sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Um açucareiro de porcelana inglesa do início do século XIX



Comprei esta peça na feira de Estremoz por um preço muito convidativo. Está decorada a preto, ou melhor ainda num grisaille, com quatro motivos diferentes, representando camponeses, alguns deles tendo por fundo umas paisagens, que parecem ser inglesas. Há apenas uns filetes dourados aqui e acolá. A peça não está marcada e apresenta apenas na base um número, 979, seguido de um ponto, que se deve reportar ao padrão.

Pattern 979.


Apesar de não ter a marca de um fabricante, a peça desde logo me pareceu inglesa, do início do século XIX. Quanto à forma, semelhante a uma pequena terrina, pensei tratar-se de uma mostardeira, mas com meia dúzia de pesquisas, rapidamente me convenci que era um açucareiro.

Como estive doente, com uma gripe, retido em casa alguns dias lancei-me numa pesquisa desenfreada na internet e creio que bati todos os sites de venda on-line de antiguidades, bem como toda a colecção de porcelana Victoria & Albert Museum e não obtive resultados conclusivos.



Quando temos uma louça, que acreditamos ser inglesa, mas não está marcada, as dificuldades de identifica-la na internet são grandes. Enquanto que em Portugal, ao longo do século XIX tivemos uma única fábrica de porcelana, em Inglaterra para o primeiro quartel deste século, laboraram quase uma vintena delas. A produção dessas empresas é por vezes semelhante quanto às formas e à decoração. Enfim, todas seguiam as mesmas modas, procurando satisfazer o gosto neoclássico do público.

Neste período, para aumentar as dificuldades na pesquisa, alguns fabricantes, a par da porcelana propriamente dita, produziam a bone china (na composição entravam ossos), a porcelana branda, a porcelana feldspática, enfim, tudo aquilo, que normalmente se designa por porcelana imperfeita.

Por outro lado, tal como acontecia em França, no mesmo período, há casos de fabricantes de porcelana, que entregavam as suas peças em branco, para outros as decorarem. Embora, não me parece o caso deste açucareiro, que tirando os filetes dourados, não foi pintado à mão. As paisagens com os camponeses parecem-me feitas por transfer-way, isto é, uma chapa de metal com o desenho, que era impressa sobre um pano, que depois era aplicado na peça.


Por último, as nossas pesquisas na internet ficam limitadas ao que se encontra à venda no momento. Claro, os ingleses têm a sua porcelana bem estudada, mas eu tenho não acesso a essa bibliografia. No google books encontrei algumas monografias sobre fábricas inglesas dessa época, como sobre a New Hall, a Herculaneum ou a Worcester, mas só consegui ler alguns capítulos.

Em termos práticos, depois de vasculhar toda louça inglesa à venda na internet e os inventários de alguns museus, encontrei uns quantos açucareiros com a forma exactamente igual ao meu e todos eles da Herculaneum, uma fábrica de Liverpool, que laborou entre 1783 e 1841. Depois de 1800 terá começado a produzir porcelana ou a Bone China. No entanto as decorações são diferentes da minha peça.
Açucareiro da Herculaneum. Decoração concebida pelo ilustrador Samuel Williams. Imagem de https://www.artfund.org/supporting-museums/art-weve-helped-buy/artwork/9931/tea-service




Açucareiro da Herculaneum à venda na Fine Antique English Porcelain, com o padrão 1161

Tal como já referi em outros posts, nos serviços de chá, nem todas as peças eram marcadas. Os fabricantes marcavam ora o bule ora a leiteira ou açucareiro e nas restantes peças, não punham nada ou punham um número, que se reportava ao padrão decorativo. Estes números são muito característicos da produção inglesa e reportavam-se a livros, com os desenhos ou às chapas de metal, com os ornamentos gravados. Alguns desses livros e desenhos sobreviveram até aos nossos dias, outros foram reconstituídos artificialmente por investigadores, como foi o caso da New Hall

Como o número de padrão do meu açucareiro é relativamente alto, 979, seguido de um ponto, presumo que não date dos primeiros anos de laboração da Herculanem. Encontrei um serviço desta fábrica à venda na Christie, com o padrão 878, datado de cerca de 1815. Portanto, seguindo essa lógica este açucareiro terá sido executado por volta de 1820 ou mais tarde.


