sábado, 29 de novembro de 2014

Uma estampa representando jóias verdadeiras de Nossa Senhora do Carmo

 
Para nós que vivemos num universo descristianizado, quando compramos os antigos registos de santos do século XVIII, limitamos-nos a apreciar a sua ingenuidade, as cercaduras barrocas e também um certo lado insólito que eles representam, isto é, imagens de santos, que já ninguém conhece ou que já muito poucos veneram, como a Santa Brígida, uma Santa Úrsula, um São Facundo ou uma Santa Quitéria. Nem nos lembramos que essas estampas reproduziam com maior ou menor fidelidade verdadeiras imagens de pedra ou de madeira, espalhadas em capelas e conventos pelo País fora. Muitas dessas esculturas desapareceram com o terramoto, outras perdeu-se-lhe o rasto depois da extinção das ordens religiosas no século XIX e outras ainda, caíram pura e simplesmente no esquecimento e já ninguém se lembra de rezar a Sta. Maria Egipcíaca, uma prostituta que trocou a cosmopolita Alexandria por uma vida de eremita no deserto.

Por essa razão, estas estampas são uma fonte significativa para a história das mentalidades, como também para própria história da arte, conforme poderão apreciar, na história, que contarei de seguida.
Do lado direito, o peitoral e ao centro a laça, são jóias que ainda hoje existem no Museu Nacional de Soares dos Reis
O meu amigo Manel comprou recentemente, uma estampa com a Nossa Senhora do  Carmo, em Lisboa, que é de dimensões maiores do que é normal, mais ou menos um A4, e sobretudo representa com um detalhe extraordinário um traje riquíssimo. Mas o mais curioso desta estampa é que a Virgem Maria ostenta jóias, uma laça e um peitoral, que representarão peças verdadeiras, que ainda hoje existem e que se encontram no Museu Nacional Soares dos Reis, conforme descobriu uma historiadora de arte, Luisa Penalva, numa investigação publicada na Revista do IHA, N.2 (2006), pp. 219-243, com o título As jóias da Virgem do Carmo.

Peitoral com as insígnias dos Carmelitas. Museu Nacional de Soares dos Reis, inv. 225 our. Foto http://www.matrizpix.dgpc.pt/

Essa investigação começou precisamente quando essa historiadora de arte viu por acaso uma estampa idêntica a esta e reconheceu de imediato as jóias do Museu Nacional Soares dos Reis. Estas peças passaram pelo Museu Nacional de Arte Antiga, vindas do Palácio das Necessidades, que por sua vez as terá recebido do antigo Convento do Carmo, onde existia uma imagem de Nossa Senhora do Carmo, que a julgar pelos documentos da época, possuiria um enxoval riquíssimo, do qual faziam parte não só mantos e trajes, mas também muitas jóias, oferecidas pela melhor nobreza da época. A mesma investigadora coloca mesmo a hipótese de a preciosa laça ter sido doada por D. Mariana Vitória (1718-1781), mulher do rei D. José I.
Laça ou guarnição de corpete. Museu Nacional de Sares dos Reis. Inv
211 Our MNSR. Foto http://www.matrizpix.dgpc.pt/
A laça começou por ser um simples laço de veludo ou seda que se colocava ao peito, de onde pendia uma cruz e outros ornamentos e que ao longo do século XVII se transformou progressivamente numa jóia.

O artigo da referida autora permitiu-me também identificar como o autor da estampa Gaspar Fróis Machado (1759-1796), coisa que não conseguia fazer até então, pois a estampa do Manel, foi cortada no fundo, na zona onde costumam estar mencionados os impressores, gravadores ou distribuidores. 

sábado, 22 de novembro de 2014

Faianças inglesas que afinal serão espanholas


aqui apresentei estas faianças, duas chávenas e uma peça que será uma compoteira ou talvez mais seguramente uma escudela, isto é, uma espécie de taça coberta para sopa. Embora não estejam marcadas, na altura apresentei-as convencidíssimo, que se tratavam de peças inglesas do Século XIX e de facto tudo na sua decoração, uma paisagem imaginária, um lago e uns cisnes, apontava para tal.

