Sempre tive uma certa atracção pela figura de Maria Egipcíaca, essa santa que andava a vaguear nua no deserto, coberta apenas pelos seus longos cabelos, de modo quando vi uma estampa antiga à venda com a sua imagem e comprei-a, sem pensar duas vezes, sobretudo sem saber como conseguirei arranjar espaço para encaixa-la lá em casa.
A imagem representa o encontro de Maria Egipcíaca, que deambulava em penitência pelo deserto há 47 anos, com S. Zósimo. Quando a Santa o encontra, pede-lhe um manto para cobrir a sua nudez, conta-lhe então a sua história e S. Zósimo dá-lhe a comunhão. Ao fundo vê-se uma caveira e uma cruz, atributos que costumam acompanhar a imagem desta santa e que a fazem muitas vezes confundir com Santa Maria Madalena, outra pecadora arrependida. A caveira significa como são efémeras as vaidades do mundo e a cruz simboliza a Salvação, o único e verdadeiro fim, que deverá nortear o caminho a seguir por todos os homens e mulheres.
A iconografia de Maria Egipcíaca e Maria Madalena confunde-se facilmente. São representadas com longos cabelos, as vestes a escorregarem, uma cruz e a caveira. Madalena Penitente por Luca Giordano. Museu do Prado |
Desta Maria Egipcíaca, que terá vivido por volta do século V depois de Cristo não há propriamente registos escritos da época, que testemunhem a sua existência. A história da sua vida aparece pela primeira vez escrita, por um tal Sophronios, Patriarca de Jerusalém, no século VII, e depois disso o assunto foi repetidamente contado novamente por vários autores piedosos. O mais curioso é que enquanto no Oriente, os relatos centraram-se mais na vida de S. Zósimo, no Ocidente, durante a Idade Média os hagiógrafos e os poetas transformam em protagonista Maria Egipcíaca. Forma-se nessa época a lenda que ainda hoje se lê em toda a parte, da jovem que se prostituía em Alexandra, mais por prazer do que por dinheiro e que um dia partiu para Jerusalém, não porque lhe interessa-se a espiritualidade da cidade, mas em busca de mais aventuras. Conta-se que pagou a viagem com o seu próprio corpo entregando-se aos vários marinheiros da tripulação. Em Jerusalém, um dia, por acaso, tentou entrar na Igreja do Igreja do Santo Sepulcro e uma força qualquer estranha impedia-a de entrar. Percebeu-se que havia qualquer coisa de profundamente errado na sua vida, arrependeu-se e então ouviu uma voz dizendo-lhe para atravessar o rio Jordão, pois só ali encontraria o descanso. E esta mulher habituada aos prazeres da vida, larga tudo e parte em direcção ao deserto, levando apenas três pães com ela. Viverá como eremita, as suas roupas acabarão por desfazer-se e a apenas os seus longos cabelos desgrenhados cobrirão a sua nudez.
Na literatura que se formou sobre a vida de Santa Maria Egipcíaca, a aventura e o erotismo tem um peso evidente, camuflado por debaixo de uma história piedosa. A última comunhão de Sta. Maria Egipcíaca, por Sebastiano Ricci, c. 1695. The National Gallery of Art |
Uma autora americana Connie L. Scarborough, num artigo intitulado Santa María de Egipto: la vitalidad de la leyenda en castellano, sublinha que em toda esta literatura que se formou sobre a vida de Santa Maria Egipcíaca, o que mais se destaca é o lado aventuroso, em detrimento do sagrado. No fundo criou-se um relato, onde a aventura e o erotismo tem um peso evidente, camuflado por debaixo de uma história piedosa e que encontrou grande popularidade, na Idade Média, época de repressão sexual e que continuou a seduzir senhoras piedosas, cavalheiros respeitáveis, castas donzelas, monges e freirinhas, por esses séculos fora.
A estampa foi impressa em Lisboa, gravada por Gaspar Frois Machado (1759-1796) e vendia-se na casa de Francisco Manuel no fim da Rua do Passeio, isto é o Passeio público, o jardim público criado durante o consulado pombalino em 1760 e destruído a partir de 1879 para rasgar a Avenida da Liberdade. Portanto a gravura, até a julgar pela decoração neoclássica da cercadura deve ter sido impressa nos últimos anos do Século XVIII ou nos primeiros anos do Séc. XIX.
A estampa foi impressa em Lisboa, gravada por Gaspar Frois Machado (1759-1796) e vendia-se na casa de Francisco Manuel no fim da Rua do Passeio, isto é o Passeio público, o jardim público criado durante o consulado pombalino em 1760 e destruído a partir de 1879 para rasgar a Avenida da Liberdade. Portanto a gravura, até a julgar pela decoração neoclássica da cercadura deve ter sido impressa nos últimos anos do Século XVIII ou nos primeiros anos do Séc. XIX.
Esta estampa apresenta a legenda, S. Maria Egypciaca da Goarda Real, porque a referida Santa foi a padroeira da Guarda Real dos Arqueiros, cuja irmandade tinha sede na Igreja dos Mártires em Lisboa. Explica-se assim também o escudo real português no topo da cercadura do registo. Não consigo é explicar porque é que uma pecadora, ainda que muitíssimo arrependida, fosse padroeira da Irmandade da Guarda Real dos Arqueiros. Talvez houvesse qualquer associação entre a flechas dos arqueiros e o arrependimento, que atingiu como uma seta o coração de Maria Egipcíaca, ou talvez os guardas, que protegiam a família real experimentassem algum prazer erótico em pensar na protecção desta mulher que caminhava nua pelo deserto.
Em todo o caso, depois de comprar esta estampa e pelo que li sobre ela, fiquei a apreciar ainda mais esta figura lendária e o seu gosto pela aventura e pela liberdade, que se manifestou sempre, mesmo depois de arrepender. Deambular nua pelo deserto, sem constrangimentos de qualquer espécie é sem dúvida um acto de supremo de liberdade e um desejo de absoluto, que nos nossos tempos nos parece estranho.