Serviço da Herculaneum à venda na Christie, com o padrão 878

Quanto a padrão, o 979, do qual não encontrei informação nenhuma, pode eventualmente relacionar-se com algumas peças da fábrica de Liverpool, cuja decoração foi concebida, por um ilustrador muito prolixo, um tal Samuel Williams (1788-1853). Há um certo ar de família entre estas paisagens com camponeses, que decoram o meu açucareiro e outras peças decoradas a partir dos seus desenhos, mas isto é um palpite meu, enfim, uma intuição.

Chávena da Herculaneum com decoração atribuída a Samuel Williams

Em suma, depois de horas esquecidas na internet, posso apenas adiantar uma hipótese, de que este açucareiro, foi fabricado em Inglaterra, pela Herculaneum, por volta de 1820 ou 1825, com uma decoração concebida pelo ilustrador Samuel Williams, mas posso estar redondamente enganado.



Alguma bibliografia e sites consultados

The Herculaneum Pottery: Liverpool's Forgotten Glory / Peter Hyland Liverpool University Press -Liverpool University Press, 2005

https://janeaustensworld.com/tag/regency-painter/

https://www.artfund.org/supporting-museums/art-weve-helped-buy/artwork/9931/tea-service

https://www.antiquepottery.co.uk/set-of-6-herculaneum-liverpool-arcaded-border-pottery-plates/

https://www.fineantiqueenglishporcelain.co.uk/en-GB/19th-century-english-porcelain/a-rare-herculaneum-liverpool-porcelain-sugar-box-teapot-stand-c-1810/prod_10411#.Y6XNaNXP23B

https://www.thefancyfox.co.uk/en-GB/cups-coffee-cans-tea-bowls-saucers/herculaneum-samuel-williams-style-coffee-can-c-1810/prod_10353#.Y6XSQdXP23A

https://www.christies.com/en/lot/lot-4039004

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

A inauguração da linha férrea Liverpool Manchester em 1830: faiança inglesa



Já há uns quantos anos comprei este jarro de faiança inglesa com uma decoração muito invulgar. Normalmente a faiança inglesa do século XIX era decorada com vistas, paisagens com lagos, ruínas, castelos românticos, catedrais góticas ou cenas italianas, umas mais ou menos reais outras imaginadas. Contudo, este jarro foi decorado com um antigo comboio, cuja composição se estende ao longo de toda a peça.



Quando a adquiri, fiz alguma investigação no google sobre ela, mais o que encontrei com esta decoração do comboio foram peças relativamente recentes, marcadas Made in England. Quando encontramos esta marca de proveniência numa peça, já sabemos que é do século XX e muito certamente depois de 1921. Embora algumas fábricas já a usassem depois de 1908, como a Wedgwood, foi depois de 1921, que os americanos regulamentaram uma Lei de 1890, o Tariff act, impondo aos diferentes fabricantes, que quisessem vender os seus produtos nos EUA, a apresentação da marca com expressão MADE IN, seguida do país de origem. Em suma, achei que este jarro era uma coisa do século XX, feita ao gosto do século XX, para satisfazer o gosto de clubes de coleccionadores de assuntos ferroviários, mas mesmo assim, achei-a sempre tão curiosa, que não me consegui desfazer dela.


Há poucas semanas quando procurava informações sobre uma mostardeira de porcelana inglesa, folhei a obra An illustrated encyclopedia of British pottery and porcelain / Geoffrey A. Godden e encontrei reproduzida uma caneca com este motivo do comboio, do segundo quartel do século XIX, fabricada por John & Richard Godwin, marcada com as iniciais impressas. Na mesma obra adiantava que vários fabricantes ingleses produziram variedades deste motivo nas décadas de 30, 40 e 50 do século XIX, usando quase sempre as inicias dos nomes impressas. Fiquei muito feliz achando, que o meu jarro poderia afinal ser uma peça antiga, executa no segundo quartel do século XIX.

