sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

A rapariga e o ganso: figurinha em biscuit ou entre a Alemanha e a França



Nos mercados de velharias, por vezes há vendedores perigosos, que nos colocam na mão peças a um preço irrecusável e lá voltamos nós para casa com mais um bibelot, um bule, uma chávena ou uma estampa. Foi o que me aconteceu a semana passada com esta figurinha em biscuit, representando uma jovem e um ganso, que tenta bicar aquilo que ela transporta no cesto. Encantei-me logo com esta figurinha produzida naquele movimento característico da arte nova, além de que me fez recordar de imediato uma personagem de um daqueles contos de fadas, em que um príncipe é transformado num ganso por uma bruxa, ou uma rapariga que é pobre vai à feira vender o ganso, que coloca ovos de ouro. Enfim, qualquer coisa desse género.



Mas, esta peça está marcada, o que é raro num biscuit e antes de tentar saber que personagem representa esta peça, fui tentar saber quem foi o seu fabricante. A marca incisa é constituída por dois traços formando um X, com um S, maiúsculo no meio, ou seja, é mais umas das muitas marcas da cerâmica europeia, imitando as célebres espadas cruzadas da porcelana de Meissen. Mas como peças de Meissen nunca aparecem nas feiras e muito menos vendidas 10 euros, fiz uma pesquisa no google, por Meissen porcelain marks fakes e la encontrei uma lista de fabricantes de porcelana e biscuit, que usaram marcas semelhantes às espadas cruzadas daquela mítica fábrica e a partir daí cheguei ao nome do fabricante a Porzellanmanufaktur A.W.F. Kister G.m.b.H., conforme confirmei no site https://www.porcelainmarksandmore.com/. 

Marca da Porzellanmanufaktur A.W.F. Kister G.m.b.H.


Muitas vezes as peças deste fabricante alemão aparecem à venda nos sites de antiguidades como porcelana ou biscuit de Scheibe-Alsbach, nome de uma cidade da Turíngia, onde esta fábrica estava situada. Nunca tinha ouvido falar da cidade de Scheibe-Alsbach, pois infelizmente todos nós vivemos num desconhecimento de tudo o que é alemão. Em todo o caso, a Turíngia, juntamente com a Saxónia ou o Saxe foram e ainda são regiões alemãs grandes produtoras de porcelana e onde abundavam estas fábricas, que produziam e exportavam delicadas figurinhas de biscuit para o mundo inteiro.

Quanto à datação é mais complicado. A marca com as espadas e um S foi usada entre 1905 e 1972, mas por uma questão de intuição, parece-me mais coisa do primeiro quartel do século XX.

O número de série é o 9908


Mas enquanto andava nestas deambulações solitárias pela internet tinha à minha frente à estatueta e percebi que o ar familiar que ela despertava em mim não tinha tanto a ver com os contos de fadas da nossa infância, mas antes como traje da jovem, em particular com o toucado, que parece um gigantesco laçarote e pensei que talvez ela representasse uma alsaciana. Fiz mais umas quantas pesquisas na net e confirmei que a jovem enverga o típico toucado ou coifa da Alsácia, La coiffe à grand nœud. Esta indumentária tradicional da Alsácia é dos trajes típicos mais facilmente reconhecíveis no mundo, mais do que isso só mesmo o das sevilhanas com os seus vestidos com folhos e estampados com bolas. Iniciei então uma serie de pesquisas no google pelos termos alsaciana, estatueta, biscuit, em inglês e em francês e comecei a encontrar a mesma representação, a rapariga com o ganso, em diferentes materiais, gesso, porcelana e bronze, até que descobri que a minha figurinha é uma réplica de uma escultura muito conhecida na cidade de Estrasburgo, a Gänseliesel, em alemão. 



Gänseliesel no jardim da Orangerie em Estrasburgo


A tradução é um bocadinho complicada para português. Gänseliesel quer dizer o ganso da Liesel. Liesel é um diminutivo alemão para Elisabete. Portanto, o melhor é traduzir para português como rapariga do ganso, para não escrever o ganso da Isabelinha ou coisa pior. É um tema muito alemão, que se encontra em cidades, como Göttingen, Monheim am Rhein, Berlim e ainda outras. Na altura, em que esta estátua foi erguida, em 1900, na cidade de Estrasburgo, a Alsácia Lorena tinha a sido anexada pela Alemanha à França uns trinta anos antes e só voltou a ser novamente francesa, depois de 1918. A escultura foi concebida e realizada pelo artista alsaciano Charles Albert Schultz (1871-1953) e instalada no parque da Orangerie daquela cidade e é sem dúvida a sua obra mais conhecida. Normalmente é classificada no estilo no Jugendstil, termo alemão para designar a arte nova.



Em suma, a minha escultura em biscuit foi produzida na Alemanha, na cidade de Scheibe-Alsbach pela A.W.F. Kister G.m.b.H, segundo a escultura Gänseliesel de Charles Albert Schultz (1871-1953) realizada para um parque na cidade de Estrasburgo em 1900. Como essa cidade foi alemã até 1918, creio que o molde desta figurinha terá sido concebido algures entre 1905 e 1918 e apesar do seu ar campestre, é quase um símbolo da terrível inimizade franco-alemã, que esteve na base de três guerras sucessivas, com base na disputa territorial da Alsácia Lorena. Hoje, felizmente, a Alemanha e a França estão em paz e para finalizar estes post, nada melhor do que Göttingen, onde também existe uma Gänseliesel, canção interpretada e escrita por Barbara, essa mulher, nascida em Paris, filha de um judeu alsaciano e de uma judia moldava, perseguida pelos nazis durante a ocupação, mas que celebrou com a sua sensibilidade única a reconciliação franco-alemã.




