulejos portugueses antigos como pano de fundo, pois estes também nunca são bem iguais.


Em suma, não sei muito acerca deste bule, talvez por uma mera intuição me pareça da região centro. A decoração parece-me inspirada num emaranhado de ramos, mas já é uma coisa tão abstracta, que também é difícil concluir qualquer coisa. Creio que os pintores destas peças eram tão criativos, que esqueciam-se do motivo original de inspiração e pintavam qualquer coisa que saia da cabeça deles, quase como o processo de escrita automática, que mais tarde os surrealistas procuram desesperadamente alcançar, mas que vítimas da sua cultura sofisticada, tinham mais dificuldade em concretizar que estes humildes ceramistas.