sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Um jovem malandrete: retratos fotográficos de estudantes da Universidade de Coimbra em 1900


Desde há cerca de um ano que me dedico a estudar os dois álbuns fotográficos da família, contendo retratos tirados mais ou menos entre 1860 e 1902. Tenho também procurado consultar bibliografia sobre retrato fotográfico em Portugal no século XIX e um dos textos mais interessantes sobre o tema foi o de Francisco Queiroz (*1), que escreveu sobre os álbuns fotográficos de família em particular, chamando a atenção para a importância de os relacionar com outros álbuns de família da mesma região geográfica. Mais ou menos entre 1860 e 1900, as pessoas mais afortunadas tiravam o seu retrato fotográfico em formato carte-de-visite, guardavam um exemplar para si ofereciam os restantes sete exemplares pelos seus parentes ou gente do seu círculo social. Em teoria, os retratos do álbum de uma determinada família encontrar-se-ão também nos álbuns de outras famílias aparentadas entre si, do mesmo meio social e região geográfica.

Por essa razão, tenho vasculhado os arquivos com colecções fotográficas on-line à procura de retratos fotográficos do XIX e nas feiras de velharias sempre que vejo álbuns carte-de-visite, ou mesmo fotografias do século XIX, lanço-me sobre eles na esperança de encontrar um retrato igual aos que tenho por identificar, só que com uma legenda ou uma dedicatória, que me permitam reconhecer aqueles senhores de bigode retorcido ou uma daquelas damas vestidas com metros e metros de seda. No entanto, não tenho tido muita sorte, pois normalmente frequento à Feira de Estremoz e os álbuns e fotografias que encontro à venda pertenceram a famílias do Sul, de Lisboa ou mesmo do estrangeiro. O que eu realmente precisava era de comparar os dois álbuns de fotografias que tenho, com o de outras famílias transmontanas de Chaves, Valpaços, Montalegre, Vinhais ou Vila Real.
 
A fotografia do álbum do meu bisavô.
Há pouco tempo, encontrei à venda um desses álbuns, datado mais ou menos da mesma época, daquele que foi formado pelo meu bisavô e a semelhança deste, estava cheio de retratos de condiscípulos da Universidade de Coimbra do proprietário original. Folheei o dito livro e imediatamente encontrei um finalista do curso de Direito de Coimbra, que constava também do álbum do meu bisavô, um jovem de bigode, com um certo ar de malandrete. Ainda tentei comprar o álbum inteiro, pois talvez houvesse mais retratos iguais, mas a senhora só vendia as fotografias à peça, pois assim fazia mais dinheiro.
 
A fotografia que comprei na feira de velharias de Estremoz

Esta fotografia que comprei é de maiores dimensões, do que aquela que eu tenho. É o chamado formato cabinet, ou carte cabinet (*2) , como dimensões médias de 10,8×16,5cm, portanto, maior que o carte-de visite. Os dois retratos foram executados pelo mesmo estúdio, o J. Gonçalves, também designado por Centro Fotográfico Académico, com sede na Avenida Navarro de Pais (estrada da Beira), Coimbra e que tinha também um atelier na Figueira da Foz, a Photographia Europa.
 
A assinatura ilegível
 
Apesar de ambas as fotografias estarem dedicadas, não conseguia ler a assinatura. O primeiro nome parecia-me Arthur, mas o apelido era indecifrável. Este jovem que foi condiscípulo do meu bisavô, José Maria Ferreira Montalvão, esceveu seguir ao nome, Mousão, ou Monsão.
 
José Maria Ferreira Montalvão, meu bisavô, no momento da sua formatura. em 1902. Foto de Pinho Henriques, Coimbra
 
