sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Um retrato de família num dia especial do último quartel do século XIX.

Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão (1856-1902)

Já aqui referi que trouxe de casa do meu pai, o arquivo familiar com centenas de cartas do início do século XX, do século XIX e ainda alguns documentos do século XVIII e até XVII. Mas entre as coisas que estavam em casa do meu pai, foram aparecendo mais documentos soltos, entre as quais esta fotografia, que minha irmã encontrou e que é um retrato tocante da minha trisavó, Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão (1856-1902) e dos seus dois filhos, o José Maria e o João Maria.

Esta fotografia foi tirada na década de 80 do século XIX e não é um retrato comum. Nesta época, a grande maioria dos retratos eram feitos em estúdio e os fotógrafos montavam uma encenação à volta dos retratados, que replicava as tradições da pintura dos séculos anteriores. Havia muitas vezes uma grande cortina drapeada, que criava um efeito de perspectiva e ao mesmo tempo teatral, os personagens estavam de pé, com a mão apoiada num plinto, numa mesa, ou num cadeirão e qualquer um destes elementos sempre num estilo pomposo. As pessoas vestiam as suas melhores roupas e as damas seguravam um leque. Estas fotografias apresentavam invariavelmente um pano de cenário ao fundo, sugerindo o interior apainelado de um palácio ou um outro qualquer ambiente requintado. Mesmo quando estes fotógrafos se deslocavam às terras do interior, no dia das festas do santo padroeiro, fotografavam as mulheres e os homens como este cenário palaciano por detrás, ainda que o chão fosse de terra batida. Tenho uma fotografia dos meus bisavós maternos tirada por em Vinhais, provavelmente na feira, volta de 1898-1900, com essas características

Nesta fotografia não há um cenário a sugerir um interior luxuoso. O chão é de terra batida e o fundo é um muro em granito. Tenho até quase a certeza que foi tirada no pátio grande do solar de Outeiro Seco, ou num outro pátio a nascente da mesma, que a família usava muito nos dias Verão. Contudo apesar deste cenário rural, todos eles vestiram melhores roupas. 

Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão (1856-1902)

A Maria do Espírito Santo usou um vestido complicado, que parece ser seda e colocou suas as jóias. Claro, já não tinha frescura da juventude dos retratos anteriores, que eu conhecia, da década de 1870, pois aqui já contava com cerca de 30 anos e estava mais pesada, mas os olhos claros, com o seu não sei o quê de melancólico, continuavam lindos. 


O meu bisavô, José Maria, ou o Jé-Jé

A minha trisavó esmerou-se nas toilettes das crianças, o meu bisavô, o José Maria, o rapazinho mais velho foi vestido com uma jaqueta, uma camisa de jabot, uma faixa na cintura e umas botas, como se fosse um pequeno fidalgo. 

O pequeno João Maria

O menino, o João Maria trazia um vestido de cor clara e uns sapatinhos verdadeiramente deliciosos apertados com uma tira e decorados com um laçarote. Obviamente que este dia da fotografia foi especial, talvez o da festa da Senhora da Azinheira ou de São Miguel, em Outeiro Seco, em que um fotografo veio de Vila Real ou de Chaves para fazer negócio e possivelmente foi até pago a dobrar, para de deslocar ao solar, para fazer um instantâneo da família fidalga da terra. Em todo o caso, é estranho, o fotógrafo não ter instalado atrás o pano do cenário palaciano. Talvez a Maria do Espírito Santo tenha preferido este cenário mais rural da casa, que tanto gostava e onde pediu para ser sepultada anos mais tarde, ou talvez, num momento posterior, o fotógrafo recortasse as figuras e as colasse e num cenário reproduzindo uma boiserie francesa e neste caso esta fotografia seria uma apenas prova.

