Nas suas memórias, a Yourcenar escreveu que começamos por fazer genealogia levados por um sentimento de vaidade. Porém à medida que exploramos as genealogias de todos os ramos e nós temos 4 avôs, 8 bisavôs, 16 trisavôs e 32 tetravôs, número que se vai multiplicando à medida que recuamos no tempo, chegamos rapidamente a uma sensação de abismo, perante o mar de mortos que temos por detrás de nós. Também nessas explorações percebemos que tanto descendemos de fidalgos unidos pelos laços sagrados do matrimónio, como de gente rude dos campos, que consumou os seus amores num celeiro ou ainda de judeus, padres ou talvez até dos bastardos de um rei.
Recentemente decidi explorar um dos ramos da família da minha mãe, gente sem os pergaminhos da família Montalvão, do meu lado paterno. A minha bisavó materna, Graça Pires de Morais era filha ilegítima e depois de a sua mãe morrer, quando tinha apenas 4 anos, o seu pai, Francisco Germano Pires, que era um homem abastado, levou-a consigo para Vinhais, onde viveu na sua companhia, até à idade dos sete anos, momento em que o pai a internou no recolhimento das Oblatas da Mofreita. Viveu nessa casa religiosa destinada a raparigas pobres até aos 29 anos e só casou aos 31 anos com o meu bisavô, um matrimónio contrariado por ambos os pais.
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O recolhimento das Oblatas da Mofreita. A Maria da Graça será uma das jovens ou meninas do grupo
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Resolvi apurar mais alguma coisa desta bisavó cuja infância e juventude pareciam-me obviamente infelizes. Encontrei o seu assento de baptismo na paróquia de Sobreiró de Baixo, freguesia do Concelho de Vinhais e lá se encontra registado o seu nascimento no dia 2 de Março de 1859, tendo sido baptizada, no dia 6 do mesmo mês. Era filha de Balbina Felicíssima e de pai incógnito e neta materna de Angélica Maria, de Sobreiró de Cima de José Gonçalves, de Sobreiró de Baixo. Neste simples assento, transparece uma certa pobreza. Não há apelidos sonantes, o pároco nem se deu ao trabalho de indicar a profissão da mãe, nem dos avôs, nem usou o Dona antes do nome das mulheres, como era hábito quando se referiam a senhoras de condição nestes registos paroquiais. Esta seria uma família de simples jornaleiros, de que não merecia a pena gastar muita tinta.
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O assento de baptismo de Maria da Graça |
Também crianças bastardas nesta época e neste meio rural eram um assunto banal para que o padre Raimundo Gomes, que lavrou o assento de baptismo da minha bisavó, perdesse muito tempo com ele. Há um estudo sobre demografia e estrutura familiar da paróquia de Santalha, uma aldeia do Concelho de Vinhais, não muito longe dali e com características semelhantes, em que a autora Berta Gonçalves Morais apresenta números impressionantes. Em Santalha, na década de 80 do século XIX, no conjunto das crianças nascidas 35,2% eram filhos naturais, na década seguinte, atinge a proporção de 40,8% no início do século regista-se a mesma tendência 44,1% e em 1910-19, quase metade das crianças, 46% eram filhos naturais. Portanto o caso da pobre Balbina Felismina e da sua filhinha Maria da Graça inscreve-se num padrão social típico de uma época e de um meio.
Nesse obra, intitulada Ruralismo e família em Vinhais: estudo de caso sobre a paróquia de Santalha (1886-1909) a autora refere que umas das razões para essa elevada taxa de filhos bastardos relaciona-se com uma prática, que pretendia evitar fraccionar a propriedade, isto é, apenas a um ou outro filho é consentido o casamento e as terras são herdadas por aqueles que tem descendentes. Os outros filhos ficam solteiros ou seguem a carreira eclesiástica. Talvez a especialista em sociologia familiar, Berta Gonçalves Morais esteja certa, mas creio que também haverá outra razão mais óbvia. Nos meios muitos pobres, ontem como hoje, as mulheres são sempre mais vulneráveis ao assédio ou mesmo à violência sexual.
Mas o que se passava nestas sociedades rurais no interior de Portugal, durante o século XIX escapa um pouco ao nosso juízo contemporâneo.
Se a pobre Balbina Felicíssima baptizou a filha como sendo de pai incógnito e terá assumido o encargo da criança, nos seus primeiros quatro anos de vida, quando morre, é o pai que tomará conta da menina e aos sete anos interna-a no recolhimento das Oblatas da Mofreita. Portanto, a criança não lhe seria tão indiferente como isso, de outra forma deixá-la-ia aos cuidados dos avós, ou simplesmente morrer à fome na rua. Nas Oblatas da Mofreita a menina aprendeu a ler e a escrever, a fazer bordados, rendas e outras artes femininas e creio eu, que alguns rudimentos de latim e francês. Tudo isto era muito bom numa época, em que cerca de 80 por cento da população feminina era analfabeta.
Por outro lado, apesar de ser uma filha espúria, a Maria da Graça usou o apelido do pai, Pires, quando se casou com o meu bisavô em 1889. O mais natural era que assinasse como Maria da Graça Gonçalves, o nome materno. Poder-se-ia ter dado o caso de o Pai a ter perfilhado entretanto, mas no assento de casamento, a minha bisavó é referida novamente como filha de pai incógnito. Depois do casamento passou a assinar por Graça Pires de Morais, nome que se encontra em muitos dos livros, que pertenceram ao Recolhimento da Mofreita e que ela comprou ou mandou trazer a seguir à República. Embora o Francisco Germano Pires não tenha apoiado o casamento, sei através de um pequeno caderno que o meu bisavô, Clemente da Ressurreição Morais escreveu com breves apontamentos sobre a sua vida e os seus antepassados, que acabou por se reconciliar com a filha e passou os últimos anos da sua vida com o casal.
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A Graça Pires de Morais, com o marido e os filhos
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Tudo isto me faz pensar que a forma como se estruturavam as famílias no século XIX era bem diferente da nossa. Também me comoveu um pouco conhecer a existência desta trisavó, que eu ignorava totalmente a existência, a pobre Balbina Felicíssima, cuja mãe, a minha quarta avó, Angélica Maria, deve ter afrouxado a vigilância sobre ela e deixou-a entregar-se aos desejos de Francisco Germano Pires. Não tenho um retrato, uma peça de louça, um naperon ou uma simples fita que tivesse pertencido à Balbina Felicíssima, nem ela devia ter nada de seu, mas confesso que passei a ter um certo carinho por esta pobre rapariga do campo, que em tempos se deixou seduzir por um homem abastado.
Bibliografia e fontes consultadas:
Ruralismo e família em Vinhais: estudo de caso sobre a paróquia de Santalha (1886-1909) / Berta Gonçalves Morais. Porto, 2003
Arquivo distrital de Bragança: assentos paróquiais de Vinhais e Sobreiro de Baixo