Pensei ainda que fosse um título nobiliárquico, pois na altura era hábito colocar a seguir ao nome próprio o título de nobreza entre parêntesis (mesmo hoje em dia ainda há quem faça isso). Pesquisei na net por viscondes de Monção, mas os nomes desses fidalgos não tinham nada a ver com o deste jovem com ar de quem partiu muitos corações em Coimbra. Pesquisei então, no arquivo da Universidade de Coimbra, pelas expressão  Artur Direito 1902 ( o ano em que o meu bisavô terminou o Curso de Direito), mas os resultados foram  nulos. Enquanto fazia estas buscas chegou uma colega, a Conceição Borges de Sousa, que me sugeriu para pesquisar na base daquele arquivo, pelo nome do Senhor a quem o jovem em causa, dedicou a fotografia, um tal Aurélio de Vasconcellos e recuei a data para 1900 e consegui descortinar então, que o proprietário do álbum à venda na Feira de Estremoz foi Aurélio de Almeida Santos e Vasconcelos, que cursou Direito entre 1895 e 1900 (*3). Lembrei-me então, que o Arthur poderia ter concluído o curso também em 1900, um pouco mais cedo que o meu bisavô e procurei na base de dados do arquivo daquela Universidade por Artur Direito 1900 e imediatamente percebei, que o galante jovem de bigodes só poderia ser Artur Anselmo Ribeiro de Castro, nascido em Macedo, Monção e que estudou direito em Coimbra entre 1898 e 1900 (*4). A assinatura que eu não conseguia ler, era afinal a de Arthur Anselmo.
Verso da fotografia, com a dedicatória de Artur Anselmo ao meu bisavô
Este Artur Anselmo, que andou pela Universidade de Direito em Coimbra 1898 e 1900, a julgar pelos registos oficiais, era das relações do meu bisavô, José Maria Ferreira Montalvão, a quem dedicou o seu retrato, mas muito mais próximo de Aurélio de Vasconcelos, pois a este, escreveu no verso da fotografia, que lhe ofereceu, um extenso e sentido texto. Aliás é natural, que isso tivesse acontecido. O Artur Anselmo era um partidário da República, que dirigiu um jornal republicano em Coimbra, a Voz do porvir, em 1897 (*5) e Aurélio de Vasconcelos comungava também do mesmo ideal político, apesar de ser um fidalgo, morgado de Sortelha. Portanto, os dois eram republicanos, ao contrário do meu bisavô, que era monárquico, embora nunca tenha sido um activista político, como o seu pai, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio.
Artur Anselmo dedicou um extenso e sentido texto a Aurélio de Vasconcelos
O senhor que formou o álbum do qual eu comprei a fotografia, Aurélio de Almeida Santos e Vasconcelos era natural de Meda e foi morgado de Sortelha(*6). Os senhores, que tinham à venda este álbum, fazem várias feiras de velharias do País, mas são também da Beira, mais precisamente do Fundão e é natural, que tenham comprado o recheio da casa de algum dos seus descendentes de Aurélio de Almeida Santos e Vasconcelos, de onde constaria este álbum.

Relativamente ao excelente texto de Francisco Queiroz, intitulado História da Fotografia em Portugal, no século XIX: os retratos "carte de visite”, que sublinha a importância de relacionar os álbuns carte-de-visite de várias famílias da mesma região, eu acrescentaria que seria do maior proveito para a memória do País e da Universidade de Coimbra, relacionar todos os álbuns com fotografias de estudantes de Coimbra, de modo a formar um extenso repositório de imagens de alunos da Universidade de Coimbra, no último quartel do século XIX. Toda elite portuguesa da época passou por lá.
 
As duas fotografias: a primeira formato carte-de-visite, do álbum do meu bisavô; a segunda formato cabinet, ou carte cabinet, comprada na feira de Estremoz
 
Ligações consultadas:

(*1) História da Fotografia em Portugal, no século XIX: os retratos "carte de visite” / Francisco Queiroz http://www.queirozportela.com/fotografia.htm

(*2) https://fr.wikipedia.org/wiki/Format_cabinet

(*3) https://pesquisa.auc.uc.pt/details?id=209256&ht=aur%c3%a9lio%7Cvasconcelos%7Cdireito%7C1900

(*4). https://pesquisa.auc.uc.pt/details?id=290604&ht=artur%7Cdireito%7C1900

(*5) https://digitalis.uc.pt/pt-pt/fundo_antigo/voz_do_porvir_hebdomadario_republicano_red_arthur_anselmo_ribeiro_de_castro_et_al

(*6). https://capeiaarraiana.pt/2014/09/21/78688/

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Resgatando fotografias do anonimato

 
Este retrato carte-de-visite não tem identificação do fotografo, do retratado, nem tão pouco uma dedicatória

Desde que uma prima minha me ofereceu dois álbuns fotográficos de família, constituídos mais ou menos entre 1865-1900, a identificação daquela galeria de personagens tornou-se mais ou menos uma obsessão permanente. Faço pesquisas em arquivos que possuem colecções de fotografia digitalizadas, consulto estudos genealógicos, escrevo e-mails a familiares ou descendentes dos retratados e publico notícias em fóruns e ainda dou voltas a cabeça, pensando que outros meios poderei encontrar para identificar aquelas personagens retratadas há quase 150 anos e das quais não há uma legenda, uma dedicatória, uma pista sequer, que me esclareça sobre quem foram e o que fizeram.
 