Ligações consultadas:

https://www.archi-wiki.org/Personne:Albert_Schultz

https://www.navigart.fr/mamcs/artwork/albert-schultz-ganseliesel-250000000005691

https://www.archi-wiki.org/Adresse:Parc_de_l%27Orangerie_(Strasbourg)

https://www.anticstore.com/ganseliesel-106890P

https://www.porcelainmarksandmore.com/germany/thuringia/scheibe-01/index.php

domingo, 19 de novembro de 2023

De regresso a Chaves: aniversários da Aninha há 120 anos


Ana da Conceição de Morais Alves (1881-1974), minha bisavó Aninhas


Prossigo com o trabalho de inventariação do espólio familiar e aos poucos vou descobrindo através das cartas e fotografias o quotidiano e a vida de um dos ramos, os Alves, uma família burguesa do bairro da Madalena, em Chaves, do qual sabia muito pouco.

Encontrei esta fotografia deliciosa da minha bisavó Aninhas, que era Alves de solteira e que casou em 1903, com o meu bisavô, José Maria Ferreira Montalvão. Mas este retrato, tirado no Emílio Biel do Porto, é anterior a essa data. Parece-me muito novinha aqui, teria talvez uns 16 anos e se ela nasceu a 28 de Maio de 1881, talvez esta fotografia tenha sido feita por volta de 1897.

O cartãozinho estampado com uma paisagem e umas flores em relevo. Este material esteve muito em voga nos finais do século XIX e inícios do século XX


Aliás, encontrei duas cartas do irmão, mais novo, o Luís da Conceição Alves (1884-1939), datadas de 28 de Maio, uma de 1900 e outra de 1901, a felicita-la pelo seu aniversário. São cartas muito extensas, este meu tio bisavô era daqueles que escrevia muito e dizia pouco, mas tão afectuosas. Na carta de 1900, tem até a ternura de colocar lá dentro um cartãozinho estampado com uma paisagem e umas flores em relevo. Quando abri a carta, escrita há mais de 120 anos e me caiu o cartãozinho colorido, confesso que até me comovi. Nesta época, o Luís da Conceição teria 16/17 anos e estava a estudar no Colégio de Nossa Senhora do Rosário, em Vila Real, que devia ser uma instituição destinada a rapazes abastados, pois até tinha o seu próprio papel timbrado. Este Colégio tinha sido fundado em 1892 e foi mais tarde, em 1914, transformado em Hospital.

Timbre do Colégio de Nossa Senhora do Rosário, em Vila Real


Também do dia 28 de Maio encontrei um bilhete, artisticamente recortado, que em tempos esteve colado a umas prendas, escrito com a letra da sua irmã, a Marica.





Extremosíssima Aninhas

Mais uma vez vimos parabentear-te pelo teu aniversário natalício, desejamos-te neste dia as maiores felicidades em companhia do teu esposo e filhos.

Oferecemos-te estas insignificantes prendas com prova de gratidão e eterna amizade.

Brindamos-te pois aos teus anos e abraçamos-te efusivamente.

Francisco Luís Alves

Antónia dos Anjos Morais Alves

Maria da Conceição Alves

O bilhetinho não tem data, mas pelas pessoas referidas, terá sido escrito entre 1905 e 1913. No texto, os filhos são mencionados no plural, os dois primeiros nasceram em 1904 e 1905 e a Antónia dos Anjos Morais Alves, mãe da aninhas e minha trisavó estava ainda viva (faleceu a 1-10-1913) Além, dela, assinou ainda o meu trisavô, Francisco Luís Alves (….- 1916) e a Marica, isto é, a Maria da Conceição Alves (1876-1856).

Fiquei a pensar que insignificantes prendas seriam estas, às quais este bilhetinho esteve agarrado. A minha bisavó, Aninhas, gostava de se arranjar e enfeitar. Talvez tivesse sido uma blusa de seda, um corte de cetim, braceletes, uns brincos, uma pregadeira ou um colar. Recordo-me da minha avó Mimi contar que a mãe, embora tivesse muitas coisas boas, pérolas e ouros, preferia de longe as jóias de fantasia, expressão usada então para designar a bijuteria. A avó Mimi contava-nos isto até com alguma reprovação, porque ela ao contrário da mãe, tinha poucas jóias, mas quando as usava, eram boas e verdadeiras.

A pregadeira usada pela Aninhas


Curiosamente, no retrato, apresentado logo no início, a minha bisavó, Aninhas usou uma pregadeira, composta por uma placazinha, com a palavra francesa souvenir recortada e dois berloques pendentes. Talvez seja precisamente uma dessas jóias de fantasia, que alguém lhe trouxe de prenda de França ou até mais provavelmente comprada na Póvoa de Varzim, onde estas famílias do Norte iam a Banhos nos meses de Setembro e Outubro e adquiriam lembranças, ou como dizia na altura souvenirs. Quem sabe ainda se a pregadeira não lhe foi oferecida num dia 28 de Maio qualquer.

Reconheço que estes assuntos são corriqueiros, mas ao mesmo tempo levantam interrogações. A tia Marica tinha uma bonita caligrafia, cursiva e rápida. Percebe-se que foi ensinada por uma boa mestra. Noutras cartas que já li dela, o seu português é bastante razoável. Contudo, ainda não encontrei nenhuma carta sobre como decorreu a educação destas manas Morais Alves, que também sabiam música e tocavam bandolim e violino. Teriam sido educadas em casa, por uma professora particular ou frequentaram um colégio de freiras?

