quinta-feira, 28 de março de 2019

Os condiscípulos de Coimbra de Liberal Sampaio: Abílio Augusto da Maia e Costa ou a história de um reencontro


Como já referi várias vezes no blog, contínuo no trabalho de identificação dos personagens retratados no álbum de fotografias formado pelo meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio. Uma parte significativa dessas fotografias em formato carte-de-visite é formada por retratos de condiscípulos do meu antepassado dos cursos de teologia ou de direito da Universidade de Coimbra, datadas mais ou menos entre 1888 e 1891. A maioria das personagens está identificada com uma legenda escrita a lápis pelo meu trisavô, ou tem dedicatórias no verso, a ele dedicadas, mas ficam quase sempre por responder as seguintes interrogações: quem foram eles? Que relações estabeleceram com José Rodrigues Liberal Sampaio?


Uma das personalidades dos quais ainda não tinha conseguido encontrar nada, até há pouco tempo, foi a de um tal Abílio Augusto da Maia e Costa, licenciado em Direito, a julgar pela pasta escura, e natural de Vouzela, conforme se pode ler na dedicatória.
Verso da fotografia com a dedicatória manuscrita. Ao meu caro colega e bom amigo Jose Rodrigues Liberal Sampaio em saudosa recordação dos tempos de Coimbra, oferece Abílio Augusto da Maia e Costa, Passos de Villarigues, Vouzela, 25-5-90

Resolvi fazer umas quantas pesquisas no Google pelo seu nome e acabei por ir ter ao fórum do geneall.net, conhecido site de genealogia onde um bisneto procurava informações sobre este antepassado. Comentei o seu post escrevendo que tinha uma fotografia do seu bisavô e que me prontificava a enviar-lhe uma cópia digital frente e verso, bem como a trocar informações sobre o assunto. Posteriormente correspondemos nos por e-mail e o mais engraçado de tudo isto, é que já nos conhecíamos pessoalmente de casa de um amigo comum e ambos pertencemos ao mesmo meio profissional. Foi um pouco como se passados uns 130 anos, o acaso histórico voltasse a cruzar os destinos de Liberal Sampaio e Abílio Augusto da Maia e Costa, através dos seus descendentes, um bisneto e um trisneto.
José Rodrigues Liberal Sampaio no momento da formatura, em 1891. O seu condiscípulo Abílio formou-se um ano antes.

Não consegui apurar exactamente a relação que Abílio Augusto da Maia e Costa e Liberal Sampaio estabeleceram, mas certamente foi boa, pelo menos dos tempos de Coimbra, de outra forma o primeiro nunca ofereceria o seu retrato ao segundo. Em 1890 a fotografia ainda era demasiado cara para se oferecer uma prova a mero um amigo de ocasião. Contudo, os destinos destes antigos alunos de alunos de Coimbra tiveram muito em comum. Tal como o meu trisavô, Abílio Augusto da Maia e Costa também foi padre e também teve filhos, sete ao todo. Contudo, ao contrário de José Rodrigues Liberal Sampaio, que nunca deixou o sacerdócio, apesar de manter uma relação prolongada com uma senhora, Abílio Augusto da Maia e Costa acabou ter ordens suspensas, em circunstâncias que o seu bisneto desconhece. Talvez os sete filhos ilegítimos tenham dado demasiado nas vistas num meio pequeno como Vouzela. Poder-se-ia pensar que o José Rodrigues Liberal Sampaio foi mais discreto na sua relação com Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão e que terá vivido de acordo com o celebre princípio enunciado pelo prelado Adalberto de Bremen, no século XI, Si non caste, tamen caute, que quer dizer à letra, se não castamente, ao menos com cautela, mas em Chaves toda a gente saberia certamente que o padre Liberal Sampaio teve um filho com a fidalga de uma família muito conhecida na região e com a qual chegou a viver maritalmente, muito embora o menino o tratasse por padrinho.
A casa onde Abílio Augusto da Maia e Costa viveu em Souto de Lafões

Por outro lado, os sete filhos ilegítimos de Abílio Augusto da Maia e Costa não o impediram de ter uma carreira respeitável em Vouzela como Conservador do Registo e advogado em Vouzela e desempenhou por duas vezes o cargo de administrador de Concelho da referida vila em 1920 e em 1926.

Como já referi muitas vezes ao longo deste blog, a propósito da figura de José Rodrigues Liberal Sampaio e da relação que teve com Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão, no século XIX, padres com filhos e bastardos eram fenómenos comuns. Certamente não eram as situações mais desejáveis, mas também não significam uma exclusão social.