A página do Science Museum Group


Procurei então saber mais sobre este motivo delicioso do comboio e encontrei a página do Science Museum Group, no Reino Unido, que como o seu nome indica, agrupa vários museus de ciência, tecnologia, indústria e ainda ferroviários. Na colecção deste grupo de museus encontrei uma série de canecas e malgas todas com o mesmo motivo decorativo do comboio, datadas entre 1830 e 1850 e todas elas são alusivas à inauguração da primeira linha ferroviária do mundo ligando duas cidades, Liverpool e Manchester, em 1830. Esta linha foi um feito notável, que implicou a construção de tuneis, viadutos e toda uma série de obras de engenharia e deve ter impressionado muito quem viveu o acontecimento e os fabricantes de cerâmica, aproveitaram a ocasião para vender umas recordações aos passageiros ou até mesmo às pessoas, que apenas acompanharam o acontecimento através dos jornais.

Inauguração da primeira linha ferroviária do mundo ligando duas cidades, Liverpool e Manchester, em 1830. Imagem retirada de https://collection.sciencemuseumgroup.org.uk


Só é pena que as peças de faianças da colecção Science Museum Group estejam tão sumariamente descritas, nas mais das vezes, sem referência às marcas.

As marcas impressas do meu jarro Railway B&B

O meu jarro apresenta as seguintes marcas impressas na base: uma cartela, indicando o nome do padrão, railway; seguida das iniciais B&B. O conjunto é semelhante da John and Robert Godwin e praticamente idêntico ao da Hampson Broadhurst, mas confesso que aqui, nesta questão das marcas e das suas iniciais me perdi um bom bocado, apesar do recurso ao incontornável site thepotteries.org. A indústria de faiança inglesa no século XIX era um mundo, as companhias, mudavam de nome, associando-se a outras e depois a mais outras e as iniciais das marcas vão se alterando.

Marcas da John and Robert Godwin


Marcas da Hampson Broadhurst


Contudo, talvez o mais provável é que as iniciais B&B, correspondam a Bates & Bennett, (1868-1895), que sucedeu a John & Robert Godwin (1834-1866) e este último fabricou este padrão com toda a segurança, mas isto pode ser um palpite.

O sucesso deste padrão terá ultrapassado o segundo quartel do século XIX e continuou a produzido na segunda metade desse século, como será o caso deste meu jarro. Já na segunda metade do século XX, a Portland relançou este padrão do comboio, mas as cores são muito estridentes, a faiança demasiado branquinha e sem a graça das peças antigas.

O nome da locomotiva vai variando consoante a fábrica de de cerâmica. No meu jarro é Express


Em jeito de conclusão este meu jarro terá sido fabricado pela Bates & Bennett, entre 1868-1895 e representa a inauguração da primeira linha ferroviária do mundo a ligar duas cidades, em 1830.



Alguma bibliografia e ligações consultadas:

illustrated encyclopedia of British pottery and porcelain / Geoffrey A. Godden. - London : Jenkins, 1966

https://www.premierantiques.co.uk/large-hampson--broadhurst-pottery-commemorative-railway-mug-c1840-5327-p.asp

http://www.thepotteries.org/allpotters/71.htm

https://www.rubylane.com/item/454213-TA14045/Antique-19th-Century-Staffordshire-Mug-Railway

https://www.grahamsmithantiques.com/miscellaneous-c3/sold-archive-c42/staffordshire-pottery-railway-tankard-p1466

https://collection.sciencemuseumgroup.org.uk/objects/co8405502/commemorative-mug-fury-locomotive-liverpool-manchester-railway-commemorative-mug

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Uma jarra em opalina do século XIX



Recentemente, comprei esta jarra em opalina decorada com elementos vegetais e insectos por um preço muito convidativo. Embora, não apresentasse qualquer marca, pareceu-me de imediato uma coisa francesa dos finais do século XIX. Os franceses foram os principais fabricantes de opalina no século XIX e invadiram os mercados europeus e americanos com as suas criações.

Apesar da ausência de uma marca tentei descobrir algumas informações sobre esta jarra na obra L'opaline française au XIXe siècle de Yolande Amic, mas sem resultados e de seguida lancei-me no Google fazendo pesquisas em francês pelos termos opaline decoration insectes e fleurs XIX siécle, mas também não encontrei nenhuma peça com a mesma decoração ou forma. Repeti a pesquisa em inglês, para apanhar os sites de venda on-line de antiguidades dos EUA, pois os americanos adoram tudo o seja francês. Encontrei duas jarras exactamente com o mesmo formato, mas estavam identificadas como blue bristol glass. Enfim, fiquei um pouco surpreso, mas Bristol foi um centro vidraceiro muito importante no Reino Unido, que fabricou também vidros mais ou menos semelhantes às opalinas francesas, bem comos os chamados milk glass.




