domingo, 27 de fevereiro de 2022

Uma jóia, um documento íntimo e a pequena Natália



No meu anterior post, mostrei uma fotografia de conjunto, da minha trisavô e dos seus dois filhos, o José Maria e o João Maria. Este ultimo morreu cedo, mas o José Maria meu bisavô (1878-1965), cresceu, licenciou-se em direito em Coimbra, em 1902, e no ano a seguir, casou com a minha bisavó, Ana da Conceição de Morais Alves (1881-1974) de uma família burguesa rica de Chaves e como era vulgar na altura tiveram uma prole numerosa, 7 filhos. 

Os seis filhos do matrimónio de Ana da Conceição de Morais Alves e José Maria Ferreira Montalvão

Na família, sabia-se que uma das crianças tinha morrido pequenina, a penúltima, a Natália Maria de Lurdes. A obra que reconstituiu a genealogia familiar, Os Montalvões, de J. T. Montalvão Machado, publicada em 1948, refere que nasceu em 1917 e morreu em 1919. Imaginávamos que que tivesse sido uma perda grande, para a família, pois a criança, que nasceu a seguir, também se foi baptizada com o mesmo nome, Natália, como que para substituir a perda da pequenita.

Contudo, há um ou dois anos o meu pai descobriu um documento, que nos mostrou, bastante impressionante. Trata-se de uma espécie de relato, que a minha bisavô Aninhas escreveu sobre a doença e morte da filhinha, como se fossem as páginas de um diário intimo, destinadas a fixar para sempre num papel, aquilo que não queria esquecer de todo.
Página 1 do documento de 3 de Junho de 1918, escrito pela minha bisavô


A Natália nasceu no dia 5 de Dezembro de 1916 e era a criança mais nova, a companheira de dia e de noite, sobretudo quando os outros filhos estavam na escola, conforme escreveu a minha bisavó. Segundo o seu relato, no dia 12 de Abril de 1918, numa sexta-feira adoeceu de tarde e esteve toda a noite a gemer e eu toda aflita por a ver doente e cheia de febre. Na segunda-feira, mandei-lhe tirar um retrato que ainda não o tinha coitadinha, sentada na caminha da sua querida mãe, muito sossegadinha, lhe vesti o seu casaquinho de veludo e touquinha e o fotógrafo lho tirou e foi o que me valeu, porque não tinha retrato nenhum da minha querida filhinha. Mas criança piorou, chorando pela mãe e pelo pai para que eu lhe acudisse, mas não lhe pode valer. Assim, me deixou a minha sempre adorada filhinha do meu coração, às cinco e meia da tarde de quarta-feira dia 17 [de Abril] para sempre na mais ardente dor e tristeza (…) No dia 18, às seis da tarde, levaram-me a minha querida filhinha par sempre

Página 2 do documento de 3 de Junho de 1918, escrito pela minha bisavô

A minha bisavó, remata esta narrativa da morte da sua filha, da seguinte forma: Só hoje tive coragem para escrever isto, dia 3 de Junho de 1918.

Página 3 do documento de 3 de Junho de 1918, escrito pela minha bisavô

Quando o meu pai, nos mostrou a transcrição deste documento, interrogámo-nos, acerca do paradeiro da fotografia da pequena Natália, mas o mais natural era estar perdida ou esquecida, algures na casa dos cerca de 100 ou mais descentes dos meus bisavós. Contudo, depois da morte do meu pai, aquando na partilha dos bens, minha irmã identificou o retrato, primorosamente encaixilhado num pequeno pendente em ouro, com vidro biselado, obviamente uma jóia de grande estima, para se trazer pendurada num fio, bem junto ao coração. E com efeito, a descrição que minha bisavó faz do único retrato que mandou tirar à filha, com o casaquinho de veludo e touquinha coincide com esta imagem e acreditamos que seja a fotografia da Natália (5.12.1916-17.4.1918)

O pequeno medalhão em ouro. O retrato encontra-se nas duas faces

Este relato intimo da minha bisavô Aninhas acerca da morte da pequena Natália é um testemunho tocante de uma época em que a mortalidade infantil era elevada, tendo aumentando ainda mais nos anos da guerra (1914-1918), naturalmente maior entre os pobres, mas que também se fazia sentir entre os mais abastados, como a família Montalvão. Repara-se que neste relato, não se refere a visita de um médico ou nenhum medicamento que a criança tivesse tomado e muito menos a ida a um hospital. Na época, não existia nenhum serviço nacional de saúde e muito menos antibióticos. Também neste período a fotografia ainda era cara e reservada para grandes ocasiões e é muito tocante a necessidade, que a minha bisavó sentiu de chamar o fotógrafo, para tirar o primeiro e último retrato da pequena Natália, para ficar com uma imagem dela, mandada encaixilhar num medalhão, que certamente trouxe junto ao seu coração durante muitos anos.

