Na catequese, nos manuais escolares e nos livros de religião e moral, quase todos nós formámos uma imagem de Jesus Cristo como um homem loiro, cabelos escorridos, penteados com um risco ao meio e olhos azuis. Mesmo hoje, em que já não acreditamos em nada, quando nós ocorre, ainda que apenas por breves momentos, que talvez pudéssemos pedir ajuda a Deus, vem -nos sempre à memória esse Cristo das imagens piedosas do passado.
Talvez por essa razão eu goste deste insólito Cristo preto, que o meu amigo Manel me ofereceu. Faz um contraste interessante com as todas beatices do século XVIII ou XIX com que enchi a minha casa, registos de santos, imagens de roca ou medalhões ovais em espuma de mar com representações de Nossa Senhora.
É uma peça africana em pau-preto, comprada talvez em Angola ou Moçambique por um soldado em serviço militar, um funcionário público em final de comissão de serviço, ou por um daqueles muitos milhares de portugueses, que construíram as suas vidas em Luanda ou Lourenço Marques. Tenho até ideia de ter vistos filmes antigos dos anos 60 e 70 com artificies africanos a venderem peças de artesanato no chão das ruas de Luanda. Os meus pais, que estiveram em Timor e regressaram de barco, fazendo em escala em Luanda e Lourenço Marques (a actual Maputo) compraram uma ou outra peça africana.
Hoje em dia, essas peças africanas, que os milhares de portugueses, que passaram por África trouxeram nos seus caixotes nos porões do navio são consideradas hediondas e encontram-se no chão das feiras de velharias por tuta-e-meia, e, é pena pois algumas delas são muito interessantes. Mas o passado colonial português é uma coisa mal vista, politicamente incorrecta e quando o morre o cidadão comum, que trouxe esses objectos de artesanato africanos na sua bagagem, os descendentes tratam de os despachar rapidamente.
Embora não me interesse por arte africana, gosto muito deste Cristo preto, que com a luz solar, ganha reflexos muito interessantes. Até o pó da parede a esfarelar lhe assenta bem na pele escura. Aprecio também a sua expressão serena, de que quem cansado de tantos trabalhos forçados, pancada e guerras se deixou adormecer para sempre. Recorda-me igualmente "Lágrima de Preta", o poema de António Gedeão, que não consegui deixar de transcrever aqui.
Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.