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O testamento, que conserva o lacre com o qual foi fechado |
Até há pouco tempo acreditava que quase toda a documentação histórica do antigo solar da família Montalvão, tinha sido vendida em 1986 juntamente com a livraria da casa. Mais tarde, através das conversas com o meu pai percebi que afinal se tinham conservado muitas cartas do tempo dos meus trisavôs. Depois da morte do pai, fiquei com essa documentação, que vou tratando paulatinamente e aos poucos tenho encontrado documentos mais antigos, relativamente à administração da casa ou notariais. Afinal e felizmente, nem tudo se perdeu.
Um dos documentos interessantes, que descobri foi o testamento do meu quarto avô, João Manuel Ferreira Montalvão (2-5-1806/ 23-02-1861), escrito a 8 de Novembro de 1860. Sei pouco deste antepassado e nas notícias, que vão aparecendo dele há uma certa confusão com outro João Manuel Ferreira Montalvão Ferreira Montalvão (1767-1844), que era seu tio, portanto irmão do pai. Um miguelista convicto, esse tio teve uma actividade política intensa, chegou a presidir à Câmara Municipal de Chaves em 1828 e D. Miguel concedeu-lhe até o uso da medalha, da sua real efígie e ainda foi feito cavaleiro da Ordem de Cristo em 1824. O meu quarto avô, também João Manuel Ferreira Montalvão parece ter tido uma existência mais tranquila, obviamente dentro do que seria possível num período da nossa história, tão complicado, marcado pela guerra entre Liberais e absolutistas. Ainda assim participou na administração camaria de Chaves em 1850 e 1851 num período já mais estável do país. Os documentos que encontrei no espólio com o seu nome são sempre relativos a compra de propriedades ou de administração da casa agrícola.
Nasceu em Outeiro Seco e casou dentro do seu meio social, a fidalguia rural, em 23 de Janeiro de 1837, com Maria Emília de Morais Sarmento (14-08-1818/ 14-4-1874), de uma aldeia vizinha, Santo Estevão.
Deste matrimónio nasceram 5 filhos, Miguel José (1838-1890), que foi advogado, António Vicente (1840-1919), um militar com uma carreira brilhante, Ana (1842), Henriqueta (1847-1873), outra Ana (1851) e ainda minha trisavó Maria do Espírito Santo (1856-1902). As duas Anas morreram muito cedo, ainda crianças. Os três primeiros filhos nasceram em Santo Estevão, o que me leva a crer que este casal viveu pelo menos até 1842 no solar dos Morais Sarmento nessa aldeia.
O solar dos Morais Sarmento em Santo Estevão |
Terão mudado de residência para Outeiro Seco ainda antes de 1847, ano em que nasce já nessa aldeia a Henriqueta. Não sei exactamente em que casa viveriam naquela terra, já que os registos paroquiais referem-nos simplesmente como residentes em Outeiro Seco. Não me parece que viveriam no solar dito dos Montalvões, pois esse tinha calhado ao seu outro tio, José António Ferreira Montalvão, que casou com uma Campilho. Aliás essa casa permanecerá formalmente na posse dos Campilho Montalvão até 1902, ano em se iniciou o processo de compra pelo meu lado familiar.
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Em 1860 o Solar dito dos Montalvões estava na posse do ramo Campilho Montalvão |
Creio que viveriam quase em frente à casa acima referida, num tipo de solar muito rústico, mas com tectos de masseira e eu ainda conheci em pé.
O meu quarto avô, o João Manuel Ferreira Montalvão teve ainda um filho natural, nascido na década da 30 do século XIX, de uma tal Brígida Silva, o Francisco Luís. Segundo Montalvão Machado este filho espúrio foi criado e educado em casa do meu quarto avô, mesmo após o casamento, com D. Maria Emília Morais Sarmento. O meu antepassado financiou certamente a sua educação num seminário e este fez-se padre e assinou sempre os seus assentos paroquiais, como Francisco Luís Ferreira Montalvão, até morrer em 12 de Julho de 1908, em Fornelos, Fafe, onde era abade. Como já aqui referi muitas vezes, no século XIX a bastardia fazia parte da organização familiar e a as crianças nascidas fora do casamento eram educadas com o acompanhamento dos pais e usavam até os seus apelidos sem serem perfilhados.
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Apesar de bastardo, o Padre Francisco Luís assinava os seus registos com os dois apelidos da família paterna, Ferreira Montalvão. Livro de assentos de óbitos, 1907 da paróquia Fornelos, Fafe, |
Deste meu tetravô, sei também o que Montalvão Machado refere sobre ele na genealogia da família teve pelo menos um grande predicado, naqueles tempos de instrução rudimentar: fez educar todos os seus filhos, fazendo deles um sacerdote, um advogado e um militar muito distinto. Mesmo as filhas tiveram alguma educação e sabiam ler e escrever. Tenho umas quantas cartas dirigidas à Henriqueta e um número significativo de cartas escritas pela Maria do Espírito Santo. Esta minha trisavó tinha uma bonita caligrafia, mas redigia mal e não fazia uma única vírgula. Para a época, em que a taxa de analfabetismo feminino andaria pelos 90 por esse cento ou mais já era muito bom.