Contudo, enganei-me nessa atribuição e muito provavelmente as peças serão espanholas, da fábrica Pickman, conforme me chamou à atenção um seguidor espanhol deste blog, o Corbu.
Na verdade, quando vemos estas peças com paisagens românticas decoradas segundo o processo transfer way, temos sempre tendência a achar que são inglesas, e de facto durante todo o século XIX, a velha Albion invadiu todos os mercados europeus ou americanos com as suas faianças esteticamente muito apelativas, de grande qualidade e vendidas a bom preço. Como reacção a essa hegemonia da faiança inglesa, em meados do século XIX, um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde, consoante os casos, por todo o continente europeu, as fábricas dos vários países começaram a fazer louça à maneira inglesa, copiando não só as decorações como os também processos industriais de produção em massa. Foi o caso de Sacávem em Portugal, Sarreguemines em França, Maastricht (De Sphinx) na Holanda ou Sargadellos e Pickman/La Cartuja de Sevilla em Espanha. Ainda recentemente vi na Feira de velharias de Estremoz uma travessa que juraria ser coisa inglesa do século XIX e afinal a marca era de um qualquer país nórdico. Estes são os casos, que eu conheço porque imagino que na Alemanha, no Império Austro-húngaro ou na Itália também terão aparecido fábricas de louça à maneira inglesa.

As minhas peças, a escudela e as duas chávenas serão provavelmente de fabrico espanhol e constituem um bom exemplo de como por toda a Europa se começou a copiar a faiança inglesa, segundo pude apurar pelas minhas pesquisas, que passo de seguida a relatar, se tiverem pachorra de as ler. 

Procurei então na internet por Pickman/La Cartuja de Sevilla Espanha e encontrei algumas peças à venda on-line com decorações iguais à esta daquela fábrica espanhola, mas mais recentes. Na Feira de Estremoz também namorei alguns tempos uns pratos idênticos à escudela, marcados com uma âncora, que na altura julguei que seriam Davenport. Mas não observei com a devida atenção, pois estava sem os óculos de ver ao perto e hoje sei que espanholíssima Pickman usou também a âncora para marcar as suas loiças.

No CERES, colecciones en red, o inventário on line dos museus espanhóis localizei um jarro e uma chávena, marcadas Pickman com uma decoração central idêntica, embora a borda me pareça diferente.

Chávena, 1900-1933, Museo de Artes y Costumbres Populares de Sevilla

Na entrada descritiva destas peças, refere-se que a fábrica da Cartuja de Sevilla, conhecida também como Pickman, surgiu em 1839 e à mão de mestres ingleses começou a produzir louça com as técnicas inglesas de estampagem e que as séries decorativas com paisagens românticas imaginárias depressa se tornariam uma imagem de marca desta fábrica, que aliás, continuam ainda a ser feitas nos dias de hoje. Nesta descrição, indica-se no entanto, que foi a Fábrica de Sargadelos, em Lugo, na Galiza, a pioneira em Espanha da decoração com vistas de arquitecturas imaginárias, durante a sua terceira época de laboração, entre 1845-1870. Com efeito, fiz mais umas pesquisas e na net e num site de vendas on-line, encontrei uma caneca de atribuída a Sargadelos, com a mesma decoração central, mas sem marca e enfim nunca se pode confiar muito nas informações destas páginas de vendas.
 
Enfim, fiquei na dúvida se as minhas peças são Sargadelos ou Pickman, até porque as chávenas, pelo craquelé que apresentam, parecem-me mais antigas que a escudela. As chávenas, recebi-as por herança e vieram de Trás-os-Montes, portanto talvez fossem feitas entre 1845-1870 na vizinha Galiza, em Lugo, na fábrica de Sargadelos. A escudela, comprei-a em Estremoz e portanto é mais natural que proviesse de Sevilha. Mas, esta é uma explicação simplista pois ao longo do século XIX o caminho-de-ferro espalhou-se aos poucos por a Península Ibérica e os produtos chegavam a todo o lado.
 

