O meu amigo Manel tem a mania dos relógios antigos. Nas duas casas dele, há relógios de todos os tipos e feitios e por toda a parte, nas salas, nos quartos, nos corredores e sei lá onde mais. Quando tocam, há uma verdadeira sinfonia de badalos, uns que parecem sinos de igreja, e outros com toques subtis, próprios de casas de gente educada e discreta. Talvez esta mania dos relógios se explique por um certo gosto pela rotina, que marca a personalidade do Manel. Com efeito, estes instrumentos definem metodicamente um quotidiano, que se repete dia após dia e cujos passos decorrem às mesmas horas. Porém, desconfio que a verdadeira paixão dele pelos relógios tem a ver com os mecanismos e os segredos das engrenagens que os fazem funcionar. Com efeito, mal compra um destes objectos, o Manel, desmonta-os integralmente, repara o mecanismo, compra as peças em falta nas feiras de velharias ou nos poucos relojoeiros, que restam ainda na cidade, restaura a caixa de madeira e tudo aquilo lhe dá uma enorme satisfação.
Um dos relógios, que mais acho graça da colecção do Manel é um Waterbury, do tipo relógio de capela, aquilo que os americanos designam por Sharp Gothic. Tem ainda a etiqueta original do fabricante, colada por dentro da caixa, o que nos permite datar o relógio aí por volta da década de 70 do século XIX.
A etiqueta original permite datar o relógio por volta por volta da década de 70 do século XIX. |
Há um site só dedicado à Waterbury, onde se ensina a datar os relógios pela etiqueta original de fabrico, cujo endereço disponibilizo http://www.antiquewaterburyclocks.com/Waterbury-Clock-Labels.php, pensando ser útil às pessoas, que lá em casa tem relógios desta marca, tão populares nas Américas e na Europa no último quartel do século XIX, já que nesse período, os fabricantes americanos invadiram o mercado dos relógios de parede ou de mesa, com os seus produtos baratos, produzidos industrialmente.
Mas o mais encantador deste relógio é que tem uma espécie de decalcomania, colada por dentro no vidro, com uma representação de uns meninos jogando à cabra-cega. Os petizes estão vestidos à maneira do século XVIII e recordam algumas das gravuras que Bartolozzi executou a partir dos desenhos de William Hamilton (1751–1801).
Blind man's Bluff de William Hamilton (1751–1801). British Museum |
Contudo, o mais provável é que a fonte de inspiração seja a cabra-cega, um cartão que Francisco Goya executou em 1789 para uma tapeçaria. Os meninos descrevem uma roda à volta da menina vendada, numa composição muito semelhante à La gallina Ciega de Goya.
.A cabra-cega de Goya. Museu do Prado. Foto wikipedia |
Creio que na casa ou nas casas por onde este relógio andou, terá feito as delícias de gerações de crianças. Talvez imaginassem, que abrindo a porta de acesso ao mecanismo, houvesse lá dentro um mundo em miniatura, onde viveriam os meninos que jogavam à cabra-cega.