sexta-feira, 4 de abril de 2025

1916: mãe, eu não quero ir para a guerra: uma carta do sempre jovem Francisco Manuel de Morais




Já tenho aqui escrito sobre o meu tio-avô materno, o Francisco Manuel de Morais, que morreu jovem e que um dia, quando eu estava a sair da adolescência, mostraram-me o seu retrato, dizendo-me que era parecido com ele, de modo que fiquei com uma daquelas ideias estranhas e irracionais, que as velhas fotografias familiares por vezes despertam, de que este rapaz tinha sido eu, cerca de 50 anos antes do meu ser nascer.

Numa velha caixa de madeira, encontrei muitas cartas escritas por ele, numa delas, datada de 1915, confidenciado à irmã a sua paixão pela jovem Estela e o seu desejo de casar com ela. Resolvi então separar todas as cartas escritas por ele, no intuito de saber mais sobre este amor, pois na tradição familiar, dizia-te que teria havido um filho de uma ligação que ele manteve com uma Senhora na cidade do Porto.

Dias felizes em 1915: o Francisco Manuel com os compinchas


Fui lendo assim todas as suas cartas, a maioria dirigidas à mãe, onde vai dado conta dos seus resultados escolares no curso de medicina e onde invariavelmente pede mais dinheiro, para pagar propinas, para a compra de livros, para o aluguer do quarto, para pagar à lavadeira e para a alimentação. Enfim, o Francisco Manuel vivia numa época onde fazer um curso superior era um luxo, extremamente oneroso para as famílias. Por vezes nessas cartas. Surge aqui e acolá o espectro da guerra, que desde 1914 assolava a Europa.

Mas, uma das cartas, que acredito com toda a segurança datar de 1916, certamente depois de Março desse ano, quando Portugal entrou na Primeira Grande Guerra, no período em que se preparava o contingente português, foi um verdadeiro murro no estômago, como se diz hoje em dia.





O meu jovem tio foi recrutado e encontrava-se numa verdadeira aflição. Escreveu à mãe contando que fez um requerimento para passar para o 18º regimento, na cidade do Porto, que foi aceite e que tentou depois tentou passar à companhia de saúde, mas para tal era necessário requerer ao ministério da Guerra o que é o mesmo que esperar os sapatos do defunto. Terminaria a guerra antes que o requerimento chegasse às mãos do ministro”. Pede então à mãe, para que os pais movam a sua rede de influências, contactando com as pessoas importantes e das boas famílias da vila de Vinhais, o Dr. Almendra e o Dr. Campilho, para conseguir a sua transferência para o 10º regimento, que estava sediado em Bragança, cidade vizinha daquela vila, onde seria mais fácil, mexer os cordelinhos, para passar ao serviço de saúde do exército, ou mesmo ficar isento. O seu objectivo era escapar à guerra, ou se tiver de ir, pelo que vá seguro, num serviço médico. Se não o conseguisse fugiria para a Espanha. A família tinha uma casa numa aldeia raiana, a Cisterna, que ainda conheci e que basta passar um ribeiro, para se alcançar as aldeias galegas da Veiga, Seixo e Barxa. Na Galiza havia também escolas onde ele poderia terminar o seu curso. Como ele próprio escreveu para o garrote, para o açougue, servir de estribo às ambições desmedidas de quien todo lo manda”, isso é que eu não vou dê lá para onde der.




Este sentimento de revolta contra a guerra do meu tio Francisco Manuel não foi um caso único no País. Segundo o Tenente-coronel Pedro Marquês de Sousa, num artigo intitulado O ano da organização do CEP para França: a mobilização militar (1), a convocação de licenciados não foi bem aceite e deu origem a diversos casos de indisciplina e tensões, não apenas pelo inconveniente de ser mobilizado, mas também pelas situações de injustiça em resultado das dispensas de alguns rapazes de famílias influentes, mais sentida nas comunidades mais pequenas e que houve várias revoltas anti-guerrista nas fileiras, em Mafra, Estremoz, Lisboa, Covilhã e outra ainda, a mais grave, em Tomar.

A leitura dos manuais escolares de história, ilustrados com mapas coloridos dos avanços e recuos das frentes de batalha, dá-nos uma ideia romântica das guerras, mas esta carta desfaz tudo isso, ao lermos o testemunho vivo de um jovem que não quer ir para açougue, servir de estribo às ambições desmedidas de quien todo lo manda. E passados quase 120 anos destes acontecimentos, como o compreendo, pois por mais que leia sobre o assunto, continuo a ser de opinião que a participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial em 1914-1918 foi um erro trágico e inútil.

Esta carta impressionou-me muito, até porque este rapaz veio a morrer num estúpido acidente, no Outono deste ano de 1916, mais precisamente a 4 de Outubro de 1916, numa caçada organizada pelos amigos para se despedirem dele antes de partir para guerra. Terá usado a espingarda para baixar um ramo de uma figueira de forma a colher os frutos melhores e a arma disparou-se sozinha, pondo fim à sua vida. Confesso-vos que depois da leitura da carta, cheguei a perguntar-me se terá sido mesmo um acidente, mas claro, nunca poderei vir a saber o que se passou realmente naquele dia

Transcrevo aqui a carta na íntegra pois é um documento muito interessante para quem se interessa pela história da participação de Portugal na Grande Guerra de 1914-18.