Em todo o caso, escreviam muito melhor, que a minha trisavó, a Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão (1856-1902), de uma família fidalga, mas de uma geração anterior. Esta minha antepassada não fazia pura e simplesmente pontuação e as suas cartas são difíceis de ler. Talvez a educação feminina tenha melhorado um pouco no último quartel do século XIX nestas terras transmontanas.

Já ninguém da família se deve recordar, que o dia 28 de Maio era o aniversário da avozinha, mas estas cartas trouxeram-me um pouco à memória essa figura que ainda conheci.



sábado, 4 de novembro de 2023

O Senhor Jesus da Paciência em Benfica



O meu amigo Manel comprou recentemente este registo muito bonito e encaixilhado numa moldura elegante. Representa o Senhor Jesus da Paciência, que se venerava, na igreja do Convento de Santo António da Convalescença. Achei muita graça porque a escola onde fiz o ciclo preparatório, a Delfim dos Santos, em Benfica, estava instalada no edifício desse antigo Convento, de modo que o conheci muito bem por dentro e depois disso, passei durante anos a fio à sua frente, primeiro a caminho do Liceu e posteriormente da Faculdade. Claro, nesse tempo, o convento fundado em 1643, já estava muito alterado, pois tinha sido transformado em palácio de habitação e depois foi ocupado por uma série de serviços públicos, o último dos quais, creio eu que foi a Universidade Internacional.

O registo foi muito bem emoldurado

Aproveitei então esta estampa para saber um pouco mais sobre este Senhor da Jesus da Paciência e sobre este convento, em S. Domingos de Benfica, onde decorreu parte da minha escolaridade, bem como a da minha irmã mais velha, na altura em que era a secção feminina da escola de Pedro Santarém.

Uma das coisas, que aprendi ao coleccionar registos de santos, foi que estas estampas muitas vezes representam esculturas ou pinturas verdadeiras, que existiram em tempos, imagens de intensa veneração, mas com a extinção das ordens religiosas em 1834, se perderam, foram parar a outras igrejas ou então a sua devoção esmoreceu ou desapareceu mesmo de todo.



E com efeito, este Senhor Jesus da Paciência era venerado na Igreja do convento de Igreja do Convento de Santo António da Convalescença, não sei exactamente desde que época, mas em 1780, concluiu-se a construção da capela dedicada a este Senhor, a qual atraía largas centenas de devotos, principalmente aquando da festa anual, em Agosto e esta estampa do impressor Francisco Manuel Pires, cuja actividade decorreu entre 1775-1800, é testemunho da popularidade dessa devoção. Aliás, numa simples pesquisa pela net, encontrei ainda outra gravura igual, mas impressa por Manuel da Silva Godinho, que pertence ao Museu Nacional de Arqueologia.

Senhor Jesus da Paciência, estampa impressa por Manuel da Silva Godinho da colecção do Museu Nacional de Arqueologia


Em termos de iconografia, esta representação em que Cristo, no momento a seguir à flagelação, rasteja para recolher as suas vestes não é muito vulgar. Segundo a Iconographie de l'art chrétien de Louis Réau é um tema tardio, que apareceu na arte italiana no século XVI, mas que foi usado pelos pintores espanhóis do século XVII, Zurbaran, Velázquez e Murillo, inspirando-se nos mistérios do Rosário. Este tema passou de Espanha para Portugal como esta estampa o demonstra.

Cristo recogiendo sus vestiduras, de Murillo, Krannert Art Museum, de Illinois. Foto de https://sevilla.abc.es/cultura/arte/sevi-exposicion-murillo-sevilla-bellas-artes-sevilla-revela-murillo-como-pintor-total-gran-antologica-201811292335_noticia.html 


Tentei apurar exactamente que escultura ou pintura esta estampa reproduziu, bem como o seu destino e consultei o Inventário de extinção do Convento de Santo António da Convalescença de Lisboa, em 1834, que está disponível on line na Torre do Tombo. É um documento enorme, com uma discriminação precisa de tachos, panelas, pratos, malgas, lençóis, bancos, o catálogo da livraria do Convento e ainda os bens ligados ao culto, como as imagens de santos, pinturas, crucifixos, panos de altar, tocheiros e estantes de missal e ourivesaria sacra. Pelo que percebi, a Lei na altura mandava que os bens ligados ao culto ficassem na própria igreja, se ficasse aberta ao culto, ou que dessem entrada noutras igrejas ou ainda para o depósito dos conventos suprimidos. O que não fosse de culto, tachos, panelas e roupa de cama era arrematado em hasta pública. Deste inventário há referência a um retábulo de pau dourado do Senhor Jesus da Paciência que foi integrado na Igreja de Nossa Senhora do Amparo de Benfica. Consultei a descrição detalhada do interior desta igreja no site Monumentos.pt, mas não encontrei nenhuma referência a um senhor Jesus da Paciência. Também não percebi se a imagem que serviu de inspiração a esta estampa foi um conjunto escultórico ou uma pintura. Quando a vi a primeira vez, achei que representaria esculturas e quando a mostrei à Maria João Vilhena de Carvalho, foi também dessa opinião, adiantado, que seriam talvez imagens dispostas numa maquineta, isto é um oratório, com portas envidraçadas e com efeito, a Igreja de são Sebastião da Pedreira, que também recebeu parte do recheio de Santo António da Convalescença, ficou com uma maquineta de uma imagem de Santo Cristo, forrada de damasco. Também é certo que algumas alfaias e objectos de culto ficaram na Igreja de Santo António da Convalesça, que viria a ser demolida nos anos 50 do século XX.