Resolvi então recomeçar as minhas pesquisas pelos termos blue bristol glass vase, até que cheguei ao portal de antiquários americano, o Rubylane, que é sempre muito bom. Os comerciantes que aqui colocam as suas mercadorias à venda conhecem bem antiguidades, devem ter bons peritos a aconselha-lhos e as atribuições, que fazem são normalmente fiáveis, ao contrário do e-bay, onde as informações sobre peças à venda não são de confiança, pois é o sítio onde o senhor-toda-gente, anuncia as tralhas, que tem à venda lá em casa e tudo o que é do século XIX é classificado sumariamente como vitoriano.



No referido Rubylane estavam à venda duas destas peças com estes motivos de flores, passáros e insecto e nas respectivas descrições, esclareciam que no mercado americano as opalinas deste azul, são invariavelmente classificadas como Blue Bristol glass, quando na verdade essas peças em azul-turquesa eram fabricadas na Boémia, a actual república Checa. Refiz novamente a minha pesquisa e percebi que a há uma confusão generalizada nesta matéria. Por exemplo, no Worthpoint estava à venda uma destas jarras com flores, pássaros e insectos classificada como antique french bohemian blue opaline glass. Isto é, em algumas páginas de internet estas peças são designadas como vidro azul de Bristol e noutros com opalina francesa em azul da Boémia.

Continuei as minhas buscas no Google e fui-me apercebendo que estas opalinas são com efeito de origem chega e muito provavelmente da fábrica de Harrach, situada numa localidade a Norte de Praga, Harrachov e cujas origens remontam ao século XVIII. Ao longo de todo o século XIX esta fábrica teve um enorme crescimento, exportando muito dos seus produtos para o estrangeiro, mas adaptando-os ao gosto dos mercados locais, como foi o caso da Inglaterra, onde os produtos checos apresentavam uma tonalidade azul ao gosto de Bristol. De tal forma esta adaptação foi bem-feita, que muitas vezes torna-se difícil distinguir os produtos checos dos ingleses.

Decorações típicas da produção Harrach das décadas de 80 e 90 do século XIX. Imagem retirada de https://www.sellingantiques.co.uk/379276/stunning-19thc-large-15-bohemian-turquoise-oapline-glass-vase-enamel-decoration-flowers-butterflies/


Em todo o caso, as borboletas, pássaros e insectos combinados com flores e plantas foram decorações típicas da produção Harrach das décadas de 80 e 90 do século XIX.

Há uma excelente página sobre as produções Harrac, o Mad about the glass, para quem queira saber mais sobre esta página um vídeo no youtube feito por uma amadora de antiguidades que experimentou exactamente as mesmas dúvidas que eu perante uma jarra em azul de Bristol

Em suma, esta jarra que comprei estando quase certo de que seria francesa, é designada no mercado americano como blue Bristol Glass, mas terá sido mais provavelmente fabricada na Boémia por volta das décadas de 80 ou 90 do século XIX.



Alguma bibliografia e links consultados:

Bristol and other coloured glass / John Bedford. - London : Cassell, cop. 1964

L'opaline française au XIXe siècle / Yolande Amic. - Paris : Librairie Gründ, 1952.

Cristal da Boémia / Vlastimil Vondruska, Antonin Langhamer. - Alfragide : EDICLUBE, 1997












sábado, 26 de novembro de 2022

Uma figurinha em biscuit da Goebel Porzellan

Apesar de já ter jurado a mim próprio ser mais comedido nas minhas compras de velharias, acabo sempre por me deixar tentar por uma peça bonita à venda por um preço vantajoso e lá volto para casa com mais um traste e depois vejo-me grego para lhe arranjar lugar. Para que as peças façam sentido e sejam agradáveis à vista convém dispô-las por famílias, por épocas ou por materiais.


