O meu amigo Manel gosta de comprar velhos móveis, que muitas vezes já ninguém liga muito, para os restaurar e devolver-lhes uma nova vida. Ao mesmo tempo que os restaura, estuda-os e vai solidificando os seus conhecimentos sobre uma determinada época, como por exemplo, esta cadeira, que adquiriu há uns anos e apresenta todas as características do estilo artístico, que dominou o reinado do rei francês, Luís XVI (1774-1791) e que tomou o seu nome. Este Luís foi o Senhor que casou com Maria Antonieta e dois tiveram um triste fim, pois acabaram guilhotinados, vítimas da fúria da Revolução de 1789.
O estilo Luís XVI surge como reacção aos excessos barrocos do período anterior, o chamado Estilo Luís XV, em que todas as linhas são curvas e exuberantes e a simetria do classicismo é pura e simplesmente arrumada e esquecida nas arrecadações dos sótãos dos palácios.
A rosácea é um elemento típico deste estilo |
O novo estilo Luís XVI baseou-se nas recentes descobertas arqueológicas de Pompeia, em 1748, que impressionaram a Europa dos aristocratas e os membros do alto clero e puseram na moda um gosto mais sóbrio, uma admiração pelas linhas direitas, pelas colunas dos templos clássicos. Aliás este gosto pelas colunas é um dos traços mais característicos do mobiliário Luís XVI. Os pés das cadeiras, das poltronas, das camas, das cómodas e dos canapés parecem pequenas colunas romanas.
O pé canelado como se fosse uma coluna clássica |
Mas este retorno à antiguidade não é um plágio, mas antes uma inspiração, pois a época é demasiado frívola e desejosa de fantasias para adoptar sem restrições as linhas demasiado frias do classicismo.
os pequenos pormenores frívolos destinados a seduzir |
Recordo-vos que é este o período em que a rainha Maria Antonieta vive uma existência despreocupada em Versalhes, gastando milhões em vestidos, mandando erguer nos jardins do referido Palácio, uma aldeia falsa para brincar aos camponeses com o seu círculo íntimo. Assim, nas formas puras do classicismo, usam-se grinaldas, os estofos das cadeiras são feitos de delicados tecidos com padrões florais. Embora, baseado no classicismo o estilo Luís XVI é feminino, cheio de graça e destinado a seduzir.
o espaldar cabriolet en chapeau e o tecido floral muito típico da época |
Normalmente este mobiliário tinha por pano de fundo salas com boiseries em madeira trabalhada e pintada, que se harmonizavam com os estilos dos móveis. Reproduzo aqui o desenho de umas dessas salas apaineladas, retirado da obra L'Art architectural en France, motifs de décoration intérieure et extérieure / dessinés... par Eugène Rouyer ; Texte, par Alfred Darcel. - Paris : Noblet et Baudry,1863-1866, para vos dar uma ideia do luxo desses interiores.
As boiseries Luís XVI |
Voltando a cadeira à cadeira do Manel, ela é feita em faia, uma madeira que normalmente se usava nos móveis que se destinavam a serem pintados. O mobiliário francês desta época é muitas vezes pintado de branco, cinzento ou então dourado. A faia é uma madeira pouco usada na marcenaria portuguesa, o que leva o Manel a pensar que esta peça tenha origem no estrangeiro. Em Portugal normalmente usa-se castanho, nogueira, carvalho ou madeiras exóticas, como o pau-santo.
O Manel como não gosta de móveis pintados, retirou-lhe a tinta cinzenta e deixou-a na sua cor natural, o que está mais de acordo com a tradição portuguesa, que aprecia a textura e as cores da madeira à vista.
Para o estofar, escolheu-lhe um bonito tecido bastante antigo, apanhado do lixo em Barcelona e que pertenceu aos cortinados de um velho palácio daquela cidade,
No entanto, a cadeira estava estofada com molas, o que indicou desde logo ao Manel que a sua peça não poderia ser um original do século XVIII. As molas só aparecem no século XIX. Por outro lado, esta cadeirinha fazia parte de um conjunto, formado por um canapé, poltronas e muitas cadeiras, o que também nos mostra que será já uma peça do século XIX, pois é nesta época que as famílias burguesas ganham o hábito de encomendar jogos de mobília no mesmo estilo para cada uma das divisões. Para a sala de jantar escolhiam móveis Renascença, para o escritório um solene estilo império e para a sala de visitas, um delicado conjunto estilo luís XVI.