O que talvez seja tocante nesta fotografia é que esta família não era exactamente como as outras. Ambos os meninos eram filhos ilegítimos da relação que a minha trisavó manteve com o padre José Rodrigues Liberal Sampaio. O José Maria nasceu em 1878, tendo sigo registado com apenas o nome da mãe e tendo por padrinhos o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio e Nossa Senhora da Azinheira. Nas muitas cartas que o meu trisavô escreve à Maria do Espírito Santo trata-a carinhosamente por comadrinha, embora nunca use o tu. O filho, José Maria dirige-se sempre ao pai como padrinho na correspondência trocada. No fundo, foram artifícios, que esta família arranjou para contornar a sua situação social pouco conveniente. Quanto ao pequenino o João Maria, nasceu a 11 de Novembro de 1884 e foi baptizado como filho natural, tendo por padrinhos, o irmão e Nossa Senhora da Graça. Viveu pouco e terá morrido algum tempo depois desta fotografia, no dia 25 de Setembro de 1887, com a idade de três anos. Talvez nesta imagem tivesse dois anos e a fotografia poderá ser datada de 1886.

Carta de 19 de Maio de 1890. O Padre José Rodrigues Liberal Sampaio tratava a mãe dos seus filhos por comadrinha


Aliás, a minha trisavó ficará bastante só em Outeiro Seco depois dessa altura. No Outono de 1886, o filho mais filho, o Je-Je, como é referido nas cartas partirá para Coimbra com pai, onde fará toda a escolaridade, até se formar em Direito, em 1902, visitando a mãe apenas nas férias e nem em todas, pois por vezes o calendário escolar prolongava-se pela Páscoa adentro e o caminho entre aquela cidade universitária e Chaves era longo e demorado. Mas escreve-lhe frequentemente, pedindo à mãe para lhe cozinhar os pratos preferidos quando regressar, ou mesmo para dormir na cama dela. Numa dessas cartas, envia-lhe até uma florinha, um amor-perfeito, que ainda hoje se conserva dentro do envelope.

Carta de 19 de Maio de 1890. Repare-se a flor que ainda hoje se conserva.

A leitura das cartas trocadas entre esta família pouco convencional revela um carinho e um respeito grandes, que talvez a distância ajudasse a consolidar, já que por vezes o convívio diário entre seres humanos provoca atritos e amarguras. Esta fotografia da Maria do Espírito Santo e dos seus filhos, o Jé-Jé e o Joãozinho é a imagem, que eu com a minha imaginação procurava na leitura das cartas trocadas entre esta família.

O retrato não apresenta qualquer marca de ou identificação de um fotógrafo ou estúdio fotográfico


8 comentários:

  1. Adorei, lindo texto. A fotografia está incrivel, sabendo nós que o pequeno João Maria, morre pouco depois. Imagino o desgosto da mãe do pequenino.

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    1. É uma imagem muito tocante. Também é verdade, que fotografias antigas de crianças me emocionam sempre um pouco ao pensar, que aqueles meninos e meninas, deixaram à infância há muito mais de um século, passaram pela juventude, maturidade e velhice e estão há tanto tempo mortos, que já quase não sabemos nada deles. Estes meus escritos são uma forma de manter essa memória viva

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  2. Bonita fotografia, privilégio de famílias com posses que permitiram perpetuar a imagem para as gerações vindouras. Seria interessante compilar essa troca de correspondência, não? Um abraço

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    1. Caro J. Santos

      Com efeito, a fotografia nesta década de 1880 ainda só esta ao alcance da aristocracia ou da boa burguesia, embora esteja a caminho rápido de se democratizar.

      Estas cartas são uma fonte interessantíssima para a história das mentalidades, dos hábitos sociais e seria interessante publicar umas quantas delas. Há unas tempos li a "Correspondência (1834-1890) - D. Maria Thereza de Sousa Botelho, Condessa da Ponte, e suas filhas" e fiquei fascinado. Mas essas cartas, reportam-se à melhor nobreza da capital. Neste caso da família Montalvão o interesse seria conhecer como se vivia na província e Portugal nessa época era um país rural.