A pequena Natália (5.12.1916-17.4.1918)


sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Um retrato de família num dia especial do último quartel do século XIX.

Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão (1856-1902)

Já aqui referi que trouxe de casa do meu pai, o arquivo familiar com centenas de cartas do início do século XX, do século XIX e ainda alguns documentos do século XVIII e até XVII. Mas entre as coisas que estavam em casa do meu pai, foram aparecendo mais documentos soltos, entre as quais esta fotografia, que minha irmã encontrou e que é um retrato tocante da minha trisavó, Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão (1856-1902) e dos seus dois filhos, o José Maria e o João Maria.

Esta fotografia foi tirada na década de 80 do século XIX e não é um retrato comum. Nesta época, a grande maioria dos retratos eram feitos em estúdio e os fotógrafos montavam uma encenação à volta dos retratados, que replicava as tradições da pintura dos séculos anteriores. Havia muitas vezes uma grande cortina drapeada, que criava um efeito de perspectiva e ao mesmo tempo teatral, os personagens estavam de pé, com a mão apoiada num plinto, numa mesa, ou num cadeirão e qualquer um destes elementos sempre num estilo pomposo. As pessoas vestiam as suas melhores roupas e as damas seguravam um leque. Estas fotografias apresentavam invariavelmente um pano de cenário ao fundo, sugerindo o interior apainelado de um palácio ou um outro qualquer ambiente requintado. Mesmo quando estes fotógrafos se deslocavam às terras do interior, no dia das festas do santo padroeiro, fotografavam as mulheres e os homens como este cenário palaciano por detrás, ainda que o chão fosse de terra batida. Tenho uma fotografia dos meus bisavós maternos tirada por em Vinhais, provavelmente na feira, volta de 1898-1900, com essas características

Nesta fotografia não há um cenário a sugerir um interior luxuoso. O chão é de terra batida e o fundo é um muro em granito. Tenho até quase a certeza que foi tirada no pátio grande do solar de Outeiro Seco, ou num outro pátio a nascente da mesma, que a família usava muito nos dias Verão. Contudo apesar deste cenário rural, todos eles vestiram melhores roupas. 

Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão (1856-1902)

A Maria do Espírito Santo usou um vestido complicado, que parece ser seda e colocou suas as jóias. Claro, já não tinha frescura da juventude dos retratos anteriores, que eu conhecia, da década de 1870, pois aqui já contava com cerca de 30 anos e estava mais pesada, mas os olhos claros, com o seu não sei o quê de melancólico, continuavam lindos. 


O meu bisavô, José Maria, ou o Jé-Jé

A minha trisavó esmerou-se nas toilettes das crianças, o meu bisavô, o José Maria, o rapazinho mais velho foi vestido com uma jaqueta, uma camisa de jabot, uma faixa na cintura e umas botas, como se fosse um pequeno fidalgo. 

O pequeno João Maria

O menino, o João Maria trazia um vestido de cor clara e uns sapatinhos verdadeiramente deliciosos apertados com uma tira e decorados com um laçarote. Obviamente que este dia da fotografia foi especial, talvez o da festa da Senhora da Azinheira ou de São Miguel, em Outeiro Seco, em que um fotografo veio de Vila Real ou de Chaves para fazer negócio e possivelmente foi até pago a dobrar, para de deslocar ao solar, para fazer um instantâneo da família fidalga da terra. Em todo o caso, é estranho, o fotógrafo não ter instalado atrás o pano do cenário palaciano. Talvez a Maria do Espírito Santo tenha preferido este cenário mais rural da casa, que tanto gostava e onde pediu para ser sepultada anos mais tarde, ou talvez, num momento posterior, o fotógrafo recortasse as figuras e as colasse e num cenário reproduzindo uma boiserie francesa e neste caso esta fotografia seria uma apenas prova.

O que talvez seja tocante nesta fotografia é que esta família não era exactamente como as outras. Ambos os meninos eram filhos ilegítimos da relação que a minha trisavó manteve com o padre José Rodrigues Liberal Sampaio. O José Maria nasceu em 1878, tendo sigo registado com apenas o nome da mãe e tendo por padrinhos o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio e Nossa Senhora da Azinheira. Nas muitas cartas que o meu trisavô escreve à Maria do Espírito Santo trata-a carinhosamente por comadrinha, embora nunca use o tu. O filho, José Maria dirige-se sempre ao pai como padrinho na correspondência trocada. No fundo, foram artifícios, que esta família arranjou para contornar a sua situação social pouco conveniente. Quanto ao pequenino o João Maria, nasceu a 11 de Novembro de 1884 e foi baptizado como filho natural, tendo por padrinhos, o irmão e Nossa Senhora da Graça. Viveu pouco e terá morrido algum tempo depois desta fotografia, no dia 25 de Setembro de 1887, com a idade de três anos. Talvez nesta imagem tivesse dois anos e a fotografia poderá ser datada de 1886.

