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O meu avô, António da Purificação Ferreira (20.10.1887 - 12.2.1949) |
Aventurarmo-nos num velho álbum de fotografias familiares é encontrar um mundo morto há muito tempo, e ao mesmo tempo, uma tentativa de o ressuscitar do esquecimento, muitas vezes falhada, pois quem podia identificar aqueles senhores com bigodes retorcidos e crianças vestidas de marujo já morreu há muito. No entanto, apesar de um certo sentimento de vertigem, que lidar com tantas fotografias de gente morta nos provoca, este trabalho de organização arquivística não é isento de surpresas divertidas.
Por exemplo, o meu avô materno, baptizado piedosamente como António da Purificação Ferreira (20.10.1887-12.2.1949), aparenta um ar de folgazão nas fotografias da juventude, que um nome tão beato não deixava de modo nenhum supor.
O António da Purificação era um janota, que se fez fotografar em 27 de Junho de 1909, num estúdio do Porto, o Correa e Moreira Photo, com um chapéu de palhinha na mão e o cabelo encaracolado, penteado como se fosse um artista. Transparece nele um sorriso com uma ponta de malícia.
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Vinhais: Carnaval de 1909 |
Também nesse ano de 1909, encontrei outra fotografia dele no Carnaval de Vinhais, que o retrata no meio de um bando de foliões. A foto é deliciosa pelos contrastes que apresenta. Há um cenário palaciano ao fundo, mas o chão é de terra batida. Os rapazes estão de traje domingueiro, mas no chão há chapéus enfarinhados, que nos revela as tropelias que se preparavam para fazer.
Julgo que a fotografia foi tirada junto à antigo edifício dos Paços do Concelho de Vinhais, dentro das muralhas da vila, no lugar onde é hoje a Casa da Música.
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Os antigos Paços do Concelho de vinhais |
Mesmo depois de casar com Adelaide Maria em 24 de Fevereiro de 1910, o meu avô continuou apreciar a folia.
Em Junho, desse ano há outra fotografia do António da Purificação, tirada em Macedo de Cavaleiros, no meio de um grupo musical vinhaense, a Orquestra da Sociedade 6 de Janeiro, o que prova, que também tinha talentos musicais. Aliás, até ao momento, desconhecia inteiramente que o meu avô foi músico. A fotografia apresenta uma disposição das pessoas e dos elementos semelhante à anterior. Vemos o grupo todo em pose e a seus pés, os instrumentos musicais, em vez dos chapéus.. Nota curiosa, o instantâneo capturou um momento do dia 20 de Junho de 1910, 3 meses e tal antes do 5 de Outubro e por isso ainda vemos a Bandeira monárquica ao fundo.
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A bandeira da monarquia ao fundo |
Passados 7 anos do casamento, já mais corpulento e com uns 4 filhos a cargo, o António da Purificação continua a aparentar um ar de malícia nas fotografias, que confesso, acho irresistível. Na fotografia, que aqui apresento, dele e de dois amigos, parece evidente que os três andar-se-iam a divertir e talvez nem sempre da forma mais inocente, mas isto é uma suposição minha, baseada nos olhares de uma simples fotografia.
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Fotografia de 1919. António da Purificação é o último do lado direito |
Em contraste, não há fotografias da minha avó materna, Adelaide Maria, para estes anos de 1909 a 1919. Certamente, que não a deixariam frequentar festejos carnavalescos. Só sairia de casa para fazer uma ou outra visita ou para ir à igreja. Nem à escola foi. Aprendeu a ler com a mãe, que foi educada num recolhimento religioso. Mas, apesar de oficialmente analfabeta, a minha avó era uma leitora voraz. Lia tudo o que encontrava, desde obras piedosas, a romances, passando por jornais e revistas. Muitos anos mais tarde, quando um dos filhos estudava direito, até livros jurídicos lia se os apanhava esquecidos em alguma mesa.
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Não há fotografias da Adelaide Maria para o período de 1909-1919 |
Durante o ano 1909, a minha avó Adelaide Maria, estaria em casa, a bordar, ou talvez tivesse um romance escondido na cestinha da costura, que tiraria mal a mãe abandonasse a sala e como eu afirmei anteriormente, poucas vezes sairia de casa. Estaria certamente autorizada a visitar a sua tia, também Adelaide Maria (1867-1948), casada com um Senhor Fernandes, que tinha um armazém de tabacos, em Vinhais, num sítio onde era antigo convento de Santa Clara. Nesse armazém trabalhava o meu avô e talvez com a conivência da titi, ou do senhor Fernandes, o patrão, os dois iniciaram um namoro e acabaram por casar a 23 de Fevereiro de 1910. Fizeram-no contra a vontade dos pais dela. Era um casamento desigual. Ela era mais rica e ele de famílias mais humildes. Os pais da minha avó eram monárquicos e o meu avô republicano e em 1909-1910 essa distinção política cavava fossos entre as pessoas.
Não sei se os meus avós foram felizes no casamento e nem sei se virei a sabe-lo. Em todo o caso, não deixa de ser tocante a fotografia que o meu avô entrega à jovem Adelaide em 13 de Janeiro de 1911, em que escreve Do só teu António. Mesmo hoje, já não acreditando que os outros sejam só nossos e muito menos na fidelidade, gostaríamos que alguém nos escrevesse, que só a nós nos pertence.
Não sei se foi por causa desta dedicatória apaixonada, mas a fotografia mereceu ser emoldura numa armação revestida em seda de Bragança, bordada a fio de prata e decorada com flores feitas com metades de casulos de bicho-da-seda. Ainda hoje está em casa da família da minha mãe a testemunhar um amor ocorrido há 103 anos.
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Trabalho em seda. O bordado é a fio de prata e as flores são feitas com casulos de bicho-da-seda. Ainda se encontra na casa da família da minha mãe. |