Como sempre gostei de coisas que mais ninguém gostava, a minha tia Maria Adelaide deu-me em Vinhais esta obra com a vida de todos os santos, em 17 volumes. Teria 23 ou 24 anos e ainda me lembro de suar abundantemente, a carregar com eles dentro da mala de viagem, entre a estação de camionetas no Campo Pequeno de onde cheguei de Vinhais e a casa dos meus pais, em Benfica.
A obra é aquilo que vulgarmente se chama um “flos sanctorum”. Este género de literatura religiosa é organizado em forma de calendário e para cada dia do ano descreve-se a história do Santo respectivo, indicam-se umas orações adequadas para o dia e umas meditações sobre o significado daquele ou daqueloutro acto da vida de Cristo. No passado, estes “flos sanctorum” eram uma leitura muito popular. As pessoas liam-no um bocadinho todos os dias, guardavam entre as suas folhas registos de santinhos e eram usados para escolher nomes às crianças enjeitadas nas misericórdias ou aos pobres meninos africanos, que eram educados nas missões, isto já no século XIX e XX. Ao contrário dos protestantes, os católicos nunca leram muito e a Bíblia e sempre preferiram esta literatura piedosa.
O meu flos sanctorum intitula-se
Año christiano ó Exercicios devotos para todos los dias del año ..., foi escrito pelo padre jesuíta francês
Jean Croiset (1656-1738) traduzido para castelhano por José Francisco de Isla e editado em Madrid, na oficina de don Benedito Cano, em 1791. São 12 volumes correspondentes a cada mês do ano, mais cinco tomos suplementares, com outros conteúdos devotos, cujo alcance escapa completamente, a nós, que vivemos num meio descristianizado. A encadernação é da época, muito bem executada, com a lombada em couro e decorada a ouro.
Já muito mais tarde, depois de tirar um curso de catalogação de livro antigo e estando mais atento às memórias familiares reparei nas marcas de posse que o meu Año christiano tinha. Numa das folhinhas que antecede o rosto, estava escrito
este libro é da Sta Caza da Mofreita 1873 M. da G. P. Fez-se luz na minha cabeça e percebi então que o livrinho tinha pertencido à minha bisavô materna, Maria da Graça Pires (2-3-1854 a 11-10-1943), que tinha sido educada em convento, numa aldeia perdida no Concelho Vinhais, a Mofreita, numa zona que está hoje inserida no Parque Natural de Montesinho. Posteriormente, durante umas férias em Vinhais, resolvi catalogar todos os outros livros antigos, cerca de 60 obras, dos séculos XVI, XVII e XVII, que ainda continuavam na casa de Vinhais e foi descobrindo mais marcas de propriedade manuscritas nos livros, semelhantes a estas e conclui que aquele conjunto que estava ali era a antiga livraria do convento, onde a minha bisavó foi criada e descobri até o nome correcto dessa instituição religiosa, de que já ninguém se recordava o “Recolhimento das Oblatas do Menino Jesus da Mofreita”.
Este Recolhimento foi fundado em 1793 por D. António Luís, abade de Mofreita e Bispo de Bragança. Chamavam-se oblatas, porque as jovens que entravam nesta congregação faziam uma oblação ou oferecimento de si mesmas a Deus.
Não sei como os livros transitaram do Recolhimento das Oblatas da Mofreita para casa da minha família. Arrisco a hipótese que logo a seguir à República com a expulsão das ordens religiosas, em que os bens da igreja ficaram novamente a saque, a Maria da Graça tenha mandado os transportar os livros do recolhimento para sua casa, com intenção de os salvar de terminarem numa fogueira qualquer.
Esta Maria da Graça Pires teve uma vida algo estranha, para os padrões da nossa época. Era filha natural de Francisco Germano Pires, um homem muito rico, parece que emprestava dinheiro a juros e de uma tal Balbina Gonçalves. Aos 4 anos de idade perdeu a mãe e foi viver com o seu pai para Vinhais. Aos 7 anos foi despachada para o Recolhimento das Oblatas da Mofreita, não sabemos exactamente porque razão e só saiu de lá aos 29 anos e também não sabemos porque motivo o pai a tirou de lá.
Há uma fotografia de grupo dela e das suas ”irmãs” na dita casa, que eu descobri lá nos fundos de uma gaveta em Vinhais. Nós nem sabemos bem qual delas será a Maria da Graça. A minha irmã e o meu pai ficam sempre muito impressionados com esta imagem e acham que esta casa religiosa devia ser terrível. Não sou dessa opinião. Creio até que a vida num convento seria muito mais suportável para as mulheres do que casa paterna ou a do marido. No convento aprendiam a ler e a escrever, o que era um privilégio numa época em que cerca de 90 % da população era analfabeta. Todas bordavam muito e algumas até pintavam e dedicavam-se as coisas do espírito.
Bem, não sabemos se era feliz ou não no convento, mas saiu de lá aos 29 anos e passado um ano casou, contra a vontade do seu pai, em 6 de Junho de 1889, com o meu bisavó materno, Clemente da Ressurreição Morais, que é a nossa principal fonte nesta história, pois deixou um livrinho onde apontou os principais factos da sua vida e dos seus. Aparecem aqui nesta fotografia com os dois filhos que tiveram. Estão todos com um ar carracundo, pois o fotógrafo implicou com eles durante toda a sessão, afirmando-lhes que com os seus olhos azuis não iam ficar nada bem na fotografia. O instantâneo deve ter sido tirado por um daqueles fotógrafos ambulantes, que andavam de feira em feira, pois o chão é de terra batida, apesar do cenário pintado ter pretensões a interior palaciano. A rapariguinha que se chega ao pai é a minha avó materna, Maria Adelaide (4-6-1894), muito parecida com a minha mãe e também com a minha filha. O rapazinho é o Francisco Manuel Morais (28-3-1891), que viria a falecer muito novo num acidente de caça em 1916. Era na altura um estudante de medicina e teria um futuro promissor.
Segundo se conta na família, logo a após a morte do jovem Francisco, a Maria da Graça teria mandado queimar todos os livros do filho. Diz-se que seriam livros imorais, romances do Camilo e do Eça e obras de medicina. Este auto de fé aos livros parece-me pouco consentâneo com o anterior percurso desta Senhora. Aprendeu a ler e a escrever. Conviveu com livros. Muito provavelmente teve a preocupação de salvar a livraria do convento da fogueira. Talvez tenha mandado queimar os livros, para não ter sempre presente a sua frente a memória do filho. Quem sabe.