sexta-feira, 25 de abril de 2014

Imagens de roca, articuladas ou de vestir

Este blogue nunca teve a vertente de noticiário cultural. Já fiz durante alguns anos esse tipo de trabalho na página oficial da internet de um organismo da cultura e fartei-me disso. Noticiar só porque é novidade não faz muito sentido. Importam-me mais as coisas que nunca passam de moda e cujo interesse é permanente.

Mas, hoje resolvi quebrar um pouco essa norma e escrever sobre uma exposição que me impressionou pela sua beleza pungente, apresentada no convento do Salvador em Évora, intitulada A cenografia barroca e as imagens de vestir
Imagens de vestir num cenário espectacular
Organizada pela Direcção Regional de Cultura do Alentejo - Museu de Évora a exposição é pequena, consta de pouco mais de meia dúzia de imagens de roca ou de vestir, não há um catálogo sequer, mas as imagens são lindas e o cenário, a igreja do Convento do Salvador, inteiramente revestida de azulejos do século XVII é fabuloso. Évora surpreende-nos sempre pelo cuidado que põe nos seus monumentos. Mas a exposição não apresenta só as santas de roca ou as imagens de vestir. Mostra também os seus enxovais, como os vestidos de seda bordados a ouro, as saias com estampados sumptuosos, os corseletes, as capas, a roupa interior de linho fino com rendas, os sapatos e as sandálias. 
A associação entre as santas de roca e as roupas, apresentada nesta exposição, é essencial para a compreensão do significado destas imagens de arte sacra.

Estas imagens de roca ou de vestir nunca foram muito valorizadas pela arte. O nosso conceito de belo é o das esculturas gregas em pedra, despidas de qualquer pintura ou quanto muito o de uma boa escultura em madeira, onde o escultor mostra todo o virtuosismo da sua arte. Agora estas imagens são meras armações de pau, apenas com um rosto e umas mãos, ou bonecos articulados onde só as partes destinadas a ser vistas são objecto de um tratamento artístico cuidadoso. São feitas para iludir, diríamos nós, que não temos crença em Deus, na Virgem, em Santos, ou em milagres, mas nos séculos XVII e XVIII, no tempo em que foram concebidas, as pessoas ofereciam vestes à Virgem para agradecer as graças concedidas. Ainda que o seu corpo fosse uma mera armação de pau, o poder de uma Virgem media-se pela riqueza do seu enxoval e das suas jóias. Uma Nossa Senhora com um grande guarda roupa, com muitos brincos em ouro e colares de pedras preciosas era uma santa cheia de poder, miraculosa, capaz de curar os crentes das doenças mais temíveis e fazer chover em anos de seca.

Por exemplo, a minha trisavó, Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão, para agradecer à Nossa Senhora da Azinheira a graça de a ter feito sobreviver a um parto difícil, desde 1878, emprestava todos os anos à Santa um colar precioso feito em minas novas, que saia ao pescoço da imagem no dia da procissão. Esse costume sobreviveu à sua morte em 1902 e manteve-se por mais de cem anos, até que um padre ou alguém da comissão fabriqueira, resolveu meter o dito colar num cofre e de lá nunca mais saiu, coisa que me aflige sinceramente, eu que não tenho crença alguma, quanto mais aos católicos convictos devotos da Senhora da Azinheira.

Quero eu dizer com isto, que o valor destas imagens é indissociável das suas vestes, dos seus diademas e das suas perucas. Só o conjunto da imagem e do enxoval permite respeitar simultaneamente o valor artístico, antropológico e religioso destas santas de rocas, imagens articuladas ou de vestir.
O valor destas imagens é indissociável das suas vestes, dos seus diademas e das suas perucas
Aliás, é curioso, que o próprio acto de vestir estas santas, na véspera de um período religioso especial como a Páscoa ou de uma grande procissão tinha um carácter quase ritual. Quem se encarregava disso eram as mulheres mais devotas e faziam-no à porta fechada. Não sentiam que estavam a vestir uma boneca qualquer, mas sim uma verdadeira Senhora. Há muitos anos, em Castelo Branco, nas vésperas da Páscoa, depois do jantar, portanto já fora de horas, entrei com uns amigos numa Igreja e surpreendemos um grupo de senhoras a vestir uma Santa de Roca e elas ficaram embaraçadas, envergonhadas mesmo, porque estranhos viram a Senhora quase sem vestes. Foi como se tivéssemos de algum modo perturbado o pudor da Santa.