Comprei então este biscuit, que representa uma jovem e uma menina, vestidas de camponesas, cada qual com o seu cestinho. É uma peça sentimental, muito característica da produção alemã dos finais do século XIX e inícios do século XX. A grande maioria dos biscuits alemães não apresenta qualquer marca de fabrico. Quanto muito ostentam na base um número, que se reporta certamente ao modelo. Consigo identificar que são alemães, porque desde há doze anos para cá vasculho todas as páginas de vendas de antiguidades na internet à procura de biscuits e aprendi a conhecer-lhe as características. Mas na Alemanha houve centenas de fábricas de porcelana e é um mundo no qual nos perdemos. Para aumentar a dificuldades, os austríacos também fabricaram biscuits, bem como os checos e alguns dos fabricantes deste último país usavam nomes alemães. Mas desta vez tive sorte e este biscuit, além do número da série, o 7872., apresenta uma marca do fabricante, as iniciais W e um G ou C, encimadas por uma coroa.

As letras W e G encimadas por uma coroa

7872
O número da série ou modelo, o 7872

Lancei-me então numa pesquisa intensa na internet e não foi fácil, pois marcas com iniciais encimadas por coroas há centenas delas pela Europa fora. Enfim, muitas empresas nos finais do século XIX ou início do século XX escolhiam coroas nas marcas, para parecer que eram fornecedores oficiais de alguma casa real. Consultei também alguns livros de marcas de cerâmica de que disponho na biblioteca, mas em vão, até que por mero acaso na internet descobri que as iniciais WG encimadas por uma coroa foram usadas pela Goebel Porzellan, uma fábrica que ainda existe nos nossos dias. As letras WG correspondem às inicias no nome de um dos fundadores da empresa, William Goebel. 

As marcas da Goebel Porzellan

Esta fábrica foi fundada em 1871 em Oeslau-Rödental, perto de Coburgo, numa parte da Baviera, já encostada à Turíngia, que juntamente com o Saxe é a grande zona de produção de porcelana na Alemanha. A marca em questão foi usada nos anos de 1900, assinalando o tempo em que a fábrica passou a apenas a ter um único proprietário, o já referido Sr. William Goebel. Nessa época, esta casa notabilizou-se pela produção destas encantadoras figurinhas de crianças, que ainda hoje nos fazem sorrir, estatuetas ao gosto de Meissen ou de animais exóticos e ainda cabeças em biscuit para bonecas de meninas, estas últimas valorisadíssimas pelos coleccionadores. 

biscuit da Goebel Porzellan
Goebel Porzellan produzia cerca de 1900 estas encantadoras figurinhas de crianças, que ainda hoje nos fazem sorrir. Biscuit da Goebel à venda em  https://www.catawiki.com

Logo neste período os Estados Unidos tornaram-se um mercado importante para a as porcelanas Goebel e nos anos 50 essa popularidade aumentou ainda mais naquele país com a produção de figurinhas da Disney e continuaram a fabricar bonecada até aos dias de hoje. Alguma dessa bonecada dos anos 50 e 60 é a meu ver medonha, mas isto dos gostos é uma coisa, que varia com o tempo.

biscuit da Goebel Porzellan

Este meu biscuit parece contar qualquer história, uma jovem e uma menina, que vão ao mercado ou colher frutas, pois tem ainda os cestos vazios e a mais nova estende a mão, como que pedindo alguma coisa à mais velha. Talvez no início no século XX as pessoas identificassem claramente o significado desta representação e fossem figuras, que se viam nas ruas ou nos campos da Alemanha dos primeiros anos do século XX. Hoje, teremos que imaginar uma narrativa qualquer para estas meninas em biscuit.

biscuit da Goebel Porzellan


Algumas ligações consultadas:


quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Busto em biscuit representado Luís XVII de França



Recentemente viajei até Viena de Áustria e entre visitas a museus, palácios e igrejas dei um pulinho ao principal mercado de velharias da cidade, o Naschtmarkt. As feiras de velharias têm sempre um ambiente engraçado, com aquela mistura de gente de todas as classes sociais, de turistas e ainda das faunas alternativas típicas das grandes cidades. Os preços eram altos, mas quando não se conhecem os vendedores e sobretudo a língua é mais difícil negociar. Mas, lá comprei uma por um preço aceitável uma peça qualquer, para não ficar sem com uma recordação daquela cidade elegante.