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A assinatura do que quarto avô, João Manuel Ferreira Montalvão (2-5-1806/ 23-02-1861) |
Mas em 8 Novembro de 1860, com 54 anos, o João Manuel Ferreira Montalvão estava de cama muito doente e sabendo que a morte é certa e incerta a hora resolveu fazer o seu testamento, arrumando os seus assuntos terrenos antes de partir. Desejava que o funeral e bênção de alma fossem feitos segundo a vontade de sua mulher Dona Maria Emília de Morais Sarmento e nomeia-a sua testamenteira. Institui por seus únicos e universais herdeiros a todos os seus filhos, Miguel, António, Henriqueta e Maria, mas a sua preocupação é fazer um importante legado às duas filhas ainda meninas, a Henriqueta, que tinha 13 anos e a Maria do Espírito Santo com 4 anos apenas, composto por terras lavráveis, vinhas, olivais, hortas, pomares e soutos. Este legado seria satisfeito pelas forças de um terço sem diminuir a da minha mulher da parte que lhe corresponde nas propriedades legadas. Presumo que os restantes dois terços seriam para os irmãos, além que estaria só a legar a sua própria parte da metade dos bens do casal.
Este testamento foi feito numa época anterior ao primeiro código civil português em 1867 e antes da extinção dos morgadios em 1863 e as leis do direito sucessório eram diferentes das da actualidade. Temos uma ideia feita sobre esses tempos, em que se privilegiaria um único filho varão, evitando o parcelamento da propriedade. Mas o meu quarto avô não era morgado e nesta época as mulheres eram também contempladas ou até favorecidas nos testamentos, conforme Margarida Durães, explica na obra Estratégias de sobrevivência económica nas famílias camponesas minhotas: os padrões hereditários (sécs. XVIII – XIX). Mas no Minho, a densidade populacional e era muito maior e o número de terras disponível menor e filhas minhotas eram sobretudo favorecidas com joias em ouro ou dinheiro.
Neste testamento não se mencionaram pratas, joias, panos ricos ou móveis e é bem certo, que a família os tinha. À beira da morte, o meu quarto avô não perdeu tempo com isso e quis foi prover as filhas com a grande riqueza destes fidalgos rurais, terras. Estas garantiriam o sustento das filhas caso não casassem, mas também as tornaria noivas mais desejadas por outros jovens fidalgos do mesmo meio. No fundo este legado era um dote.
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A minha trisavô, Maria do Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão foi uma das beneficiadas neste testamento. |
A terra é a principal era a fonte de riqueza e a principal preocupação da vida destes meus antepassados. Já mais tarde, durante o último quartel do século XIX, a maioria das cartas dirigidas por Liberal Sampaio à minha trisavó, Maria do Espírito Santo, uma das beneficiadas deste testamento versam a administração das terras, tais com a venda do cereal, a poda das vinhas, a construção de um poço, uma égua que está prenha ou rendas a serem recolhidas. Mais ainda, preocupavam-se em acrescentar o seu património com mais terra. Entre 1911 e 1912, no tempo das incursões de Paiva Couceiro, durante a caça aos padres, quando o meu trisavô, José Rodrigues Liberal Sampaio estava fugido em Espanha, o filho escrevia-lhe dando conta das diligências para adquirir um lameiro, uma cortinha ou um pinhal de acordo com as recomendações do pai.
Nos anos 30 do século XX, o meu pai recordava-se ouvir o meu bisavô, que era o homem que pagava mais contribuição predial de todo o distrito de Vila Real. Hoje todas essas terras, que faziam a grande riqueza da família foram partidas e repartidas por muitos herdeiros, nenhum dos quais se dedica à agricultura e pouco ou valem.
Mas este testamento do meu quarto avô datado de uns 3 meses antes de morrer é um testemunho muito eloquente desses tempos em que a terra era uma fonte de riqueza e por isso, deixo aqui no final a sua transcrição.