Em suma, não consegui saber o paradeiro exacto deste Senhor Jesus, esgotado depois do seu longo suplício e que se arrasta pelo chão, enquanto Nossa Senhora o olha, pesarosa. Em todo o caso, este registo evoca um tempo em que Benfica, hoje um bairro tão desengraçado e mal urbanizado, era um aprazível subúrbio, que mereceu as seguintes palavras de Ramalho Ortigão Em nenhum outro lugar de Portugal, se exceptuarmos Sintra, se encontrarão reunidas em tão pequeno circuito, tão lindas, tão históricas, tão anedóticas, tão saudosas quintas como as que encerra Benfica.



O Convento de Santo António da Convalescença em S. Domingos de Benfica, hoje e ontem


Bibliografia e documentos consultados:

Santo António da Convalescença / Matilde Sousa franco
In
Dicionário da história de Lisboa / direcção de Francisco Santana e Eduardo Sucena. - Sacavém : Carlos Quintas & Associados, 1994


Iconographie de l'art chrétien / Louis Réau. - Paris : Presses Universitaires de France, 1955

Inventário de extinção do Convento de Santo António da Convalescença de Lisboa - Arquivo Nacional da Torre do Tombo https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4694942



Arquivo Histórico Digital do Museu Nacional de Arqueologia

sábado, 21 de outubro de 2023

Restos de um antigo faqueiro de prata do início do século XIX ou desvendando marcas misteriosas



Hoje escrevo sobre um assunto ao qual pouca atenção tenho dado, pratas. Tenho em casa uma ou outra salva e ainda a terça parte de um faqueiro de 12 pessoas, coisas que a minha avó recebeu por ocasião do seu casamento em 1930. Há 29 anos, os meus irmãos e eu fizemos o disparate de dividir esse faqueiro pelos três, de modo que, cada um de nós só pode oferecer um jantar para 4 pessoas. Hoje sei que nunca se devem estragar conjuntos, pois peças avulsas perdem valor monetário e até o interesse artístico. Mas como dizia um velho professor meu da faculdade, a experiência, quando se a têm, já não serve para nada.

Como passo a vida restolhar trastes nas feiras de velharias, decidi completar esse faqueiro, mas com peças diferentes e há uns tempos trouxe para casa três facas de carne e ainda quatro talheres de sobremesa, uma colher e três garfos. Todos eles tão pretos, oxidados e sujos, que mais pareciam mais ferro que outra coisa. Mas gostei da sua decoração neoclássica muito elegante e apresentavam a chamada marca da bicha, que já tinha ouvido dizer, distinguir a prata mais antiga.

A chamada marca da bicha


O primeiro trabalho foi limpar a prata e tentar retirar a ferrugem das lâminas, embora não tenha conseguido realizar esta última tarefa com êxito. Depois comecei a tentar ler na net alguma coisa sobre pratas antigas portuguesas e num artigo de Gonçalo de Vasconcelos e Sousa, aprendi que a referida bicha não é nenhuma marca que identifique um ourives ou tão pouco um ensaiador. A bicha é o vestígio do método, que ensaiador tinha para examinar a qualidade e autenticidade da prata, em que retirava com um buril um fiozinho do metal deixando uma marca em forma de ziguezague.

Em todo o caso, esta técnica de verificação da qualidade da prata terminou na década de 80 do século XIX, com a criação das contrastarias e portanto estes talheres são anteriores a 1882.

Antes da década de 80 do século XIX, os ensaiadores tinham uma ligação municipal e as marcas que usavam nas peças para certificar a sua qualidade consistiam na primeira letra da cidade onde estavam, que normalmente eram centros de trabalho da prata ou do ouro, isto é, Lisboa, o Porto, Braga, Guimarães, mas também Coimbra ou Évora. Ao mesmo tempo, o ourives assinava também os talheres, salvas ou bules de chá com as iniciais do seu nome. Agarrei e numa lupa e num dicionário especializado, o Inventário de marcas de pratas portuguesas e brasileiras: século XV a 1887 / Fernando Moitinho de Almeida, Rita Carlos e cheio de boa vontade e optimismo lancei-me ao trabalho de decifrar as minúsculas e misteriosas sinalefas, incisas nestes talheres.

Um maiúsculo encimado por uma coroa, marca que foi usada pelo ensaiador do Porto, Alexandre Pinto da Cruz entre 1810 e 1839 


Mas ao optimismo inicial sucedeu o desespero, os sinaizinhos são minúsculos, desgastados pelo tempo e ao fim de uns quantos dias de trabalho consegui apenas identificar a marca de uma das facas, um p maiúsculo encimado por uma coroa, que foi usada pelo ensaiador do Porto, Alexandre Pinto da Cruz entre 1810 e 1839 e num ou outro talher um g maiúsculo, identificador dos ensaiadores de Guimarães. Em todo o caso, já foi suficiente para perceber, que estes talheres foram produzidos no primeiro quartel do século XIX no Porto e em Guimarães.

Como esbarrei na leitura das marcas, a Celina Bastos recomendou-me a leitura das obras de Manuela Alcântara Santos e com efeito, depois de consultar o livro Talheres de prata de Guimarães : séculos XVIII e XIX dessa autora e comecei a deslindar aos pouco os segredos destas peças.

Imagem retirada de Talheres de prata de Guimarães : séculos XVIII e XIX 


A decoração destes talheres consiste numa uma oval enquadrada por uma série de caneluras incisas, que crescem e decrescem simetricamente, com uma folha a marcar o eixo central do motivo é muito característica dos ourives do Porto e Guimarães. Na primeira cidade foi usada num intervalo entre 1792 e 1810 e na segunda, numa cronologia menos precisa, mas anterior a 1820. Também nesta época, um faqueiro era apenas constituído por facas, colheres e garfos de mesa. As colheres de chá já eram consideradas à parte. Os garfos e as colheres de sopa eram mais pequenos, que os de hoje dia e afinal, o que pensava serem talheres de sobremesa são realmente garfos de mesa e uma colher de sopa. Os faqueiros muito completos e complicados, com colher para compota, colheres de café, sobremesa, espátula para peixe ou bolo, concha para espalhar açúcar em pó, garfos de bolo e sabe Deus que mais, só fizeram a sua aparição já mais nos finais do século XIX.