Este segundo retrato carte-de-visite também não apresenta qualquer identificação, mas trata-se da mesma pessoa que anterior fotografia
 

Muitos desses retratos fotográficos teimam em guardar os seus segredos, outros, aos poucos, vão se revelando e começam a ter um nome. Foi o que aconteceu com duas fotografias de um cavalheiro distinto, tiradas talvez em meados dos anos 60 do século XIX ou eventualmente já na década de 70 desse mesmo século. Os dois retratos não têm qualquer identificação da pessoa, do estúdio fotográfico, nem tão pouco uma dedicatória. No entanto, desde logo pareceu-me certo que os retratos eram da mesma pessoa e que se tratava de um Montalvão, pois o senhor apresentava o mesmo tipo fisionómico da minha trisavô, a Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão (1856-1902), e do seu irmão o General António Vicente Ferreira Montalvão (1840-1919). Enviei cópias destas duas fotografias, bem como a de um senhor em uniforme militar, à minha prima, Fernanda Montalvão Hof, bisneta do general e imediatamente reconheceu como seu bisavô o jovem militar, mas quanto ao personagem dos outros dois retratos, achou que seria certamente um Montalvão, mas não o identificou.
 

Os dois irmãos Montalvão, a Maria do Espírito Santo e o António Vicente. Os dois apresentam os mesmo traços de família, os olhos claros, o mesmo formato de orelhas.

Depois desta resposta, comecei a pensar que este senhor poderia ser o outro irmão da Maria do Espírito Santo e do António Vicente, o meu tio trisavô, Miguel Ferreira Montalvão (1838-1890), que morreu louco, rodeado de livros, um personagem acerca do qual sei tão pouco e tenho tanta curiosidade. Creio que todos nós temos sempre mais interesse pelos indivíduos, que saíram da normalidade social e este meu antepassado foi um desses casos. Começou a sua carreira muito bem, fez o curso de Direito em Coimbra, onde assistiu a umas das grandes revoltas estudantis, daquela universidade, a Rolinada (1864), regressou a Chaves, onde exerceu advocacia, foi administrador do Concelho, Juiz de Direito Substituto e em 1890, morre louco, rodeado de livros, sem querer ver ninguém. Era um homem culto e terá sido através dele, que o meu trisavô, Padre José Rodrigues Liberal Sampaio foi introduzido no Solar de Outeiro Seco, pois os dois partilhavam o gosto pelos livros e pela leitura. Claro, uma coisa leva à outra e o Padre acabou por se envolver com a irmã, relação da qual nasceu um filho, o meu bisavô, de que quem eu descendo. Isto é, se fizermos fé na obra 5 contos …em moeda corrente. . / Montalvão Machado - Porto: Livraria Progredior, 1961, que narra de uma forma muito romanesca os amores do padre e da fidalga.
 
Os símbolos militares
 
 
António Vicente Ferreira Montalvão

Porém, como a história nem sempre é aquilo, que nós desejávamos que ela fosse, resolvi pedir mais opiniões sobre os retratos deste cavalheiro ao meu amigo Humberto Ferreira, que além de ser sempre prestável, é um homem observador, um coleccionador de tudo o que diga respeito à fotografia e muito conhecedor dos assuntos de Outeiro Seco, Concelho de Chaves, onde viveram estes personagens que mencionei. O Humberto viu as fotografias e foi de opinião que no segundo retrato, o distinto cavalheiro envergava um traje militar, chamando-me a atenção para os botões do traje e para as mangas, idênticos ao do retrato de António Vicente Ferreira Montalvão, na altura um jovem alferes-aluno.
 
O símbolo da artilharia, a bombarda.
Resolvi então enviar cópia das imagens ao meu irmão, oficial reformado, que foi da mesma opinião do Humberto e ainda foi mais longe, identificando nos botões, o símbolo da artilharia, a bombarda. Portanto, estes dois retratos são efectivamente do António Vicente Ferreira Montalvão, cuja área militar, era precisamente a artilharia.


Fiquei satisfeito por ter resgatado mais duas fotografias do silêncio e do anonimato.

António Vicente Ferreira Montalvão (1840-1919)

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Nereidas e Tritões por Charles Le Brun


Bem sei que esta estampa não foi propriamente uma pechincha, mas pareceu-me desde logo uma coisa com qualidade, com uma moldura adequada, pequenina e ficava a matar na minha sala de jantar e lá paguei a quantia pedida e voltei todo satisfeito para casa com ela dentro da mochila.
 
Representa um tema da mitologia clássica, o que serve bem para variar de tantos santos, cristos e virgens que decoram a minha casa. Enfim, tenho que começar a pensar nos meus filhos, que um dia herdarão a tralha toda da minha casa e não acham ainda grande graça à arte sacra.
 