Eu João Ferreira Montalvão casado residente e natural do lugar Outeiro Seco do julgado e comarca de Chaves, achando-me doente de cama, mas em meu perfeito juízo claro entendimento e plena liberdade , receando a morte que é certa e incerta a hora resolvi fazer como faço meu testamento e disposição de última vontade da sua maneira que se segue. Tanto que falecer quero que meu funeral e bênção de alma seja feito segundo a vontade de minha mulher Dona Maria Emília de Morais Sarmento, pois que dele tudo confio e por isso que a nomeio para minha testamenteira. Instituo por meus únicos e universais herdeiros a todos os meus filhos que são Miguel, António, Henriqueta, Maria. Deixo à minha filha Dona Henriqueta a propriedade do sítio do Sabugueiro tapada composta de terra lavradia, castanheiros, e oliveiras, bem assim de vinha de poente com sua terra lavradia contiguo à dita propriedade do Sabugueiro. Deixo a minha filha Maria a propriedade também chamada do Sabugueiro tapada e consta de terra lavradia e oliveiras, que parte com José Joaquim Durão e com o caminho de Vilela Seca e mais uma terra lavradia pela parte de fora da dita cortinha do Sabugueiro, com uma oliveira que parte com o dito José Joaquim Durão e finalmente lhe deixo mais a horta chamada das olgas, tapada com suas oliveiras e mais árvores de fruto. Declaro que este meu legado que deixo às ditas minhas duas filhas lhe será satisfeito pelas forças de um terço sem diminuir a da minha mulher da parte que lhe corresponde nas propriedades legadas (visto o casal se achar em comum) no resto dos bens da minha meação (1). Assim dou por findo o meu testamento e disposição de última vontade, a qual quero se cumpra e guarde como nela se contem e a mandei escrever a José Benedito Gonçalves da vila de Chaves que depois ser escrita ma leu conforme a havia ditado e por isso a assino neste lugar de Outeiro Seco aos oito dias de Novembro de 1860
(1)-Quando se fala em partilha de bens, a meação corresponde à metade do património comum de um casal, a que cada cônjuge tem direito
Bibliografia e ligações consultadas:
Estratégias de sobrevivência económica nas famílias camponesas minhotas: os padrões hereditários (sécs. XVIII – XIX)” / Margarida Durães
In
Boletim de História Demográfica". XII:35 (Jan.2005) 1-24
https://members.tripod.com/historia_demografica/bhds/bhd35/margarida.pdf
Os Montalvões / J. T. Montalvão Machado. - Famalicão: Tip. Minerva, 1948
Famílias transmontanas : descendência de Francisco de Moraes, Palmeirim : ligações familiares e outras famílias de Trás-os-Montes / Francisco Xavier de Moraes Sarmento- . Ponte de Lima : Carvalhos de Basto, 2001.
História moderna e contemporânea da Vila de Chaves através das actas e jornais da época / Júlio Montalvão Machado. – Chaves: Grupo Cultural Aquae Flaviae, 2012
Um agradecimento ao Joaquim Caetano pela ajuda na transcrição de uma ou outra palavra no testamento
Muito interessante Luís. Devias pôr em livro. Um abraço, Nuno
ResponderEliminarNuno Muito obrigado pelo comentário tão simpático e encorajador. Mas ainda estou a tratar do espólio e falta-me ainda muita coisa. No fundo tenho partes de um extenso romance. Já encontrei alguns capítulos do meio e do do fim, amanhã, encontrarei uns quantos do início e depois de amanhã algumas páginas soltas de outros capítulos. Talvez daqui a uns dois ou três anos, consiga tratar quase tudo, reler e conseguir montar uma história.
EliminarUm abraço
Primo adorei ler estes factos da sua família Montalvão.
ResponderEliminarO meu pai falou-me de alguém com apelido Montalvão relacionado com a caixa Agrícola em Vinhais , deve ser seu familiar.
Há dias também li no seu blog sobre o solar dos Montalvão em Outeiro Seco, que pena a câmara Municipal de chaves deixar desaparecer tão belo património.
Bjinhos
Prima
EliminarMuito obrigado pelo seu comentário. Como já lhe referi, estas famílias casavam sempre na mesma área geográfica, na aldeia vizinha, na sede de concelho ou nos concelhos vizinhos e em Vinhais existiam e devem existir uns quantos descendentes da família Montalvão.
A título de exemplo, um dos mencionados neste testamento, António Vicente Ferreira Montalvão teve uma filha, Elina, que casou com Dr. Leopoldo de Montalvão de Lima Barreto Pereira Coelho, médico e proprietário do chamado Solar dos Crespos em Vinhais e ainda seu primo.
Um abraço
Apesar do assunto por vezes se revestir de alguma dificuldade em entendê-lo, pois os contextos sociais são distintos, o texto está claro e acabaste por dar sentido a todo este imbróglio jurídico.
ResponderEliminarÉ sempre interessante perceber os interesses primordiais nas grandes famílias, no que toca a património e seu legado. Desconfio que, nos dias de hoje, e apesar de não conhecer bem o assunto, pois a minha família não tem estas caraterísticas, as prioridades, e preocupações associadas, serão diferentes.
Gostei muito do texto
Manel
Manel
EliminarDepois da leitura deste testamento, sentimos que estamos diante de um quadro jurídico e mental, bem diferente do nosso, em que a terra é um bem precioso e a agricultura o meio de vida.
Também é curioso, o meu quarto avô não referir no seu testamento os legados pios, isto é o número de missas a rezar, as esmolas aos pobres, que em documentos da mesma natureza ocupam um espaço significativo.
Creio que confiaria na sua mulher para se encarregar das missas todas, do pagamento delas aos padres e dos restantes assuntos piedosos e foi direito ao assunto central, o legado das filhas.
É no fundo um homem que sente que vai morrer e quer deixar os seus assuntos terrenos bem arrumados e essa preocupação existiu e existira sempre numa parte da humanidade. A outra metade deixa imbróglios e chatices aos herdeiros.
Em todo o caso estou muito feliz por finalmente começarem a aparecer estes documentos mais antigos sobre a casa e a família.
Um abraço
Muito interessante. Bom dia!
ResponderEliminarMargarida, muito obrigado pelo seu comentário e um abraço!!!
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