sábado, 20 de abril de 2024

Uma faca de manteiga em prata francesa do início do século XX


Como já aqui expliquei, ando a completar um faqueiro de prata herdado da minha avó Mimi, uma coisa em estilo D, João V, dos anos 30 do século XX, de um ourives do Porto. Mas decidi ir comprando as peças ao sabor dos meus impulsos, sem me preocupar que sejam do mesmo estilo da mesma época ou até do mesmo país. No fundo, estou a fazer uma colecção de talheres de prata, em que compro mais por paixão, do que por verdadeira necessidade, já que pouco ou nada recebo em minha casa. Bem sei que isto é pouco racional e tonto e talvez devesse comprar antes um fogão com placa vitro cerâmica ou até um robot de cozinha, que segundo ouvi dizer, faz coisas maravilhosas. Mas ao mesmo tempo que vou comprando pratas, vou começando a estudar um pouco melhor o assunto, do qual não sabia quase nada e o colecionar tem sempre este lado positivo, pois estimula o desejo de saber e conhecer mais.

O cabo está decorado num estilo vagamente Luís XVI 


Este talher de servir que apresento foi comprado em conjunto com mais outros cinco talheres, todos em prata francesa, por um preço muitíssimo convidativo na Feira de Estremoz. É uma faca de manteiga muito bonita, num estilo vagamente Luís XVI e corresponde a um hábito muito requintado do passado. Se hoje em dia, nos apetece barrar um pãozinho com manteiga logo pela manhã, usamos uma faca qualquer e andor que se faz tarde, pois é preciso sair de casa a correr, para apanhar um comboio, o metro, ou um autocarro para chegar ao emprego. Mas antigamente havia estes hábitos refinados. Lembro-me que em casa dos meus pais, quando se ofereciam lanches ajantarados colocavam a uso uma faquinha antiga de manteiga em madrepérola, que era um mimo.

Punção de garantia oficial da França, a cabeça de Minerva, usada entre 1838 e 1973


A faca apresenta no cabo o punção de garantia oficial da França, a cabeça de Minerva, usada entre 1838 e 1973. É uma prata de boa qualidade, pois tem o nº 1 à direita da cabeça. Na lâmina, há uma segunda marca, talvez do ourives. Contudo na época, em que este talher foi produzido, finais do século XIX, inícios do XX, os ourives franceses assinavam a prata de lei com um punção em forma de losango, contendo as suas iniciais ou um símbolo da casa e esta marquinha é rectangular, forma normalmente reservada às ligas com uma quantidade baixa de prata, ou metal prateado. Na prática, isto quer dizer que o cabo é em prata de Lei, de boa qualidade e a lâmina é de uma liga com baixa quantidade de prata, mas também certamente mais sólida e resistente.

Marca de Robert Louis, com estabelecimento, na rue du Temple, nº 7, em Paris, activo em 1917


No site https://www.silvercollection.it/ descobri que esta marca em forma rectangular, contendo as iniciais LR, uma asa, uma palma, três estrelas em cima e quatro em baixo foi usada pelo ourives Robert Louis, com estabelecimento, na rue du Temple, nº 7, em Paris, activo em 1917. Esta Rue do Temple, fica no bairro do Marais onde no passado se encontravam muitas oficinas e estabelecimentos de ourives.

Em suma, esta faca de manteiga é francesa, feita por volta de 1917, mas não consegui apurar se o ourives parisiense Robert Louis produziu só a lâmina, se também o cabo.



É certo que não sirvo pequenos almoços de categoria a ninguém, nem sequer lanches ajantarados para usar esta faca de barrar a manteiga no pão, mas quando os meus filhos aparecem para jantar, utilizo-a para cortar o queijo e é um prazer toca-la. Depois de lavar a loiça, não a arrumo logo, deixo-a um dia ou dois na mesa, ao lado do computador, para admira-la e agora percebo muito melhor o fascínio que a prata sempre exerceu na história da humanidade.