Para tentar identificar esta estampa, fotografei-a primeiro e depois fiz up-load desse ficheiro no google imagens e mediante um clic o motor de busca vasculhou num minuto toda a internet e descobri imediatamente, duas ou três páginas com imagens iguais, que me permitiram identificar a gravura.
Folha de rosto da obra Recueil de divers Desseins de Fontaines et de Frises maritimes Inventez et dessignez par Monsieur Le Brun premier Peintre du Roy. Foto bibliothèque numérique de l’Institut National d’Histoire de l’Art
 
Na bibliothèque numérique de l’INHA (Institut National d’Histoire de l’Art ) percebi que esta estampa fez parte de uma obra, o Recueil de divers Desseins de Fontaines et de Frises maritimes, impressa em Paris, por Jean Audran em data incerta, embora naquela biblioteca francesa situem a sua publicação entre 1727-1756. Como o próprio nome indica, esta obra trata-se de um compilação de desenhos de fontes desenhadas pelo célebre Charles Le Brun (1619-1690) e que se destinavam originalmente aos jardins do Palácio de Versalhes, em França, mas que foram rejeitadas por serem demasiado barrocas, numa época em que o gosto do rei Luís XIV já tinha evoluído numa direcção mais clássica e sóbria. Com efeito, estes projectos para fontes de Le Brun são de um barroco muito romano, mas confesso que me delicio a imagina-las construídas.
 
Uma das imagens da obra Recueil de divers Desseins de Fontaines: a fonte de Perseu e Andrómeda. Foto de https://bibliotheque-numerique.inha.fr/
Esta estampa corresponde a um desenho de Charles Le Brun feito na segunda metade do século XVII e encontrava-se na última folha do Recueil de divers Desseins de Fontaines, onde além desta imagem constavam mais outras duas. Numa época que desconheço, alguém, talvez um alfarrabista retalhou o Recueil e vendeu as estampas em separado para fazer mais dinheiro.
A minha estampa fazia parte de uma folha com mais duas imagens. Foto de https://bibliotheque-numerique.inha.fr/
A gravura apresenta no canto inferior esquerdo as iniciais C.L.B., correspondentes ao nome Charles Le Brun, Contudo a leitura das iniciais seguintes C.P.R. confundiram-me um bocado, pois não correspondiam às do nome do impressor Jean Audran, nem do outro gravador, que colaborou na obra, Louis de Châtillon (1639-1734). Enfim, fiz mais umas pesquisas e percebi que C.P.R. são as iniciais da expressão latina, Cum Privilegio Regis, o que quer dizer, com o privilégio real. Enfim, por vezes esqueço-me que na primeira metade do século XVIII o latim era ainda uma língua de comunicação entre as pessoas cultas da Europa.
C.L.B. e C.P.R. Estas inicias são o desdobramento de Charles Le Brun cum privilegio regis
 
Como referi no início, esta estampa é uma representação de figuras da mitologia da antiguidade clássica, uma cena com Nereidas, isto é, umas ninfas marítimas, que aparecem normalmente montadas em golfinhos e os Tritões, outras divindades do mar, com metade do corpo humano e a outra metade peixe. No centro há uma concha, onde um putti, segura em cada mão uma flor de Liz, o símbolo real francês, certamente uma alusão à grandeza de Luís XIV, ao qual as nereides e os tritões vem prestar homenagem
Uma nereida
Uma alusão à grandeza de Luís XIV, ao qual as nereides e os tritões vem prestar homenagem
O tritão

É curioso observar que Charles Le Brun usou uma convenção artística vinda da antiguidade clássica para representar os tritões e as nereidas, conforme se pode comprovar em mosaicos de vilas romanas, que sobreviveram até aos nossos dias. Realmente houve temas artísticos que permaneceram imutáveis durante séculos.
Mosaico romano com a representação de uma nereida
 
Mosaico romano com a representação de um tritão
Em suma, esta estampa foi impressa em Paris entre 1727-1756, fazia parte da obra Recueil de divers Desseins de Fontaines et de Frises maritimes, realizada a partir de desenhos de Charles Le Brun da segunda metade do século anterior e evoca todos os esplendores do Grand Siècle, expressão, que designa o reinado de Luís XIV. 

Ligações consultadas:

https://bibliotheque-numerique.inha.fr/collection/item/36638-recueil-de-divers-dessins-de-fontaines-et-de-frises-maritimes?offset=1

http://arts-graphiques.louvre.fr/detail/oeuvres/1/207833-Fontaine-de-la-victoire-dApollon-sur-le-serpent-Python

https://library.princeton.edu/versailles/item/872