Imagem retirada de Mestres Ourives de Guimarães : Séculos XVIII e XIX = Masters Silversmiths of Guimarães : 18th and 19th centuries / Manuela de Alcântara Santos


Ao contrário do Inventário de marcas de pratas portuguesas e brasileiras, que contem as marcas desenhadas, as obras de Manuela Alcântara Santos apresentam a vantagem de reproduzir em fotografias muito ampliadas as referidas marcas a partir daí consegui as descodificar as sinalefas dos meus talheres e encontra-las no Inventário de Fernando Moitinho de Almeida, Rita Carlos. Passarei então enumerar as marcas, com os números do inventário dos acima referidos autores

Faca A


Apresenta um g maiúsculo coroado. Marca nº G-17.a do ensaiador em Guimarães, José António Fernandes, ca. 1820-1834.

Iniciais DF, marca nº G.47-A de ourives do Ourives de Guimarães não identificado, conhecida com as marcas de ensaiador F. 17 e G17.a (1820-1834).




Faca B



Apresenta a letra P coroada, que parece ser a marca P. 28.0 ou P. 28.0 do ensaiador do Porto, Alexandre Pinto da Cruz, usada entre 1810-1829.

Iniciais APA, marca P.153, de ourives do Porto atribuível a António Pinto de Almeida citado entre 1783-1865. Conhecidas com as marcas de ensaiador P25, P-28.


Faca C



A marca é sem dúvida um g de maiúsculo, de Guimarães, mas está tão desgastada, que não consigo perceber se tem coroa.

Apresentas as siglas IR., marca G.81.0 de ourives não identificado de Guimarães, associada à marca de ensaiador G.16.0a




A colher e garfos, apresentam tal como a última faca, sigla IR, a marca de ourives G.81.0 não identificado de Guimarães. Contudo, tenho dificuldade em identificar a marca do ensaiador. É certamente, um G, encimado por uma coroa, que tanto poderá ser o G.15 ou G.16, isto é, do ensaiador Manuel Joaquim de Freitas, usada entre1792-1801 ou de José Baptista dos Reis, em uso entre 1801-1820.




Em suma, os três garfos, a colher e uma das facas terão saído da mesma oficina de ourives em Guimarães e autenticadas pelo mesmo ensaiador, a segunda faca de um ourives e de um ensaiador diferentes, embora também nessa cidade e finalmente, a última foi feita no Porto. Aliás, olhando para uma fotografia das três facas, percebemos que são ligeiramente diferentes, a da marca IR tem a oval rodeada por um único filete, a da marca DF, três filetes e a da marca do Porto, de António Pinto de Almeida, apresenta apenas dois e não tem a folhinha.

As três facas são diferentes entre si, quer nas lâminas, quer nos filetes que decoram o motivo oval 


Estas diferenças todas no mesmo conjunto têm a ver com razões muito práticas. A prata era cara e as famílias não compravam os talheres de uma única vez, num ano adquiriam um conjunto de seis de cada, passados cinco ou seis anos, a família crescia e encomendavam-se mais uns quantos, depois haveria sempre um ou outro talher roubado, que era preciso substituir e pelo meio da história, morria alguém e faziam-se partilhas e era necessário comprar mais. Por outro lado, neste início do século XIX, nas vilas e cidades do interior, os talheres eram vendidos nas feiras, frequentadas pelos ourives de Guimarães ou do Porto e desde que fossem iguais, numa vez comprava-se os talheres ao feirante vimaranense e noutra ocasião ao ourives da Invicta.

Em suma, estes talheres foram fabricados em Guimarães e um deles no Porto, no primeiro quartel do século XIX e serão a sobras de um conjunto maior, que em tempos, brilhou na mesa de alguma família fidalga ou da burguesia abastada. Em minha casa, dei-lhes uma nova vida, colocando-os a uso e sobretudo obrigaram-me a estudar um pouco as pratas portuguesas.




Bibliografia:

Inventário de marcas de pratas portuguesas e brasileiras : século XV a 1887 / Fernando Moitinho de Almeida, Rita Carlos. - Lisboa : Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2018


Talheres de prata de Guimarães : séculos XVIII e XIX / Manuela de Alcântara Santos ; apresent. Gonçalo de Vasconcelos e Sousa. - 1a ed. - Porto : Universidade Católica Editora, 2012.


Mestres Ourives de Guimarães : Séculos XVIII e XIX = Masters Silversmiths of Guimarães : 18th and 19th centuries / Manuela de Alcântara Santos. - Porto : Campo das Letras, 2007


Ourivesaria portuguesa: breves apontamentos históricos sobre os ofícios, marcas e matérias relacionadas, essencialmente até à criação das contrastarias (1882) / Gonçalo de Vasconcelos e Sousa. 

sábado, 7 de outubro de 2023

António Cachapuz e Liberal Sampaio: dois amigos em campos políticos opostos.

