sábado, 22 de junho de 2019

Uma moldura em forma de harpa


A história familiar é importante para mim e gosto de me rodear de retratos dos antepassados. Creio que de certa forma repito os rituais dos antigos romanos aos deuses Manes, um culto prestado aos antepassados, que partiram, mas que coabitam com os seus descendentes, numa homenagem à perpetuidade da raça. Certamente por essa razão, sempre que vejo uma bonita moldura antiga numa feira de velharias, compro-a para encaixilhar mais um retrato de um bisavô, de uma trisavó ou de uma tia.

A mais recente aquisição foi este porta-retratos em forma de harpa, composto por duas placas diferentes de madeira artisticamente recortadas. É um objecto muito ao gosto da arte nova, que me encantou de imediato. Procurei obter algumas informações sobre esta peça no google e fiz umas quantas pesquisas por palavras chave naquele motor de busca , em francês, português e inglês e acabei por ir ter à pagina de um senhor espanhol, http://www.finescrollsaw.com, que ainda executa estes trabalhos a partir de moldes antigos e cuja leitura me permitiu perceber exactamente o objecto que tinha em não.

No início do século XX estes trabalhos de madeira recortada estavam muito na moda e existiam uma série de empresas francesas, italianas, inglesas, belgas e americanas que editavam catálogos, vendendo quer os moldes, quer as ferramentas para que, qualquer amador habilidoso executasse no conforto do seu lar uma panóplia de objectos, que iam desde molduras, a caixas de costura e guarda-joias, passando por gaiolas e étageres, sem esquecer as caminhas para meninos jesus e mobília para casas de bonecas. Normalmente estas peças tinham um recorte muitíssimo arrebicado e combinavam bem com o gosto sobrecarregado da decoração de interiores, tão típico da viragem do século XIX para o XX.
Catálogo da Casa Pietro Barelli. Imagem retirada de http://www.finescrollsaw.com/pietrobarelli/pietrobarelli-fr.htm

Num desses catálogo, o da casa Pietro Bareli, de Milão, datado de 1906, encontrei uma imagem de uma destas molduras em forma de harpa, que é praticamente igual à minha. Há apenas uma diferença, no lado direito do modelo existe uma pequena pauta musical, que corresponde à parte onde a minha moldura está quebrada. Como este porta-retratos é um objecto frágil, provavelmente um dia caiu ao chão e perdeu a pecinha que representava a pauta musical.

Em suma, consegui perceber que a meu porta retratos foi executado a partir de um molde de uma destas revistas, publicada logo início do século XX e irá agora servir para encaixilhar umas das muitas fotografias antigas de família que disponho.


sexta-feira, 7 de junho de 2019

O luxo do Vieux Paris: chávena e pires do início do século XIX


Depois de muito namoro o meu amigo Manel comprou esta peça de uma qualidade excepcional, uma chávena com um pires, moldados em forma de concha e que imediatamente presumimos tratar-se de porcelana de Paris, do início do século XIX. Com efeito, ainda antes do Manel adquirir finalmente a peça sabíamos, que o Museu Nacional de Arte Antiga tinha em exposição uma chávena exactamente igual, da antiga colecção de Luís Fernandes (inv. 4454 e 4455 cer)
Chávena do Museu Nacional de Arte Antiga. (inv. 4454 e 4455 cer)
Contudo a chávena do Museu Nacional de Arte Antiga está marcada com uma espécie de espadas cruzadas à maneira de Meissen, identificáveis com a Casa Locré, Russinger e Pouyat (1773-1824). Ao contrário, a chávena e pires do Manel não estão marcados, o que nos levou logo a ter uma série de interrogações quanto ao seu fabricante, pois muitas das casas de Paris desse período nem sempre marcavam as peças, imitavam-se umas às outras e sobretudo copiavam Sêvres. Creio eu que muitos desses fabricantes tentariam fazer passar os seus produtos por Sêvres, a mais prestigiada fábrica de porcelana francesa e europeia. Mais ainda, algumas dessas casas parisienses compravam porcelana em branco a outros fabricantes, que se limitavam a decorar. Em suma, quando as peças não estão marcadas é sempre um risco fazer atribuições.
A chávena do MNAA está marcada com uma espécie de espadas cruzadas à maneira de Meissen, identificáveis com a Casa Locré, Russinger e Pouyat
 
 
A chávena do Manel tem apenas uma pequeno x pintado a dourado, que creio ser apenas uma marca de controlo interno da fábrica.

Contudo, temos quase a certeza que se trata de Porcelana de Paris produzida nas duas primeiras décadas do século XIX. Na sua obra Porcelaine de Paris, Régine de Plinval de Guillebon afirma que, no início do Século XIX houve uma tendência geral na produção daquela cidade para transformar a chávena num bibelot extremamente requintado. Observa-se uma verdadeira loucura de formas novas de chávenas, que podem ser em forma de cisne, de caracol, de concha, ao estilo etrusco, caneladas e ainda com muitos grifos à mistura. A título de exemplo, a Darte Frères e Sêvres produziram chávenas em forma de cisne, que mais tarde, a nossa Vista Alegre copiou, mais ainda, a Dagoty e a Casa Locré, Russinger Pouyat fabricaram chávenas em forma de concha e os grifos abundaram por todo o lado.
Chávena e Pites da Dagoty, que esteve à venda na leiloeira Christie's
No fundo, esta chávena do Manel é bem um exemplo dessa produção das casas de porcelana Paris no início do século XIX, que tendem a adoptar formas insólitas, mas refinadas e a transformar a chávena num objecto que se exibe numa vitrina. É provável que tenha sido cerca fabricada cerca de 1820 pela Casa Locré, Russinger Pouyat, já que é igual ao exemplar do Museu Nacional de Arte Antiga, mas não é seguro. Em todo o caso, independente do seu fabricante está chávena é tão refinada, que só me ocorre um francesismo para a qualificar, ravissante.
 
 

Alguma bibliografia e links consultados:
 
Porcelaine de Paris, 1770-1850 / Régine de Plinval de Guillebon. Friburg: Office du Livre, 1972