Esta pequena mas espectacular exposição permitiu-me também confirmar que a minha Santa de Roca terá sido feita no Século XVIII e é agora o pretexto que precisava para mostrar uma nova fotografia dela, depois duma pequena intervenção de restauro e limpeza, que pôs à vista as lágrimas que lhes escorrem dos olhos, anteriormente encobertas pela sujidade. 
O restauro da minha santa de Roca pôs à vista as lágrimas
Talvez os mais crentes acreditem que as suas lágrimas caiam pela promessa, que Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão fez em 1878 à Nossa Senhora da Azinheira e que foi quebrada de forma insensível pelos responsáveis daquela igreja em Outeiro Seco.


Alguma bibliografia:
Les statues habillés dans de catholicisme: entre histoire de l'art, histoire religieuse et antrophologie / Marlène Albert Lllorca
In 
Archives de sciences sociales des religions, 164 (octobre-décembre 2013), p. 11-23

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Um menino travesso em azulejo


Já é quase uma tradição. Na Páscoa, o Manel e eu decidimos esburacar as paredes e colocar azulejos antigos na sua casa do Alentejo. Há uns que pintam ovos de Páscoa, outros, como nós, entretêm-se a brincar aos trolhas.
O antes

Desta vez o desafio era grande. Tratava-se de colocar em duas paredes 81 azulejos, restos de três diferentes painéis historiados, isto é, conjuntos de azulejos que formam uma composição onde se conta uma história, por exemplo,  episódios da vida de um santo, de Cristo, batalhas ou cenas mitológicas. Claro, das cenas narrativas propriamente ditas, o Manuel não tem os azulejos. Dos dois primeiros painéis, o meu amigo tem os restos das cercaduras, que rodeariam as cenas principais e do terceiro possui apenas o fragmento de um putti.

Tomámos a decisão de fingir, que se tratava de um único painel e formámos um conjunto, pretendendo sugerir a quem entra em casa, que um dia, quando se se removeu o estuque das paredes foram descobertos por acaso pequenos apontamentos de azulejos aqui e acolá, restos de um painel grandioso. O traço escolhido para os unir foi, além do mesmo azul e de uma certa familiaridade estilística, uma barra de azulejos marmoreados na base.
Durante os trabalhos
Depois, de tomadas as decisões vieram os grandes trabalhos. Houve que remover a mobília, os quadros, as dúzias de pratos pendurados na paredes e as carpetes. Foi necessário tapar tudo com plásticos, desenhar a na parede a mancha da qual se ia retirar o estuque, usar uma rebarbadora para fazer os limites na parede e depois com martelos e maços picar a parede para retirar todo o reboco. Tudo isto fez uma sujidade alucinante, sobretudo a rebarbadora, que produziu umas nuvens de poeiras, que julgo serem  em tudo semelhantes aquelas produzidas pela bomba de Hiroxima.
De seguida fez-se a massa, e começou a colocação dos azulejos. O trabalho arrastou-se ao longo de uma tarde e de uma manhã e a limpeza, que coube ao pobre Manuel, por mais um dia. 


Na realidade, o que aqui se vê é a colagem de restos de três painéis diferentes
Foi uma trabalheira inaudita, mas os resultados não nos desapontaram. A azulejaria portuguesa tem esta capacidade de transformar um cubo banal e sem graça, num espaço alucinante, onde se abrem perspectivas para outros mundos.

O resultado final
Numa parede, em todos os jantares que o Manuel vier a dar, existirá um menino travesso, que do seu mundo do século XVIII, nos espreitará e talvez, no final da refeição, quando todos se tiverem levantado, ele saia furtivamente do seu refúgio para comer os restos do pudim.


domingo, 13 de abril de 2014

Dois covilhetes da Fábrica de Miragaia ou Le joli temps du lilas


Neste tempo em que os lilases estão em flor no Alentejo, o seu perfume delicado parece ter inspirado o destino, que pôs à minha frente na feira de velharias de Estremoz, um covilhete Miragaia, da série País, marcado, e apenas por vinte euros. Nem queria acreditar, nem regatei, tirei a nota, paguei logo e quase que fugi com a peça, com medo que aparecesse o marido da vendedora gritando que uma faiança Miragaia só se vende com um preço de, pelo menos, três digitos. Enfim, nem sei se a Senhora tinha marido ou companheiro, mas que corri, corri em direcção ao Manel, e mostrei-lhe o meu pequeno tesouro, a medo, como se mostra uma droga ilegal comprada ali na esquina. Continuámos pela Feira e duas ou três bancas à frente, estava outro covilhete Miragaia, igualito ao meu, só que em melhor estado e custando três 3 vezes mais, o que mesmo assim era mais barato, para uma peça genuinamente marcada Miragaia.  O Manuel não a deixou escapar e voltamos os os dois para casa, cada um com o seu covilhete.