Trata-se de um pequeno busto de perfil, imitando os antigos camafeus, disposto num veludo verde encaixilhado em latão dourado. Como a moldura é um porta-retratos tive ainda alguma esperança que fosse um retrato verdadeiro de algum jovem, cuja memória fosse querida para a família e tivesse merecido uma moldura para ser colocada numa cómoda ao lado de fotografias antigas de família. Nos finais do século XIX ou inícios do XX, data em que pareceu provável datar peça, ainda havia quem encomendasse retratos de si ou dos seus em camafeu, ainda que fosse apenas em gesso. Mas, como já tenho alguma experiência destas coisas, achei que isso seria sorte em demasia e era mais natural que esta peça fosse uma réplica qualquer de outra mais antiga. E de facto, olhando melhor para o menino de cabelo comprido e uma blusa aos folhos, representado no camafeu, pareceu-me que este estava trajado à moda dos últimos anos do século XVIII.

O pequeno busto está emoldurado num porta-retratos em latão dourado.

Lembrei-me que já tinha visto esta imagem algures e tive um pressentimento de que se tratava do delfim de França, Louis-Charles de France, o filho de Maria Antonieta e Luís XVI, que morreu de maus-tratos na prisão do Templo em 1795. Pesquisei no google pelos termos cameo Dauphin Louis XVII e o segundo resultado foi uma figura igualzinha à minha, que esteve à venda num antiquário francês pela exorbitante quantia de 1.000 euros!! Enfim, há sempre comerciantes de velharias que acham que estão a vender as joias da coroa. Em todo o caso, nas Antiques de Laval confirmei que se tratava do busto do menino Louis-Charles de France, identificaram o material, biscuit e ainda adiantavam a data, início do século XIX. Fiquei muito surpreendido, pois sempre achei que este busto camafeu era uma coisa qualquer dos finais do XIX ou até mesmo dos primeiros anos do XX.

Busto em biscuit vendido nas Antiques de Laval 


Lancei-me então numa busca desenfreada na net para tentar confirmar os dados das Antiques de Laval e fiquei surpreendido com as centenas de representações que existem deste menino. Encontrei bustos em vulto pleno, pinturas miniatura, medalhas e dezenas e dezenas de gravuras diferentes. Existe até uma página na internet inteiramente dedicada às representações de Louis-Charles de France, o http://musee.louis.xvii.online.fr/index.html, com uma extensa iconografia, mas mesmo em sites institucionais como o British Museu, contei pelo menos 106 representações daquele que os realistas consideram ser o Luís XVII de França.

A iconografia de Luís XVII é vasta. imagem da página http://musee.louis.xvii.online.fr/index.html


Já tinha uma ideia da enorme popularidade das imagens de Maria Antonieta, essa rainha cuja existência decorreu de uma forma frívola e elegante, mas que na hora do seu julgamento em 1793 mostrou uma enorme dignidade, sendo guilhotinada nesse mesmo ano. No entanto desconhecia, que as imagens do seu filho, o jovem delfim, fossem também tão populares. Mas é natural, pois sua história foi tão dramática. Foi aprisionado com os pais, depois separado deles, vítima de maus-tratos, alcoolizado e obrigado a testemunhar contra a sua mãe, acusando-a de incesto. Viu os pais serem conduzidos ao cadafalso e acabou por morrer de tuberculose na prisão do templo em 1795. Talvez por essa razão, as representações do jovem delfim sejam em tão grande número, apreciadas pelos coleccionadores e atinjam preços altos no mercado.

Retrato de Maria Antonieta na sua cela da Conciergerie. Gravura impressa por John Murphy, a partir de Anne Flore Millet, marquise de Bréhan, 1875. Col. do British Museum 


Tentei de seguida saber qual a origem desta representação e apesar de facilmente perdermo-nos no meio uma iconografia tão abundante, julgo que as fontes principais deste busto em biscuit foram as seguintes obras:



- O retrato pintado por Alexander Kucharsky em 1792, que se encontra actualmente no Palácio de Versalhes;

Foto copiada de https://www.we-art-together.fr/produit.php?id=454


- O desenho feito pelo fisionotraça Chrétien Fouquet c. de 1791, mais tarde gravado por Gilles-Louis Chrétiens (1745-1811)

Provavelmente quem passou a imagem do malogrado Delfim a biscuit fez uma composição a partir destas duas representações. Contudo, a imagem mais próxima é de uma medalha executada provavelmente depois de 1815, data da restauração da Monarquia em França.