Porto 6

Minha querida mãe

Veio-me hoje a sua carta com a certidão. Por ela vejo que passa mal por minha causa, ou por outra, por causa dos acontecimentos graves que se dão e a que Portugal é arrastado.

Como sabe pedi passagem para o 18 e a esse pedido, dirigido ao comandante do regimento, foi logo deferido. Aqui quis passar à companhia de saúde, mas para tal é-me necessário requerer ao ministério da Guerra o que é o mesmo que esperar os sapatos do defunto. Terminaria a guerra antes que o requerimento chegasse às mãos do ministro. Em face disto, eis o que vou fazer e para o que peço que cooperem aí: vou de novo pedir passagem para o 10 e lá obter que o Dr. Sarmento atendendo à minha qualidade de estudante de medicina, me chame ao serviço de saúde. Requeiro hoje mesmo a passagem para o 10 e espero que arranjem ai o pedido de alguém para o Dr. Sarmento fazer um acto que aliás é de justiça. Depois, no caso de haver mobilização geral têm que estar alerta para me avisar por telegrama e eu apresentar-me logo no quartel. Tenham a minha farda lavada e pronta. Tanto que, alcançando o meu fim, não chegarei ir para a guerra, e, se for, irei seguro. Digo-lhe mais ainda para lhe desvanecer essas ideias fúnebres: se vir que não consigo senão como soldado na linha de fogo, eu ainda sei o caminho daqui para a Veiga, para o Seixo ou para a Barja…

Para o garrote, para o açougue, servir de estribo às ambições desmedidas de “quien todo lo manda”, isso é que eu não vou dê lá para onde der. E tenho aqui colegas, muito até, que pensam fazer como eu. Aí na Galiza também há escolas médicas e lá também se completam cursos. E creio que tenho tudo dito a tal respeito. È a minha convicção inabalável. Diga-me agora o seu modo de pensar. O Sr. Dr. Campilho escreveria a alguém acerca do meu exame? Devo entrar brevemente pois que já principiaram hoje. Em suma, até o dia 15 devo estar despachado e depois, se as aulas abrirem só em Novembro, como consta, talvez vá até aí restaurar-me um pouco pois que me sinto extremamente fraco e cansado. Recomenda-me a todos e a mãe aceite muitas saudades do seu filho muito amigo

Francisco Morais


PS: recebi a caixa com as maças e as pavias. Muito obrigado. Retribuo o abraço da Augusta


(1) Revista militar, nº temático - Maio de 2016

4 comentários:

  1. Azar do Francisco ter sido um dos poucos chamados para a guerra. E a tragédia deste jovem não termina aqui...Deve ter sido muito emocionante ler e fazer este belo texto do Francisco. Manuela

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    1. Manuela
      Muito obrigado pelo seu comentário.

      Quando li esta carta depois a transcrevi, pois a caligrafia deste meu tio-avô, muito miudinha, nem sempre é fácil, acabei por me emocionar. É o drama humano, mas também uma visão diferente da guerra, a daqueles jovens que foram de carne para canhão, numa guerra, na qual Portugal não tinha qualquer interesse.

      Bjos


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  2. A carta faz pena e como eu o percebo perfeitamente.
    Quando em 1974, antes da revolução de abril, eu estava prestes a ingressar nas forças armadas, pois estava já com a idade certa.
    Eu, como milhares de outros jovens, seríamos "material" que iria alimentar a máquina de guerra em África, e eu pensava muitas vezes nesta situação.
    Mas o que tinha de ser teria muita força e sentia-me já como "carne para canhão", como tinham sido tantos outros antes de mim.
    Quando se deu a revolução de abril pensei que tinha sido um milagre. E ainda hoje creio que o foi.
    Por isso, percebo perfeitamente o pavor deste jovem, mas ao contrário dele, não conhecia absolutamente ninguém a quem me pudesse dirigir com pedidos de dispensa ou colocação em posição que me permitisse fazer o tempo de tropa fora dos cenários de guerra. A minha família não era influente, nem conhecia gente que o fosse, por isso, restava-me ir como iriam, e tinham ido os outros.
    Estas cartas são pungentes no seu dramatismo.
    Manel

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    1. Manel

      É verdade, quando li, transcrevi e reli esta carta não consegui deixar de pensar nos jovens, que atravessaram a fronteira a salto para escapar à guerra colonial.

      É interessante, que deste lado da família não se conservaram muitas cartas ou documentos. Também é verdade que eram lavradores e viviam ao lado uns dos outros, sem terem necessidade de trocar cartas. Mas, a família guardou um pequeno espólio deste Francisco Manuel, quase como uma relíquia e que chegou aos nossos dias. Hoje voltei a pegar nessas cartas, para as dividir e o conteúdo é impressionante.

      Um abraço

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