Apesar de haver nas feiras de velharias muita faiança azul e branca, umas versões ingénuas do padrão inglês do salgueiro, o willow pattern, vendidas como se fossem Miragaia, na verdade a louça marcada e realmente fabricada por Miragaia é rara. A marca deste covilhete, M.P. quer dizer Miragaia Porto e foi utilizada no 2º período de fabrico (1822-1850) desta conhecida manufactura da cidade do Porto.

O Museu Nacional Soares dos Reis no Porto, possui nas suas colecções um covilhete igualzinho ao meu e ao do Manel, com as mesmas dimensões e tudo,  também datado entre 1822-1850.
Covilhete do Museu Nacional de Soares dos Reis, inv. 259 Cer CMP/ MNSR

Normalmente esta decoração da Fábrica Miragaia, que imita de uma forma livre e ingénua um edifício indiano, costuma ser conhecida pelo motivo País, porque no passado, as representações de paisagens na loiça eram sempre conhecidas por países. Até mesmo os pintores a óleo especializados em paisagens, eram no século XVII, designados por pintores de países. 

Estou tão encantado com o azul destas faianças de Miragaia, que vos deixo com a inspiradora música de Barbara, Le temps du lilas.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Um museu dos coches numa estampa alemã

Um detalhe da estampa

Há cerca de 4 anos mostrei aqui no blog esta estampa, representando um momento da cerimónia da coroação de Carlos VI, como Imperador do Sacro Império Romano Germânico, em 1711, na cidade alemã de Frankfurt am Main.

É uma gravura de que aqui no blog é difícil dar ideia das suas enormes dimensões, 59 x 36 cm. O tema é curiosíssimo, pois representa um desfile real de carruagens, coches e cavaleiros, numa representação em tiras, em tudo semelhante ao de uma actual banda desenhada. Os pormenores são verdadeiramente deliciosos, como por exemplo verem-se as carruagens, a curvar, mudando para a tira superior.

A estampa mede 59 x 39 cm
A gravura apresenta uma legenda em alemão, Einzug Ihro Römischen Kayserlichen Mayestaet Caroli VI in Frankfurt am Mayn / Den 19 Dech Ao 1711, que me permitiu data-la e identificar o tema, mas nunca consegui descobrir o impressor, nem se tinha sido ou não arrancada de um livro.

Einzug Ihro Römischen Kayserlichen Mayestaet Caroli VI in Frankfurt am Mayn / Den 19 Dech Ao 1711
Pior ainda, todas as figuras estão numeradas o que significa, que a acompanhar a gravura, terá existido uma legenda identificando todas as personalidades e figurões do cortejo e senti que me faltavam uns quantos elementos para decifrar o mistério desta estampa, comprada na capital magiar.

os coches que sobem para a tira de cima
Desde há quatro anos para cá, de vez em quando lembrava-me do mistério desta gravura e lançava-me ao google e fazia pesquisas e mais pesquisas pelos termos Einzug Ihro Römischen Kayserlichen Mayestaet Caroli VI in Frankfurt am Mayn, 1711, mas ia ter páginas de arquivos e bibliotecas alemãs e não conseguia obter grandes resultados. Enfim, não domino de todo o alemão e só conheço meia dúzia de palavras chaves, que me permitem pesquisar por autor, título e assunto numa base de dados bibliográfica, de modo que, esbarrava contra toda aquela algaraviada germânica.
Einzug der Kurfürsten und Wahlbotschafter zur Krönung Josephs II. nach Frankfurt, 1764. A representação de cortejos através do esquema gráfico em tiras era comum na Alemanha nos séculos XVII e XVIII

