Regina Martyrum |
Há muitos anos que venho coleccionando registos religiosos do século XVIII, essas folhinhas de papel impressas com imagens de Nossa Senhora, de Cristo e de muitos santos e santinhos, objectos de devoção doméstica, muitas vezes comprados depois de uma peregrinação ou romaria a uma igreja ou capelinha. Mas só nos últimos anos me apercebi que algumas destas estampas são representações realísticas de esculturas, que existiram em tempos neste ou naquele santuário, retratando com pormenor as suas vestes e jóias oferecidas pelos crentes. Por isso, agora sempre que compro um registo novo, onde na legenda se diz que santa ou santo tal era na venerado na igreja x ou y vou a correr à internet procurar informações sobre até que ponto a imagem do meu registo é realista ou se a igreja e a escultura que lhe serviram de modelo ainda existem. Claro, nem sempre estas pesquisas dão grandes resultados, pois muitas igrejas caíram no terramoto de 1755 e o seu recheio perdeu-se, outras ainda, com a extinção das ordens religiosas em 1834, foram demolidas ou se ficaram de pé, os seus bens foram vendidos em hasta pública.
"Silva delin.", Carvalho sculp. A estampa foi desenhada por Silva e gravada por Carvalho (Teotónio José de Carvalho) |
Mas desta vez tive muita sorte com uma estampa, que comprei recentemente na feira dos Alfarrabistas da Rua da Anchieta, aqui em Lisboa. É uma gravura que representa Nossa Senhora dos Mártires, Regina martyrum, que reproduz com fidelidade a imagem e respectivo trono e baldaquino, que se encontram ainda na Igreja dos Mártires em Lisboa, conforme pude verificar através de uma simples pesquisa de imagens no Google.
Impressa nos finais do séc. XVIII, a minha estampa retrata fielmente uma imagem que ainda hoje existe na Igreja de Nossa Senhora dos Mártires em Lisboa |
Foi uma pesquisa fácil, porque Nossa Senhora dos Mártires é um culto muito lisboeta, cuja origem se prende com a reconquista da própria cidade por D. Afonso Henriques em 1147. Segundo a tradição, os cruzados que vieram ajudar na conquista de Lisboa aos mouros, traziam uma imagem de Nossa Senhora. O nosso primeiro rei fez então um voto, que se conseguisse conquistar Lisboa, mandaria erguer um templo dedicado a Nossa Senhora e de facto assim o fez logo em Novembro de 1147, num local onde tinham sido sepultados os soldados mártires, que pereceram na batalha pela conquista da cidade. Com o passar do tempo esta Virgem Maria passou a ser conhecida por Nossa Senhora dos Mártires.
Naturalmente que a actual imagem de Nossa Senhora dos Mártires não data da idade média, pois muitas campanhas de obras foram alterando o interior e o exterior da igreja.
Naturalmente que a actual imagem de Nossa Senhora dos Mártires não data da idade média, pois muitas campanhas de obras foram alterando o interior e o exterior da igreja.
Segundo o texto do Cónego Armando Duarte, escrito no site do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, a actual imagem deverá datar da campanha de obras de 1750. Com o Terramoto de 1755, a igreja dos mártires ruiu, mas salvou-se a imagem. O templo foi reedificado um pouco mais a norte do primitivo local, ficando a obra concluída em 1784.
Portanto, a imagem da minha estampa retrata a imagem de roca feita à volta 1750, mas enquadrada no altar de talha construído na campanha de obras, pós-terramoto, que terminou em 1784.
Portanto, a imagem da minha estampa retrata a imagem de roca feita à volta 1750, mas enquadrada no altar de talha construído na campanha de obras, pós-terramoto, que terminou em 1784.
Sanefa do baldaquino |
O mais curioso é que este altar foi alterado desde então. No topo, tinha uma sanefa, que foi retirada numa época que desconheço. Essa sanefa não foi uma invenção do gravador para tornar a estampa mais bonita. Ela deve ter existido realmente, pois um altar que se encontra na sacristia conserva ainda uma sanefa igual à da gravura, conforme pode ver no site do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura.
Na sacristia ainda existe um altar com a sanefa, semelhante a que outrora esteve no topo do baldaquino onde se encontra a imagem de Nossa Senhora dos Mártires |
Seria interessante saber se na paróquia ainda se conservam as vestes da Virgem retratadas na estampa, porque muitas destas imagens tinham enxovais riquíssimos oferecidos pela mais alta nobreza.
Ligação consultada: http://www.snpcultura.org/tvb_basilica_martires.html