      Mas antes de tudo, tenho que inventariar todo este espólio, trabalho que me vai ocupar alguns anos.

      Um grande abraço e obrigado

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    2. Tenho pensado muitas vezes no quão interessante seria tratar este tema das mentalidades e hábitos sociais de meios mais remotos e pequenos, porque, em boa verdade, o que existe diz respeito às mais respeitáveis e melhores famílias, como diz da capital. Bom trabalho. Fico a aguardar!

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    3. Tem razão. O que conheço publicado diz respeito a famílias da capital e talvez um espólio como este, de uma família da província, seja até mais representativo de um País, que era eminentemente rural.

      Embora, ainda não tenha abordado aqui o assunto, muito do que o Padre Liberal Sampaio escreve à minha trisavô são conselhos sobre o governo de uma casa rural. Com efeito, esta minha antepassada terá tido uma educação típica das mulheres de condição elevada, aprendeu a ler e a escrever, a vestir-se com distinção, a bordar, a falar algum francês e quando se viu sozinha à frente de uma grande casa rural, deve ter experimentado grandes aflições e então o meu trisavô escrevia-lhe recomendando, que adubasse as vinhas, vende-se o pão, antes de ser comido pelos ratos ou que estava na altura de comprar uma burrinha nova e muitos outros conselhos úteis sobre agricultura.

      Um abraço

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  3. Tens razão, esta correspondência é apaixonante e muito interessante para classificar e caraterizar uma época.
    Eu, um apaixonado pela epistolografia, fico sempre encantado com este tema.
    Neste caso trata-se da caraterização de uma ambiência especial, de fidalguia rural, à mistura com a que lhe chega de Coimbra.
    É uma nova vertente de uma outra, que já conhecia, mas que estava relacionada com meios mais urbanos e próximos do poder monárquico, como é o caso da correspondência da 3ª condessa de Rio-Maior para os filhos, daquela a que já fizeste alusão no teu texto, da Condessa da Ponte, ou ainda, num contexto mais ligado à religião, a da de Teresa de Saldanha, filha da Condessa de Rio-Maior.
    E, ainda nesta família dos Rio-Maior, as Memórias da Marquesa, Maria de Saint-Léger, transversais ao período do final de monarquia, prolongando-se pela 1ª República, também merece destaque para caraterizar esta época. A sua leitura não é tão apaixonante como a correspondência, mas é importante para perceber o ponto de vista de uma aristocrata sobre um período muito complicado e conturbado em Portugal.
    São uma quantidade de obras que me encantam.

    Só que, no caso da tua família, a correspondência não se encontra tratada, pelo que é muito importante o teu trabalho, pois é complementar, dando uma visão da sociedade da época, segundo um contexto diferente, o da fidalguia rural.
    Daí a importância deste teu esforço de compilação, catalogação e caraterização.
    Ainda bem que estás a fazer este trabalho, que, julgo, não deve ser nada fácil, dada a distância no tempo e a dificuldade em encontrar mais documentação referente à época e ao local onde esta família viveu dada a perda da biblioteca de família, que limitou a quantidade de documentação disponível.
    Manel

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    1. Manel

      Estas cartas trazem-nos a voz, os pensamentos, a intimidade e as preocupações quotidianas destas pessoas que viveram no século XIX. São fontes primárias, puras e verdadeiras. É muito diferente do que consultar manuais de genealogia ou os secos documentos oficiais. Também são muito mais completas e rigorosas que as histórias, que sobreviveram na tradição familiar. Embora, no final, haja que cruzar estes três tipos de fontes. É um trabalho enorme, que me assusta um pouco, pois o tempo é pouco e pior do que isso, a disponibilidade mental que tenho para reservar a este trabalho por vezes não é grande.

      Um abraço e obrigado pelo teu encorajamento

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