Contudo, a persistência, dá sempre os seus frutos e de tanto pesquisar, comecei a perceber que existiam muitas estampas impressas em Frankfurt am Main ao longo dos séculos XVII e XVIII, representando acontecimentos da vida da cidade, como a chegada de embaixadas estrangeiras ou de cortejos reais, todas elas, obedecendo a este esquema de distribuição das personagens por tiras. Apercebi-me então que a representação de cortejos e desfiles em formas de tiras era uma convenção artística comum na época. Impressão essa que confirmei na exposição A encomenda prodigiosa, que teve lugar no Museu Nacional de Arte Antiga, em 2013, onde aparecia reproduzida uma estampa proveniente da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, representando uma visita do Cardeal Patriarca de Lisboa, por ocasião do baptismo D. António, Príncipe da Beira, em 1795 e que a julgar pelo tamanho da gravura, deve ter sido uma visita de grande aparato. Aliás, pensando bem esta representação de um tema com muitas personagens em formas de tiras é velha como o mundo, basta lembrar-nos da coluna de Trajano em Roma, que representa a conquista da Dácia, ou a arte do Antigo Egipto.
Outro detalhe da minha estampa. A técnica de representar cenas com muitas personagens num esquemas de tiras é velha como o mundo e já os antigos egípcios e os romanos a usaram

No entanto, apesar de ter encontrando muitas estampas alemãs da mesma época, representando os cortejos reais para aclamação do novo imperador e das várias cerimónias que tinham lugar na cidade de Frankfurt por essa ocasião, todas elas segundo o esquema das tiras, não conseguia descobrir de forma nenhuma uma gravura igual à minha. Comecei a fazer então pesquisas combinadas no google, pelos termos em inglês, Coronation, Frankfurt am Main1711, Charles VI e pela palavra alemã Einzug. Nem me perguntem como, mas fui ter a um site americano, https://archive.org, que reúne documentação digitalizada de várias instituições americanas, onde estava referenciado um livro alemão, editado em 1712, com um título que nunca mais acabava, da colecção do Getty Research Institute, mas do qual existia uma descrição em inglês das estampas nele contidas, two plates showing the succession of coaches of the Emperor's entry in Frankfurt, que coincidia exactamente com o que eu procurava. Enchi-me de pachorra, abri o livro que está todo digitalizado e resolvi percorrer uma à uma as 418 páginas que o compõem. Folheei, folheei e já estava quase desesperado quando já quase no final da obra encontro finalmente uma estampa igual à minha!!!


Em suma a minha bela gravura, pertenceu ao livro, que se dá pelo singelo e sintético título Vollständiges Diarium, alles dessen was vor, in und nach denen höchstansehnlichsten Wahl- und Crönungs-Solennitaeten des aller durchlauchtigsten grossmächtigsten und unüberwindlichsten Fürsten und Herrn, Herrn Caroli des VI. ... : sowol im gantzen Heil. Römischen Reich, als auch insonderheit in dieser freyen Reichs- und Wahl-Stadt Franckfurth am Mayn, von Anfang biss zum Ende passiret ist : nicht weniger was diesesmal bey denen gegebenen Visiten, gehabten Audienzien, vor Curialien beobachtet worden, mit hierzubehörigen Contrefaiten und andern zu besserem Verstand der Sachen dienlichen Kupfferstic. Foi uma obra impressa em Frankfurt am Main por Johann David Zunners e Johann Adam Jungen, no ano de 1712 e mede 33 cm de altura.

A folha de rosto do livro Vollständiges Diarium, impresso em 1712, de onde foi retirada a minha estampa.

Embora, o meu alemão se resuma a meia dúzia de termos técnicos de biblioteconomia e de arte, consegui perceber que esta obra é um diário sucinto de todo o processo de eleição e de aclamação de Carlos VI como Imperador. 

O banquete

Refere-se à entrada na cidade do candidato a imperador, bem como de todos os eleitores, isto é, os príncipes, reis e outros grandes titulares, acompanhados por outros nobres e cavaleiros das suas casas (esta minha gravura representa precisamente essa entrada histórica de 1711), mas também a eleição no Kaisersaal, a sagração na catedral, o banquete e o cortejo pela cidade. O livro é tão explícito, que contem esquemas gráficos da localização das pessoas na sala de banquetes, na catedral e no Kaisersaal, que eram dispostas numa complicada hierarquia.

O desfile pela cidade

A obra contem ainda a legenda dos personagens, que constam na minha estampa, mas infelizmente estão impressas em letra gótica alemã e a sua identificação ficará para um outro post. Talvez entretanto, alguma biblioteca americana já se tenha dado ao trabalho de transcrever a letra gótica para caracteres tipográficos modernos e de traduzir as legendas das gravuras para inglês.
Todas as figuras da minha estampa possuem um número, cuja legenda se encontra no livro