A faca mede 21 cm de comprimento


Ligações consultadas:




quarta-feira, 10 de abril de 2024

Uma elegante junto a pratos ratinho em 1913



Há uns tempos, tentando encontrar notícias sobre os tribunais de guerra criados para o julgamento de conspiradores monárquicos, após as duas primeiras incursões de Paiva Couceiro, resolvi bater todo o ano de 1913 da Ilustração Portuguesa, revista de actualidades, disponível on-line na Hemeroteca Digital. Mesmo quando se têm um objectivo preciso, folhear revistas antigas é uma perdição e rapidamente nos distraímos a ver os anúncios antigos, os figurinos das últimas modas, as crónicas mundanas ou ler notícias de conflitos, que na altura eram muito actuais, como a segunda guerra balcânica e que hoje foram remetidos para notas de rodapé dos manuais de oficiais de história.

Entre todas essas actualidades do passado, encontrei a notícia de um serão literário no Mosteiro de Alcobaça, com fotografias dos vários participantes e chamou-me logo a atenção, o retrato do poeta Afonso Lopes Vieira (1878—1946) e da sua mulher à saída do Mosteiro. Durante o período em que fui bibliotecário na Universidade Católica coordenei o tratamento do espólio de António Sardinha (1887-1925) e existiam muitas cartas de Afonso Lopes Vieira, que se distinguiam de imediato das outras, porque aquele poeta tinha uma caligrafia linda, muito pessoal, mas legível e usava ainda um papel timbrado com o motivo de uma vieira. Desde logo, percebia-se que era um esteta. Também me recordo muito bem de ver a sua casa de S. Pedro de Muel, que era e é um encanto. Apesar de ligado ao Integralismo Lusitano, a seguir ao 28 de Maio de 1926, demarcou-se do Salazarismo. Sempre simpatizei com esta figura, embora tenha aprofundado pouco ou nada sobre a sua obra.

O poeta Afonso Lopes Vieira


Este serão literário ou festa de arte foi organizado por Manuel Vieira Natividade (1860-1918) , ouviu-se muita poesia e naturalmente os convidados eram mulheres e homens de cultura. À saída ou à entrada do evento, os convidados percorreram o mercado semanal de Alcobaça e um casal elegante parece ter-se encantado com as cerâmicas. A jovem muito elegante com uma saia muito cingida e um lenço artisticamente enrolado parece estar a passar dinheiro ao senhor. Não sei o que compraram, se a cerâmica vidrada, se a panela de barro ou os pratos ratinhos no canto esquerdo. Nesta época, em 1913, neste meio de pessoas como o poeta Afonso Lopes Vieira ou o Manuel Vieira Natividade, que valorizavam a tradição, a história e a etnologia era provável que se apreciassem os ratinhos, estes pratos de faiança com uma decoração inconfundível.

Os ratinhos estão no canto inferior esquerdo

Achei muita graça a esta imagem, pois quanto vejas fotografias antigas de mercados e feiras, tento sempre identificar, que tipo de cerâmicas, se encontravam à venda, mas a definição é sempre má e nunca consigo descortinar nada. Mas desta vez, tive sorte e encontrei pelo menos três ratinhos, acabadinhos de sair da oficina em 1913.


Fonte consultada: Ilustração portuguesa, nº 394 (8 Setembro de 1913)

sábado, 6 de abril de 2024

Um bule em Britannia de meados do século XIX





Este velho bule apresenta todas as marcas do tempo. Ao longo da sua vida de cerca de um século e meio foi muito usado, quebrado várias vezes, reparado e soldado. O último acidente que sofreu foi quando o tentei limpar e fiquei com pega na mão, partida em três partes. Depois desse acidente escondi-o num canto qualquer da minha casa e ali ficou esquecido durante mais de uma década. Mas há uns tempos, mandei arranjar uns talheres de prata antigos numa oficina muito boa, ali no Bairro das Colónias, Rua de Timor, nº1 e lembrei-me de o levar lá e o Senhor fez um óptimo trabalho, pois além de soldar a pega colocou uma tira de metal por dentro, para lhe dar solidez.