Carta de 19 de Maio de 1890. O Padre José Rodrigues Liberal Sampaio tratava a mãe dos seus filhos por comadrinha


Aliás, a minha trisavó ficará bastante só em Outeiro Seco depois dessa altura. No Outono de 1886, o filho mais filho, o Je-Je, como é referido nas cartas partirá para Coimbra com pai, onde fará toda a escolaridade, até se formar em Direito, em 1902, visitando a mãe apenas nas férias e nem em todas, pois por vezes o calendário escolar prolongava-se pela Páscoa adentro e o caminho entre aquela cidade universitária e Chaves era longo e demorado. Mas escreve-lhe frequentemente, pedindo à mãe para lhe cozinhar os pratos preferidos quando regressar, ou mesmo para dormir na cama dela. Numa dessas cartas, envia-lhe até uma florinha, um amor-perfeito, que ainda hoje se conserva dentro do envelope.

Carta de 19 de Maio de 1890. Repare-se a flor que ainda hoje se conserva.

A leitura das cartas trocadas entre esta família pouco convencional revela um carinho e um respeito grandes, que talvez a distância ajudasse a consolidar, já que por vezes o convívio diário entre seres humanos provoca atritos e amarguras. Esta fotografia da Maria do Espírito Santo e dos seus filhos, o Jé-Jé e o Joãozinho é a imagem, que eu com a minha imaginação procurava na leitura das cartas trocadas entre esta família.

O retrato não apresenta qualquer marca de ou identificação de um fotógrafo ou estúdio fotográfico


sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Uma taça em opalina francesa



Recentemente comprei por muito bom preço esta pequena taça ou recipiente em opalina, que desde logo me pareceu uma coisa francesa, provavelmente da segunda metade do século XIX, de uma época em que a França dominava o mercado deste tipo de vidro.

Marca pintada a dourado, talvez a letra o ou o número zero


As opalinas mais antigas muito raramente eram marcadas, mas esta apresenta um pequena marca pintada a dourado, talvez a letra o ou o número zero. Achei que com esta marca poderia identificar o fabricante e lancei-me numa pesquisa no google em francês e inglês acerca de marcas de opalina, mas foi em vão. Consultei também a obra L'opaline française au XIXe siècle / Yolande Amic. - Paris : Librairie Gründ, 1952 e e confirmei, que as opalinas raríssimas vezes eram marcadas e que este o ou zero não corresponde a nenhum fabricante. Será provavelmente a marca com que um pintor de uma fábrica ou oficina de decoração usou para marcar o seu trabalho.



Nestas minhas buscas encontrei muitas peças em opalina azul, com decorações esmaltadas a ouro com algumas semelhanças com a minha tacinha, que me levou a confirmar a minha intuição inicial, de que se trata de uma produção francesa da segunda metade do século XX, talvez já das últimas duas décadas.

Porém, à medida que andava enredado nestas pesquisas por sites de venda on line e de antiquários franceses e americanos, foi-se levantando cada vez mais a mesma dúvida, qual foi a utilidade inicial desta peça. É demasiado pequena para jarra de flores, não é decididamente um frasco, um jarro ou uma garrafa e falta-lhe qualquer coisa de supérfluo ou arrebicado para ser um mero bibelot. Decidi concentrar mais as minhas investigações na função utilitária desta tacinha e acabei por perceber, que em tempos fez parte de um conjunto ou serviço.

Muitos de nós ainda de nos recordamos de ver nos quartos de dormir das casas antigas, uma garrafinha e um copo por cima, por vezes com um pequeno prato, conjunto, que se colocava em cima da mesinha de cabeceira. As casas era muito grandes e e se alguém sentia sede durante a noite escusava de percorrer um grande corredor para chegar à até cozinha e beber um copo de água. Juntamente com o bacio, o jarro e taça para lavar o rosto e as mãos eram acessórios típicos de qualquer quarto de uma casa grande do passado. Esses conjuntos de garrafa, copo e pratinho ainda aparecem à venda nas feiras de velharias, mas são normalmente em vidro simples.

Como os franceses sempre foram uma gente requintada, na segunda metade do século XIX produziam estes conjuntos, mas mais completos, que aqueles que estamos habituados a ver nas feiras de velharias. Eram compostos por um tabuleiro, dois copos, duas garrafas, uma para água simples e outra para água aromatizada a flor de laranjeira e ainda um açucareiro. Encontrei na internet vários desses conjuntos em opalina, a que os franceses chamam service de nuit e percebi, que a esta minha tacinha foi em tempos um açucareiro, de um desses serviços. Originalmente teria uma tampa, que com o tempo se perdeu.


Conjunto em opalina. Jarro e bacia de lavatório e ainda o service de nuit

Em suma, esta pequena taça, é um açucareiro, que fez parte de um antigo service de nuit em opalina, produzido em França provavelmente nos fins do século XIX. Falta-lhe a tampa e é uma peca desirmanada, mas ainda assim cheia de charme.

Um açucareiro em opalina