Há uns bons 4 ou 5 anos passei por Óbidos, que é sempre aquela terra que nos faz esquecer que o património arquitectónico é mal tratado em Portugal e vi umas alminhas do século XVIII lindas, numa daquelas casas antigas. O Manuel fotografou-a e fiquei com a imagem em arquivo (foto superior), pensando sempre que um dia conseguiria comprar por um bom preço na feira-da-ladra um azulejo ou painel de azulejos das alminhas, num daqueles golpes de sorte, que acontecem 10 em 10 anos. Mas, como dizem os franceses,
Hélas!, pois essas oportunidades raramente surgem e lá fiquei eu a sonhar com alminhas para a minha casa.
Depois, um dia a caminho da Feira-da-ladra, na Rua de S. Vicente descobri, que uma antiga farmácia, que eu conhecia do tempo em ali morei, era agora uma oficina de cerâmica especializada em réplicas de faiança e azulejos antigos, mas também recriações contemporâneas destas duas artes, que em Portugal foram absolutamente fervilhantes. A dona da oficina, a Cristina Pina é uma simpatia e as visitas à loja dela tornaram-se motivo para amena cavaqueira sobre azulejaria e faiança. A Cristina descreve os processos químicos com que restaura, ao mesmo tempo que nos mostra como se invertem os mesmos processos para dar um ar envelhecido às peças. Numa dessas conversas descobrimos que adorávamos as alminhas do Purgatório e então ofereci-me para lhe dar a minha fotografia para ela executar uma réplica, um dia que tivesse tempo.
Foi passando o tempo e fui-me também interessando pelo significado das alminhas do Purgatório e do que queriam dizer as siglas que as acompanhavam: PNAM.
As alminhas existem espalhadas por quase todo o País e encontram-se normalmente em encruzilhadas e às saídas das terras. Representam umas alminhas no meio das chamas e são acompanhadas pelas siglas PNAM.
Segundo uma certa ideia não confirmada, o culto das alminhas terá tido origem em rituais pagãos, nomeadamente nos deuses das encruzilhadas, os Lares Compitales dos romanos, que se acreditava protegerem os viajantes.
No entanto, o dogma que dá origem a este culto, de que existia um purgatório onde ficavam a arder as almas pecadoras, mas não o suficiente para irem direitas para o inferno, só foi definido na Contra-Reforma, em particular depois do Concílio de Trento, em 1563. Mas o que é mais curioso neste culto é que se acreditava, que pela oração dos fieis se podia alterar este estado de coisas e fazer transitar as almas do Purgatório para o céu.
Não há afinal uma relação directa entre os Lares Compitales dos romanos e as Alminhas do Purgatório. Uns são deuses que protegem os caminhos e os viajantes, outros são objectos de culto em que os vivos intercedem pelos mortos através da oração. As Alminhas serviam para as pessoas se lembrarem que esta vida é um caminho e como tal, quando passavam junto destas, paravam para orar pelos que no purgatório esperam que o arcanjo São Miguel os leve para o céu, conforme se pode ler nas inscrições características:
- Ó vós que ides passando / Lembrai-vos de nós que estamos penando / P.N.A.M.;
- Pelas almas do Purgatório / Padre Nosso / Avé Maria;
- Nós penamos e vós zombareis / Mas lembrai-vos que em breve como nós sereis.
A relação entre os culto aos deuses Compitales e as alminhas talvez seja precisamente a ideia de caminho e de viagem. O primeiro culto protegia uma viagem mais prosaica de um ponto até o outro da terra e o segundo culto era relativo a um caminho no além.
O culto das Alminhas aparece muitas vezes associado a S. Miguel arcanjo (imagem superior da colecção da Sociedade Martins Sarmento), o anjo do arrependimento e da justiça, representado muitas vezes com uma balança, onde se vêem alminhas a serem pesadas. O grande especialista em iconografia cristã, Louis Reaud afirma que esta forma de representar S. Miguel foi introduzida na arte pelos cristãos egípcios, que mais não fizeram, do que reproduzir a imagem do Deus Anúbis. Acreditava-se que S. Miguel podia resgatar e transportar as almas do Purgatório.
S. Miguel Arcanjo com a balança para pesar as almas. Museu de Alberto Sampaio, Guimarães
Finalmente, Nossa Senhora do Carmo, com o seu escapulário é outro culto associado às alminhas, conforme se pode ver no painel do Museu Nacional do Azulejo, inv 6111 . Recorria-se à Virgem que podia interceder pelas almas penadas, sobretudo se envergasse o escapulário, que se julgava ter virtudes especialíssimas. Por exemplo, os membros das confrarias carmelitas acreditavam que se envergassem o escapulário na hora da morte seriam resgatados do Purgatório por Nossa Senhora do Carmo, logo após o seu falecimento.
Em suma, rezando um Padre-nosso, Ave-maria (PNAM) cada vez que se via um destes painéis de azulejos resolvia-se o problema das alminhas penantes.
Há cerca de duas ou três semanas, depois de uma longa espera, o Manel passou pela oficina da Cristina Pina a S.Vicente e a minha réplica do azulejo de Óbidos estava pronta. A cópia está tão bem feita, que o azulejo apresenta a superfície ondulada e bolhas estaladas como os antigos vidrados. As alminhas já encontraram lugar na parede da minha sala e todos os dias me recordam que somos meros passageiros em trânsito num mundo abandonado por Deus.