Medalha representado Luís XVII encontrada à venda no e-bay


Dediquei-me então a tentar perceber em que país foi executado este biscuit. A peça foi comprada na Viena e quer este país, quer a vizinha Alemanha, no século XIX, tiveram uma ampla produção de biscuits. O jovem delfim era filho de uma austríaca e neto da imperatriz Maria Teresa, uma soberana cujo governo é ainda hoje venerado por todos os austríacos. Portanto, esta peça poderia ser austríaca, mas os bustos de perfil, que encontrei desta época em museus europeus ou antiquários representado várias figuras da realeza ou da grande aristocracia de França são normalmente de fabrico francês. 

Col. do Museu Nacional de Soares dos Reis. Foto reproduzida de João Allen : colecionar o mundo. - Porto : Museu Soares dos Reis, 2018


Nos finais do século XVIII e primeira metade do século XIX, em Inglaterra Wedgwood também fabricou estas figuras de reis e rainhas inspiradas nos antigos camafeus, mas normalmente não eram recortadas o fundo era azul.

O British Museum tem na sua colecção um destes bustos em biscuit representado Luís XVI, atribuído a Sèvres ou pelo menos a um fabricante francês e na ficha de inventário, explica-se, que depois da restauração da monarquia em França estas figuras de perfil representando figuras da realeza alcançaram grande popularidade. Eram normalmente encaixilhadas em molduras de madeira ou latão e na segunda metade do século XIX a moda tornou-se expô-las em séries reais na mesma moldura. Algumas destas figuras eram já fabricadas antes da Revolução de 1789 e o seu fabrico foi retomado depois de 1815 para satisfazer os monárquicos saudosistas do ancient regime. Em todo o caso, as fábricas francesas produziram também estes bustos de perfil de Napoleão Bonaparte, de Josefina, de Luís XVIII e ainda de outros grandes titulares da nobreza francesa.

Na segunda metade do século XIX tornou-se moda emoldurar estes pequenos bustos em conjunto, formando séries régias. Retratos de seis membros da família real francesa. Biscuit da Manufactura de Sèvres, de Jean Charles Nicolas Brachard, o velho (1766–1823), c. 1822. Philadelphia Museum of Art


Nesta altura das minhas pesquisas, sabendo já que esta figura de perfil em biscuit valia no mercado de antiguidades, bem mais do que eu paguei por ela, resolvi pedir ao meu amigo Manel para a descolar do suporte de veludo onde está colada no sentido de ver se tinha alguma marca de fabrico. E de facto, o meu amigo assim fez. A peça está marcada, mas apenas com a identificação do personagem Orphan Louis XVII. Neste momento fiquei com uma dúvida. Orphan é a palavra inglesa para órfão. Em francês seria orphelin. Será que Orphan é uma abreviatura para orphelin. Enfim, o espaço para escrever desta peça é diminuto e quem fez esta inscrição teve que recorrer a uma abreviatura. Será que esta inscrição é posterior ao fabrico da peça?

O verso do busto. Orphan Louis XVII.


Em suma este busto de perfil em biscuit, talvez tenha sido produzido em França depois da restauração da monarquia em 1815 e representa o Delfim, o pequeno Louis-Charles, que terminou a sua breve vida de uma forma tão trágica e desamparada. Terá sido coleccionado primeiro pelos saudosistas do antigo regime e depois, mais tarde pelos burgueses ricos, que acreditavam que terem bustos da realeza nas suas casas, emprestava ao ambiente um ar mais fino. Finalmente, hoje em dia, é um objecto apetecido pelos colecionadores de memorabilia real, que se dedicam a comprar fotografias antigas dos últimos czares da Rússia, representações de Napoleão Bonaparte ou caixas de joias vazias, fitas e laços e luvas, que pertenceram a nossa rainha D. Amélia de Orleans.



sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Uma cópia da Madona de Nuremberga



O meu amigo Manel comprou há uns tempos esta imagem em barro de uma Madona. Com a escultura veio também um plinto em madeira, que é quase um pequeno oratório, forrado a damasco vermelho. No início, achei que fosse uma peça qualquer francesa no chamado estilo Saint-Sulpiciano, esse termo pejorativo, criado pelos franceses, para designar a arte religiosa produzida nos finais do século XIX pelas oficinas de santeiros e impressores de estampas piedosas, que existiam nas ruas em volta da Igreja de Saint-Sulpice, em Paris.