Liberal Sampaio

Tenho publicado aqui no blog muito sobre o meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio (1846-1935), mas referi quase sempre de passagem sua actividade intelectual e, no entanto, os artigos de homenagem, que foram publicados aquando da sua morte, dão notícia da sua rede de correspondência com homens cultos da época e que abria a enorme biblioteca no solar de Outeiro Seco aos interessados. A minha avó, Maria Montalvão Cunha, num texto que publicou nos I jogos florais de Montalegre em 1981, transcreveu um autógrafo do Abade de Baçal(*1) em que este se refere a Liberal Sampaio nos seguintes termos: foi ele que me indicou os livros a consultar. Foi ele que me facilitou a leitura de preciosas raridades bibliográficas da sua enorme biblioteca que por serem raríssimas, senão únicas, por serem caríssimas, só acessíveis a amadores ricos, eu nunca chegaria a ler.



Durante as férias aproveitei para trabalhar bastante no tratamento do espólio e começaram a surgir alguns documentos testemunhando essa faceta do meu antepassado. Entre elas estavam três cartas de um senhor dirigidas ao meu trisavô, em que basicamente escreviam sobre livros e trocavam-nos um com o outro. O problema foi a decifrar a assinatura do Senhor. Achava que seria António Cadafaz e cheguei a pensar, que fosse algum antepassado do Professor Cadafaz de Matos, mas pesquisando no motor de busca do Arquivo Distrital de Vila Real e no Diário de Governo Digital não me aparecia nenhum Cadafaz activo em Chaves ou no Distrito de Vila Real. Pedi ajuda a uma amiga, que é uma barra em paleografia, a Maria João Vilhena, que leu letra a letra a rubrica e através do whatsapp começamos por aproximações, Cachafaz, Cachapa, até que chegamos a Cachapuz e pesquisando no motor de busca do Arquivo Distrital de Vila Real, encontrei uns quantos Cachapuz, com residência em Chaves e percebi que o senhor pertencia uma família flaviense. A partir daí foi fácil e foi só puxar o fio ao novelo. O autor das cartas foi António Pereira da Costa Cachapuz (1884-1963), que viveu e morreu em Chaves. Foi professor do Liceu e também na Escola Industrial e Comercial de Chaves, vereador durante a República e pelo teor das suas cartas foi obviamente um homem culto.

António Cachapuz em 1920. Foto retirada de https://chavesantiga.blogs.sapo.pt/257213.htm


Só uma das cartas está datada, de 10 de Fevereiro de 1924 as outras duas não, e como foram entregues em mão, não há carimbos dos correios, que permitam data-las. Mas como temas são próximos, parecem-me todas mais ou menos da mesma época.





Na primeira carta trata o meu trisavô por Meu Exmo. Amigo e escreve tenho ideia que V. Exa publicou em tempos alguns artigos sobre Chaves antiga. Precisava de consulta-los agora, se V. Exa. tiver a bondade de mandar-me pelo portador qualquer coisa que aí tenha sobre o assunto será favor. Amanhã mesmo lhes serão restituídos. Vai aí o meu filho por eu me encontrar retido em casa por doença.

Creio que o meu trisavô foi pioneiro nos estudos de história antiga de Chaves, em particular do período romano, mas como tudo o que publicou foi na imprensa periódica seu trabalho acabou por cair esquecimento.






Na carta que segue, António Cachapuz envia ao meu trisavô pelo portador a Psicologia política de Le Bom, a Arte Grega de J. Barreira e as Terras do céu de Flamarion.

Mandarei o Forum romano, logo que acabe de tirar umas notas. Se V. Exa por aqui passasse poderia porventura encontrar qualquer coisa que o distraísse, assim vão à sorte.

Já principiei a ler o Dicionário de Noel, que tem a maior parte da matéria que tenho encontrado por vários livros. É um auxiliar para o meu trabalho

Dado que, por qualquer circunstância imprevista eu não possa ir na quarta-feira visitar V. Exa. Seria favor enviar-me o outro ou outros dois volumes pagando eu aqui ao portador.

Despede-se depois, afirmando-se como amigo grato e admirador






Na terceira carta, de 10 de Fevereiro de 1924, António Cachapuz escreve como há dias me disse não conhecer os Ensinamentos psicológicos da guerra europeia e a psicologia das revoluções de G. Le Bon, envio-lhes para entreter os seus ócios .

O portador pode trazer as Civilizações do Oriente do mesmo autor, que amavelmente pôs à minha disposição e eu não trouxe da última vez.

Enquanto de passeio até cá acima, terei muito prazer em que nesta sua casa escolha entre o pouco que cá tenho, bem assim, aguardo a sua preciosa ajuda nos termos da nossa conversa.

Algumas das obras que estes homens andavam a ler reconheci-as de imediato, nomeadamente as de Gustave Le Bon (1841-1931), que cataloguei quando tratei da biblioteca de António Sardinha (1887-1925). Le Bon era um autor muito lido na época e muitos dos seus livros já estavam traduzidos para português. O seu grande contributo é a noção de psicologia das multidões, que não é um somatório das vontades dos indivíduos, mas antes uma entidade própria, que pode ser extremamente violenta, mas também manipulada. Algumas das suas teorias mais tarde serão aproveitadas, por todos os movimentos de extrema-direita, fascistas e nazis, que floresceram na Europa nos 15 anos seguintes à troca destas cartas. Mas, nem todos tiraram essas ilações das obras deste autor francês. Nos dez anos que se seguiram até à sua morte em 1935, Liberal Sampaio não teve qualquer participação na vida política e o filho de Cachapuz, o tal rapaz que entregava os livros em mão na primeira carta, o Francisco de Barros Cachapuz (1914-1993) tornou-se num activo anti-fascista, opositor feroz do regime de Salazar, que lutou na guerra civil de Espanha ao lado dos republicanos. Esteve preso e depois exilou-se no Brasil, foi um dos fundadores do Partido Socialista Português e segundo Helena Pato deve ao seu pai a sua formação humanista e libertária.