Não cheguei a uma conclusão definitiva sobre estas peças, se serão Sargadelos ou da Cartuja de Sevilla, embora me incline mais para a segunda hipótese. Por exemplo, a cercadura com o motivo das uvas, continua ainda a ser usada na produção actual da Pickman.

A moral desta história é sempre a mesma, para a faiança e não está marcada, temos que sempre usar de muita cautela nas atribuições que fazemos.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Um cristo talhado pelo tempo


Encantei-me por este Cristo incompleto e amputado. Se esta peça estivesse inteira seria talvez apenas uma das centenas de milhares de imagens de Cristo, que se talharam em madeira ao longo do século XVIII. Mas as marcas do tempo transformaram-na numa espécie de escultura contemporânea, como se o artista tivesse desejado apenas representar o torso e cabeça.

Por mera intuição julgo tratar-se de uma peça executada dos finais do XVIII, mas não é muito simples datar os Cristos desta época. Não há um livro que nos explique as características gerais dos Cristos em Portugal no século XVIII. Também é bem verdade, que nesta altura já a iconografia de Cristo crucificado estava estabilizada há muito, e de uma forma ou de outra, o Cristo é sempre representado da forma como o vemos aqui.

Mas, nem sempre foi assim. Em primeiro lugar Jesus Cristo foi crucificado nu, como era hábito entre os romanos, mas claro para as mentalidades da Idade Média ou Moderna um Cristo em pilaroca era uma coisa impensável. Também o culto da Cruz não começou logo nos primeiros tempos do Cristianismo. Os romanos reservavam a morte por crucificação para os criminosos e era natural que os primeiros crentes não gostassem de ver o homem, que eles julgavam filho de Deus, representado como um vulgar bandido. Só depois de Santa Helena, mãe do imperador Constantino, no séc. IV, ter trazido um pedaço do Santo lenho da Terra Santa para Constantinopla é que a cruz se começa a tornar um símbolo do cristianismo. Porem, as imagens de Cristo crucificado só começam a aparecer depois do século VII e eram muito diferentes das de hoje em dia. Os Cristos representavam-se com a coroa imperial, de olhos abertos, os braços estendidos horizontalmente, sem sinais de sofrimentos, quatro cravos e muitas vezes envergavam uma túnica longa.
Cristo românico do Metropolitain Museum. A coroa imperial, os olhos abertos e os braços ainda dispostos horizontalmente. Imagem retirada de http://elpasiego.foroactivo.com/t107p60-cristos-romanicos
Só nos séculos XII e XIII com a sensibilidade que São Francisco de Assis imprimiu ao cristianismo, é que começamos a ver progressivamente Cristos na arte contorcidos de dor, moribundos ou mesmo mortos. A ideia passou a ser que os crentes se identificassem com o sofrimento de Cristo e se pudessem aperceber que o seu sacrifício foi feito em prol da humanidade, para a resgatar dos seus pecados. Procurou-se então uma representação mais naturalista de Cristo. A cabeça descai em sofrimento, os olhos estão fechados ou semicerrados, os braços são dispostos em V, a túnica é substituída pelo perizonium, uma espécie de faixa de pano, mais próxima da nudez com que jesus foi martirizado e em vez de uma coroa imperial, apresenta uma simples coroa de espinhos. É também a partir dessa época, que em vez de quatro pregos, dois nos braços e dois nos pés, Jesus passa a ser mostrado com três pregos. Um para cada braço e um para ambos os pés.

Cristo românico espanhol. Os braços dispostos horizontalmente, uma túnica e os quatro cravos. Imagem retirada de http://elpasiego.foroactivo.com/t107p60-cristos-romanicos
Nos finais da Idade Média, já a iconografia de Cristo se tinha definido e desde então todas as representações se assemelham um pouco, o que vai mudando será antes resultado do talento de quem pintou ou esculpiu a obra, ou as características de um determinado estilo artístico então em voga.

Em todo o caso, sem ter chegado a nenhuma conclusão definitiva sobre a sua data de execução, gosto muito deste Cristo esculpido pelas mãos de um qualquer artífice anónimo e a que o tempo deu os retoques finais de mestria.

O Cristo encontrou um lugar na minha casa