A madona com o seu pequeno oratório revestido de damasco vermelho


Porém, à medida, que o tempo passava fui olhando para ela com outra atenção, sobretudo nalgumas horas do dia, em que a luz lhe acentuava as formas e encontrei-lhe uma simplicidade muito pura e tocante e recordei-me que no Museu Nacional de Arte Antiga já tinha visto umas esculturas semelhantes, do século XVI, figuras de calvário, provenientes do mundo germânico e executadas e madeira.

Santa Mulher (de deposição no túmulo). Áustria, séc. XVI. Colecção do Museu Nacional de Arte Antiga, inv. 509 esc


Já depois dessa fase, em que começando a apreciar esta imagem em barro, passou-me um livro pelas mãos, The limewood sculptors of Renaissance Germany de Michael Baxandall, que me encantou particularmente e ao folheá-lo, descobri a escultura original, que serviu de modelo à peça do meu amigo Manel. Foi executada em madeira de tília, entre 1510 e 1520, e é uma peça emblemática da arte alemã, vulgarmente conhecida pela Madona de Nuremberga.

O original da Madona de Nuremberga.  Germanisches Nationalmuseum


Esta escultura fazia parte de um calvário e estava esquecida numa igreja de dominicanos na cidade de Nuremberga. Foi redescoberta em 1807 após a demolição da Igreja e até à sua entrada no Germanisches Nationalmuseum, em 1880, serviu como modelo para os estudantes de uma escola de artes. Logo nesse período, executaram-se várias cópias em gesso para que vários grupos de alunos a pudessem desenhar e estudar. Este interesse por esta Madona, enquadrava-se no espírito romântico da época, que valorizava a Idade Média, período onde se tinham formado as modernas nações europeias e a Alemanha, fragmentada em vários principados e reinos, aspirava à unificação, a constituir-se como nação unificada num único estado. Por outro lado, esta Nossa Senhora foi esculpida em Nuremberga, entre 1510 e 1520, num período em Albrecht Dürer estava activo. De modo, a escultura passou a ser associada a esse período de esplendor da cidade, que viu nascer e morrer esse mestre alemão.

Pelas razões acima enunciadas e porque a escultura era realmente bela, a Madona de Nuremberga tornou-se uma obra icónica da arte alemã e foi sendo reproduzida em gravura, em alabastro, madeira, metal, pedra ou barro, em diferentes dimensões, tornando-se um objecto decorativo presente na sala de uma qualquer família alemã e chegou mesmo a figurar em selos de correio.

A imagem não apresenta marca de fabricante

Esta escultura em barro do Manel é uma das muitíssimas cópias dessa Virgem de Nuremberga, que se fizeram ao longo de mais de 150 anos e é difícil precisar em que período exactamente. O plinto onde se encontra parece mais uma coisa dos finais do XIX ou inícios do XX. Embora não ostente qualquer marca de fabrico, posso também presumir que esta cópia da Madona de Nuremberga teve origem na Alemanha, já que a popularidade desta imagem parece ser um fenómeno muito alemão. Em todo o caso, mesmo sendo uma cópia, esta figura em cerâmica traz-nos um pouco da beleza e do vigor da escultura tardo-gótica do mundo germânico



Bibliografia e textos consultados:


The limewood sculptors of Renaissance Germany / Michael Baxandall. - New Haven ; London : Yale University, 1980,

Obras em reserva : o museu que não se vê / coord. científica António Flipe Pimentel, Anísio Franco, José Alberto Seabra Carvalho. - Lisboa : Museu Nacional de Arte Antiga, 2016

https://www.ottmar-hoerl.de/en/projects/2017/2017_Madonna.php