Contudo, creio que estes homens, Liberal Sampaio e Abílio Augusto da Maia e Costa viviam a situação no seu íntimo com algum sofrimento, pois eram profundamente crentes e de alguma forma sentiam que tinham violado um sacramento. Segundo, me contou o Bisneto, Abílio Augusto da Maia e Costa já mais velho voltou a usar o cabeção, como sinal de aproximação a Deus e no final da sua vida ofereceu a cada casa da aldeia onde sempre viveu, Souto de Lafões, uma imagem do Sagrado Coração de Jesus, como gesto de arrependimento público.
Abílio Augusto da Maia e Costa na praia de Espinho, onde veraneava com a família durante o mês de Setembro

Para nós, que vivemos num mundo descristianizado e de liberdade sexual é difícil entender realmente as situações destes dois sacerdotes em que a fé entrava em conflito com o desejo de ter uma companheira e de procriar.

Em todo o caso, este reencontro dos familiares destes dois homens, que se conheceram em Coimbra no último quartel do século XIX foi um acontecimento feliz. O bisneto de Abílio Augusto da Maia e Costa ficou comovido por ver pela primeira vez o rosto do bisavô com vinte e poucos anos, na flor da vida, pois só conhecia fotografias do senhor já idoso e o que é mais curioso é que os dois são fisicamente parecidos, como se os genes do antigo condiscípulo do meu trisavô teimassem em permanecer vivos.

 Abílio Augusto da Maia e Costa. Fotografia de J. Sartoris, Coimbra

segunda-feira, 18 de março de 2019

Chávena e pires de porcelana francesa dos finais do século XVIII ou inícios do século XIX


Este conjunto de chávena e pires foram a minha mais recente aquisição na feira de Estremoz. O preço era de tal forma irrecusável, que era pecado deixa-lo na banca.

Embora as peças não estejam marcadas, quando comprei o conjunto estava convencido que era Companhia das Índias, termo com que vulgarmente é conhecida a porcelana de chinesa realizada especialmente para o mercado europeu, nos séculos XVIII e inícios do séc. XIX. Pela sua decoração neoclássica, achei que fosse coisa do reinado Jiaqing (1796-1820). Procurei na net, em livros e em catálogos de leilões encontrar loiça idêntica, que pudesse fundamentar a minha opinião, mas as pesquisas foram inconclusivas. Além disso, percebo muito pouco de porcelana oriental.



Outro factor intrigante neste conjunto é que na reserva, onde deveria estar um brasão, um monograma do nome de quem encomendou o serviço, ou simplesmente um motivo decorativo qualquer, como uma paisagem ou um pássaro, encontram-se números. Na reserva da chávena está pintado o nº 20 e na do pires o nº 35. Mais nas outras peças iguais que eu deixei na banca, casa, cada uma tinha o seu número diferente. Fiquei a matutar neste assunto. Será que em tempos o serviço foi encomendado com uma numeração sequencial por algum burguês rico ou por um aristocrata, com o objectivo de controlar eventuais roubos por parte da criadagem?

Pedi ajuda a um amigo, conservador de cerâmica, o Rui Trindade, que através das fotografias foi de opinião, que esta chávena e pires são porcelana europeia, provavelmente francesa, dos últimos anos do século XVIII ou dos primeiros anos do XIX. Chamou-me até a atenção para o formato da asa, com uma ligeira saliência interior para melhor aderência do dedo, igual a uma chávena da colecção do Museu Nacional de Arte Antiga.

Conjunto do Museu Nacional de Arte Antiga, inv.4699 e 467o. Foto Matriznet
Depois destas explicações pesquisei na net pela expressão tasse litron et soucoupe porcelaine française e encontrei muitas chávenas de porcelana francesa com o mesmo formato e com uma decoração, que não anda muito longe desta, com as grinaldas e outros elementos emprestados dos têxteis, muito típicos da produção francesa da época. Relativamente aos números, o Rui Trindade crê que se trate de peças de mostruário, em que há uma pequena variante para cada uma delas. Fiquei com pena de não ter comprado as restantes peças do serviço para poder comprovar melhor esta teoria.


Claro não há certezas, até porque nem o pires nem a chávena estão marcados, mas cinco euros por uma peça que poderá bem ser um conjunto dos finais do XVIII, ou inícios do XIX, vale bem a toda a incerteza.

quinta-feira, 7 de março de 2019

Uma família em trajes de corte: Nossa Senhora da Madre de Deus de Guimarães


Mesmo sem saber como encaixa-lo na minha casa, comprei mais um registo para a minha colecção de santos, pois encantei-me completamente com esta representação da Nossa Senhora, São José e do Menino Jesus, sumptuosamente vestidos em trajes de corte. É curioso, que eu até já tenho uma estampa com esta representação da Sagrada Família,  mostrada aqui no blog, em 2012, para desejar as boas festas aos meus seguidores, só que, como é uma coisa com menos de meia dúzia de centímetros, não lhe liguei muito. Achei que era uma mera gravurazinha destinada a um escapulário, enfeitado com continhas.