António Cachapuz emprestou ao meu avô, a Arte grega de João Barreira, que tinha sido publicada em 1923 e ainda as Terras do céu, de Camille Flammarion (1842-1925), que já estavam traduzidas para português, nesta época. Irmão de Ernest Flammarion, o fundador da célebre editora francesa com o mesmo nome, este Camille Flammarion foi um grande divulgador de assuntos de astronomia. Em troca, Liberal Sampaio emprestou-lhe o Forum Romano, obra que não consegui identificar e ainda o dicionário de Noel. Este autor certamente trata-se de François Noel (1756-1841), mas que escreveu dois dicionários e tanto poderá ser o Nouveau dictionnaire des origines, inventions et découvertes dans les arts, les sciences como o Dictionnaire de la fable. O meu trisavô tinha os dois na sua biblioteca, o primeiro numa edição de 1837 e o segundo numa edição de 1810.

Uma imagem do catálogo da biblioteca de Outeiro Seco, onde se encontram referidos os dicionários de  François Noel  


Através destas cartas, ficamos com idéia que os dois tinham uma cultura eclética, que tanto se interessavam por sociologia política, como por astronomia, passando pela história, pela arte e ainda pelas civilizações do Oriente. Ao mesmo tempo, testemunham a amizade de dois homens de idades muito diferentes, o Liberal Sampaio em 1924 tinha 78 anos e o António Cachapuz 40 anos, com filiações políticas opostas, o primeiro monárquico e o segundo republicano. Em Chaves, filiações partidárias opostas no tempo da primeira república (1910-1926)  significaram neste caso, que durante as incursões de Paiva Couceiro em 1911, com vista ao restabelecimento da monarquia em Portugal, o meu trisavô foi perseguido pelos republicanos na chamada caça aos padres, escondendo-se das tropas num quarto secreto do Solar de Outeiro Seco e depois disso, se refugiou durante alguns tempos na Galiza, ao mesmo tempo que António Cachapuz como fervoroso republicano partia para Vinhais para combater os paivantes.

Mas num momento qualquer que não posso precisar, os dois tão diferentes, descobriram o mesmo gosto pelos livros, pela cultura e visitavam-se, mostravam as preciosidades bibliográficas das suas bibliotecas e conversariam longamente. Como diriam os franceses, Les beaux esprits se rencontrent toujours.

A casa de António Cachapuz em Chaves. Foto retirada de https://chaves.blogs.sapo.pt/tag/francisco+de+barros+cachapuz

Bibliografia e ligações consultadas:


História moderna e contemporânea da Vila de Chaves através das actas e jornais da época / Júlio Montalvão Machado. – Chaves: Grupo Cultural Aquae Flaviae, 2012

Dr. Padre José Rodrigues Liberal Sampaio / Maria do Espírito Santo Ferreira Alves Montalvão Cunha
in
I Jogos florais de Montalegre. - Montalegre: Câmara Municipal de Montalegre, 1981. - 47-53 p.

Francisco Cachapuz [ou Paulo de Castro] / Helena Pato
In
Jornal Tornado Online. - (25 Fevereiro, 2018)




https://chaves.blogs.sapo.pt/tag/francisco+de+barros+cachapuz

Notas: 
(*1) Palavras de um autógrafo do Abade aquando de uma conferência realizada no cube de Bragança 15-6-1946

sábado, 30 de setembro de 2023

Nos arquivos do Norte: 14º Aniversário do blog Velharias do Luís




Em 30 de Setembro de 2009 iniciei muito a medo este blog sobre velharias, antiguidades, história e memórias familiares e desde então não parei, apesar de os blogues já terem passado de moda e hoje em dia está toda a gente está em outras redes sociais. Mas sou um homem persistente, profundamente rotineiro e tenho uma certa necessidade de escrever e comunicar as minhas ideias. Poderia escrever um diário e já o fiz durante a adolescência e juventude, mas estava sempre a martelar nos mesmos assuntos, virado quase exclusivamente para mim próprio.

Nestes últimos, tempos, tenho dedicado mais espaço no blog às memórias familiares. Uma prima ofereceu-me dois álbuns de fotografia carte-de-visite do século XIX e por morte do meu pai recebi o espólio documental da família, cerca de vinte e tal caixas, com muita correspondência, documentos notarias, recortes de imprensa com todos os textos que o meu trisavô, José Rodrigues Liberal Sampaio (1846-1935) publicou, bem como os da sua neta, a minha avó Mimi, Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão Cunha (1907-2000) e ainda os rascunhos de um livro da autoria desta última, que estava prestes a ir para o prelo o Dicionário dos Homens Ilustres do Distrito de Vila Real.

A minha avó Mimi

Não que eu não soubesse já bastante sobre história da família, o meu parente, J. T. Montalvão Machado publicou em 1948 uma genealogia Os Montalvões e o meu pai compilou sistematicamente o que sabia e se recordava da grande casa solarenga em Outeiro Seco, Concelho de Chaves, onde um ramo importante desta família viveu durante quase três séculos.

Uma boa parte dos estudos de genealogia dão-nos uma idéia idílica da história familiar. Há uma árvore genealógica, onde tudo começa com um parente primordial, e que se vai desenvolvendo em ramos e mais ramos até se tornar num gigantesco castanheiro com centenas de anos, seguindo quase sempre a via masculina. Mas na realidade, como já aqui referi muitas vezes, temos quatros avôs, 8 bisavôs, 16 trisavôs, 32 quartos avôs e a multiplicação de antepassados prolonga-se no passado, até sentirmos, que estamos perante um abismo, onde no fundo há milhares de mortos.