Este bule é muito engraçado, pois tem uma forma muito típica da ourivesaria e da cerâmica do século XVIII, bojudo, com a pega da tampa em forma de uma pequena abóbora em cima de uma folha, mas a decoração gravada é uma coisa indefinida, entre Renascença e o gótico, enfim uma mistura de estilos muito ao gosto do século XIX. O problema é que não apresenta qualquer marca de fabrico, ou talvez a tenha tido, mas com tanta pancada que apanhou, marcas de soldaduras e reparações, ela desapareceu completamente.



Por uma questão de intuição, achei seria uma peça estrangeira, talvez inglesa ou francesa e provavelmente feita em peltre e comecei a fazer umas tantas pesquisas na net em inglês e francês tentando encontrar peças idênticas. E com efeito encontrei umas quantas coisas muito semelhantes e até um estudo muito bem feito, intitulado Britannia Metal: a new perspective/ Jack L. Scott, publicado na revista Spinning Wheel, vol. 29, nº2 , (Maio, 1973) e que a Nederlandse TinVereniging teve a feliz idéia de digitalizar e colocar on-line.

Este bule será certamente inglês, fabricado em Sheffield ou eventualmente em Birmingham, numa liga de metal desenvolvida na primeira cidade, que ficou conhecida pelo nome Britannia. Para os menos familiarizados com estes assuntos, Sheffield foi um grande centro industrial inglês, que desde meados do século XVIII se tornou famoso pela sua cutelaria e metais para uso doméstico. Nesta cidade desenvolveram-se toda uma série de técnicas e inventos para fabricar utensílios que pareciam prata, mas eram ligas com baixa percentagem daquele metal, casquinhas, galvanoplastias ou simplesmente metal prateado.

Um destes destas técnicas para fabricar utensílios que sugerissem a prata, foi desenvolvida cerca por um certo James Vickers de Sheffield, que começou a produzir um metal branco, cuja fórmula era semelhante ao estanho tradicional, excepto, que em vez de chumbo, se adicionava antimónio e um pouco cobre, permitindo a esta liga boas características para a fundição e uma cor mais próxima da prata. A ausência do chumbo, além de permitir a tal cor mais prateada, era também mais saudável para a saúde humana, já que o esse metal é tóxico. Rapidamente e ao longo dó século XIX, a produção destes utensílios em Britannia cresceu exponencialmente, estendendo-se também a cidade de Birmingham, atingindo o seu apogeu em meados dessa década. As formas usadas eram as das cafeteiras, açucareiros e bules em prata do século anterior e eram vendidas a preços muito mais baratos que a prata, as casquinhas, ou as de metal com baixa percentagem de prata.

Imagem retirada de Britannia Metal: a new perspective/ Jack L. Scott. A datação pelas pegas


As formas usadas nos vários produtores desta liga Britannia foram estudas e estão sistematizadas. Se no início do século as pegas das cafeteiras ou bules eram em madeira, tal como as de prata, a partir de 1840 generalizaram-se as pegas em metal, exactamente como as do meu bule, que são típicas do período entre 1841-1845. Do mesmo modo, a pegazinha da tampa do bule, em forma de abóbora foi sobretudo usada por volta dos anos 40 dessa década. No entanto, o bico do bule é datado de cerca de 1860.

Imagem retirada de Britannia Metal: a new perspective/ Jack L. Scott. A datação pelas pegas da tampa


Imagem retirada de Britannia Metal: a new perspective/ Jack L. Scott. A datação pelo bico do bule.


Em suma este bule foi fabricado em Inglaterra, em Sheffield ou eventualmente em Birmingham, numa liga conhecida pelo nome de Britannia, em meados do século XIX. Foi uma peça muito usada ao logo de mais de 100 anos por uma família, com inúmeras reparações e que agora encontrou uma reforma tranquila na minha casa.




Bibliografia consultada:

Britannia Metal: a new perspective/ Jack L. Scott
In
Spinning Wheel, vol. 29, nº2 , (Maio, 1973)