Mas, esta gravura de maiores dimensões, em que os personagens da Sagrada Família envergam uma indumentária tão rica, cheia de pormenores, fez-me suspeitar de imediato que reproduzisse um conjunto de esculturas, que existiu em tempos nalguma igreja, objecto de intensa devoção. No site da Sociedade Martins Sarmento, que tem uma belíssima colecção de registos de santos, encontrei uma gravura muito semelhante a esta, apenas o desenho da moldura difere, mas identifica inequivocamente a devoção, Nossa Senhora da Madre de Deus. A minha estampa tem apenas uma legenda em latim Virgo Maria Mater Dei.

Estampa da colecção da Sociedade Martins Sarmento

De seguida fiz meia dúzia de pesquisas no Google e descobri que esta estampa representa de facto imagens, que ainda hoje existem e são muito veneradas na igreja de Nossa Senhora da Consolação e Santos Passos, na cidade de Guimarães. Encontrei também referência a um catálogo de uma exposição, onde estas imagens figuram, Nossa Senhora Madre de Deus de Guimarães : alfaias / coord. Isabel Maria Fernandes e José Cardoso de Menezes Couceiro da Costa. - Porto : Livraria Civilização Editora, 2004, que me apressei a consultar e cujo conteúdo aqui reproduzo de forma muito sumária.
Foto retirada de Nossa Senhora Madre de Deus de Guimarães : alfaias . - Porto : Livraria Civilização Editora, 2004

Segundo essa obra, a Sagrada Família, representada nesta gravura, foi encomendada em Lisboa por Luís António da Costa Pego, capelão de D. João V, em cumprimento de um voto e destinava-se ao Convento das Capuchinhas, da cidade de Guimarães. O conjunto escultórico vinha acompanhado de uma coroa em prata para a Nossa Senhora, oferecido por D. João V, um resplendor em prata para S. José, dado pelo príncipe herdeiro, o futuro de rei D. José e um enxoval esplendoroso, bordado e executado pelas reais infantas. Quando o magnífico conjunto chegou a Guimarães em 1748, houve uma grande procissão, em que as imagens foram mostradas pela cidade e houve festejos grandiosos. A sagrada família permaneceu no Convento das Capuchinhas até 1910 e o seu enxoval não deixou de ser acrescentado, com uma coroa para o Menino Jesus, um cajado de açucenas para o S. José,  também em prata, ambos já do início do século XIX e ainda muitos trajes, vestidos, capas, camisas, laços para a Virgem, gravatas para o S. José e colchinhas para o Menino Jesus, confeccionados e bordados pelas senhoras da melhor sociedade vimaranense, que com algumas adaptações, foram sempre seguindo o estilo da indumentária da segunda metade do século XVIII.
Foto retirada de Nossa Senhora Madre de Deus de Guimarães : alfaias . - Porto : Livraria Civilização Editora, 2004

As imagens de roca que estão por debaixo deste guarda-roupa luxuoso, eram vestidas pelas Senhoras de Guimarães e as cores variavam consoante o calendário litúrgico.


Em 1910, após a Republica, com a Lei da Separação, os bens do Convento das Capuchinhas foram vendidos em hasta pública e as imagens e o enxoval foram comprados por Henrique Cardoso de Martins Menezes, conde de Margaride. As esculturas deixaram o convento das Capuchinhas e foram depositadas na Igreja da Nossa Senhora da Consolação e Santos Passos, mas as jóias e o guarda-roupa ficaram na casa do referido Conde. No entanto, todos os anos, por alturas da Páscoa essas preciosidades vinham para a referida igreja vestir e adornar as imagens, que saiam em procissão. Em 1956, os descendentes do Conde de Margaride entregaram o enxoval em título de depósito definitivo à Irmandade acima referida e as imagens continuam a sair em procissão pelas ruas de Guimarães ainda nos dias de hoje.


Foto retirada de Nossa Senhora Madre de Deus de Guimarães : alfaias . - Porto : Livraria Civilização Editora, 2004

Para os nossos olhos contemporâneos, os trajes de corte que a Sagrada Família enverga, parecem-nos uma contradição, já que o Menino Jesus nasceu numa humilde manjedoura como toda a gente sabe. Mas no passado, as imagens ricamente vestidas significavam para os crentes que eram poderosas, capazes de propiciarem curas miraculosas, numa época, em que a medicina era incipiente, a mortalidade elevada e a esperança de vida curta. Por essa mesma razão as mulheres devotas ofereciam a essas representações do divino os seus colares e brincos mais valiosos e os homens encomendavam-lhes capas de seda bordadas a ouro, para pagar à Virgem ou ao Menino Jesus, aquilo que em todos os tempos nunca tem preço, a sua vida ou a dos entes queridos.
O verso do registo está revestido com um bonito papel de lustro.