Quando se começa a tratar um espólio, ainda que só do lado paterno, começam a surgir cartas e documentos de todos esses bisavôs, trisavôs, quartos avôs, via masculina ou feminina, até antepassados mais recuados ainda, alguns dos quais se desconhecia inteiramente existência. Assim, tenho vindo a encontrar cartas dos familiares de Liberal Sampaio, documentos dos Alves e aos os poucos, estou a perceber que deverei traçar várias genealogias se quero saber quem era aquele Vicente Morais que encomendava tecidos de seda para um casamento cerca de 1815, ou uns documentos de venda de propriedades do século XVII em Monforte de Rio Livre, de uns senhores que não constam da genealogia da família Montalvão escrita por o J. T. Montalvão Machado. Na realidade, trata-se de um trabalho de ligar várias genealogias de várias famílias, que se cruzaram e tornaram a cruzar-se ao longo de duzentos ou trezentos anos. Já me tinha apercebido dessa realidade através da consulta da obra, Famílias transmontanas: descendência de Francisco de Moraes”, de Francisco Xavier de Moraes Sarmento. Ao longo dos tempos, famílias como os montalvões casaram dentro do mesmo meio social, isto é, fidalguia rural e gente do mesmo concelho ou concelhos vizinhos. Evitavam a consanguinidade, mas também como não havia assim tantas famílias da mesma condição, ao fim de duas ou três gerações voltavam a casar com um neto ou uma sobrinha bisneta de uma noiva ou noivo Morais Castro, Morais Sarmento, Campilho, Sá Morais, que por sua vez descendiam de um Lemos de Andrade ou de uma Álvares Ferreira. Enfim, em vez de uma única árvore, temos antes uma densa mata de arbustos com ramificações, que se entrelaçam, ramificam e voltam a cruzar-se e separam-se novamente.

Para lá deste emaranhado familiar do passado, há toda a correspondência, trocada no passado com centenas de pessoas. Só do meu trisavô, o padre José Rodrigues Liberal Sampaio, já vou em cerca de 210 correspondentes e ainda só tratei 4 caixas. Ler essas cartas, entender a caligrafia, as assinaturas é um trabalho significativo, mas uma experiência tão gratificante. Costumo faze-lo em voz alta e parece que ouço como que a voz das pessoas, que viveram há 150 ou 170 anos, contando as suas preocupações, na sua linguagem própria, dando conta dos seus costumes tão diferentes e começo aos poucos a entende-las. É uma tarefa própria para quem já fez 60 anos como eu. Quando já não temos tanto tempo de vida pela frente, sentimos necessidade de compilar o passado, para transmiti-lo aos vindouros e temos também a maturidade suficiente para dispensar juízos de valores e aceitar o passado tal como ele foi.

Aos 60 anos temos a maturidade suficiente para dispensar juízos de valores e aceitar o passado tal como ele foi.


Alguma bibliografia:

Famílias transmontanas : descendência de Francisco de Moraes, Palmeirim : ligações familiares e outras famílias de Trás-os-Montes / Francisco Xavier de Moraes Sarmento- . Ponte de Lima : Carvalhos de Basto, 2001

Os Montalvões / J. T. Montalvão Machado. - Famalicão: Tip. Minerva, 1948

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Uma simples chávena de faiança da região Centro




Uma amiga, a Maria Miguel ofereceu-me esta chávena de chá, que me encantou logo pela sua simplicidade, tão característica da faiança portuguesa antiga. Como é hábito na faiança portuguesa, não apresenta qualquer marca, mas pela cor amarelada da pasta, pareceu-me desde logo uma produção da zona Centro de Portugal, talvez de Coimbra, mas faltam sempre mais estudos publicados sobre esta área, para fazer atribuições com alguma segurança. Talvez por essa razão tenha escrito tão pouco sobre faiança portuguesa nos últimos tempos, embora o verdadeiro motivo tenha a mais a ver com o facto de a minha casa ter esgotado a possibilidade de expor mais cacarecos, sobretudo depois da morte do meu pai, quando tive trazer algumas imagens de arte sacra, gravuras e quadrinhos e mais um ou outro bibelot, essenciais para manter viva a memória da família no meu dia-a-dia.



Mas voltando à chávena, mal olhei para ela com mais atenção, associei-a logo a uma terrina, que o meu amigo Manel, herdou da sua avó, que vivia precisamente na região Centro, ali perto da Redinha no Concelho de Pombal e resolvi fotografa-las juntas, para colocar em evidência um certo ar de família. Aliás, já tinha apresentado essa terrina em Fevereiro de 2020.




Esse ar de família resulta não só da pasta, mais grosseira e amarelada, mas sobretudo da decoração, que me parece inspirada nos bordados tradicionais portugueses.

o conezinho na base


Esta chávena apresenta também característica, que não encontro na porcelana portuguesa ou na faiança inglesa da mesma época, isto é, na base da chávena, existe uma espécie de cone em relevo. Não sei exctamente a razão desta forma, creio que seria para dar mais solidez à peça, mas também encontrei também esse conezinho no tardoz de uma chávena do Norte, atribuída a Santo António do Vale da Piedade. Em todo o caso, a chávena de Santo António de Vale da Piedade será um fabrico de meados do século XIX e esta parece-me já coisa do início do século XX.
A chávena da direita está atribuída a Santo António de Vale da Piedade e apresenta o mesmo cone no tardoz  

Sei que com este exto não adiantei muitas informações novas sobre o assunto, mas como explico no texto que serve de introdução ao blog, estes posts servem-me como fichas sobre as peças, onde tento identificar semelhanças, arrumar conhecimentos, que mais tarde me poderão ser úteis e depois é o meu agradecimento à Maria Miguel, que me deu esta bonita xícara.