Eugénia do Montijo por Franz Xaver WINTERHALTER |
Na verdade esta cadeira é muito provavelmente da época de Napoleão III, acerca da qual já aqui escrevemos. A sua mulher, a espanhola, Eugénia de Montijo, tinha uma verdadeira paixão pelo mobiliário estilo Luís XVI, de que mandou executar inúmeras cópias, lançando assim uma moda, que se espalhou por toda a Europa e Américas. Em França chamam as estas cópias “Louis XVI-Impératrice” e a partir de meados do século XIX multiplicaram-se por todas as grandes casas burguesas de Lisboa a Varsóvia, passando por Berlim e estendendo-se ao Rio de Janeiro ou a Nova Iorque.
Para quem quiser saber mais recomendo a leitura da obra Reconnaîte les meubles de style / P.M . Favelac. - Paris: Ch. Massin, [s. d.]
Para quem quiser saber mais recomendo a leitura da obra Reconnaîte les meubles de style / P.M . Favelac. - Paris: Ch. Massin, [s. d.]
Gostei muito do teu post, que ilustra muito bem este tipo de peças.
ResponderEliminarRealmente julgo que esta cadeira não deve ter sido fabricada em Portugal. Não que a faia não fosse usada por cá, mas não era muito comum; como escreves demos prioridade a outras madeiras bem mais interessantes!
Tendo nós acesso não só às madeiras nacionais/europeias: cerejeira, nogueira, carvalho, castanho, freixo, como às proveniente das colónias além-mar: teca, pau-cetim, freijó, pau-rosa, mogno, vinhático e as muitas variantes de pau-santo, todas madeiras com uma venação que as torna extraordinariamente belas, para quê pintá-las?
O importante era tirar partido da sua beleza natural e acentuá-la, se possível.
Assim, a superfície da madeira nada venada desta cadeira tinha sido coberta com uma camada que a isolava (uma espécie de sub-capa) e, só posteriormente, pintada de cinzento-pérola, como era comum a muitas peças provenientes de França (é uma hipótese sem certezas).
A faia é uma madeira macia o que a torna um material fácil de trabalhar, mas, como não há "bela sem senão", também é muito atacada por xilófagos, como acontecia com esta cadeira quando a adquiri há cerca de 17 anos, para lá do cinzento que se apresentava sujo e muito gasto.
Faltava-lhe igualmente uma das pinhas no topo do espaldar.
Tinha como estofo um chintz já muito gasto e sujo, e, quando o retirei, reparei que se tratava já do terceiro que levava, sendo o primeiro um brocado de seda relativamente próximo deste que agora possui.
Claro que possuía molas helicoidais de origem (alguns móveis de assento, anteriores à invenção das molas - as molas foram inventadas por volta de meados do século XIX -, foram posteriormente renovados/modernizados/tornados mais confortáveis, e estofados com aplicação de molas), o que me indicava que se tratava de uma peça da segunda metade do século XIX.
Se a cadeira tivesse sido dourada talvez não lhe tocasse, pois gosto dos dourados gastos deixando a madeira a aparecer.
Mas o cinzento estava num estado lastimável, para além do facto de já não ser cinzento, mas uma amálagama de gorduras o que lhe e dava um aspecto sujo e desmazelado, por isso, e, apesar de ser uma peça de época e relativamente boa, não era, no entanto, de museu, pois nem assinada estava (neste caso nunca lhe tiraria o que quer que fosse), pelo que limpei a madeira de todas a camadas de tinta, o que me deu um trabalho insano, para não destruir o trabalho de talha que reveste toda a cadeira, mas, ainda que a faia seja pouco venada, pode adquirir tonalidades quentes, como foi o caso.
Preferi não lhe colocar pregaria, como deveria, para um móvel desta época, mas é algo que evito aplicar nas minhas peças, só o executo quando mo pedem expressamente. Destrói demasiado os bordos já fragilizados da estrutura da cintura.
O tecido é de época, um brocado de seda proveniente de um cortinado de um pequeno palacete dos arredores de Barcelona.
Bem, não é uma peça espantosa, mas está de cara lavada, consolidada, sem xilófagos e é confortável.
Como sempre alonguei-me, mas mobiliário é um dos meus fracos!
Manel
Viva Luis,
ResponderEliminarEsperando que esteja bem e deixando em nota o meu agrado em ler os seus últimos textos (em tempos de férias lidos todos de seguida!!!!!), mas sobretudo por partilhar este trabalho do Manel.
Ainda que as minhas preferências em termos de mobiliário vão para o periodo anterior e posterior ao desta cadeira, portanto D. João V e D. José e depois o período chamado Romântico, sem dúvida que o estilo Luis XVI, ou o nosso D. Maria, apresentam virtualidades muito próprias e interessantes. Sobretudo quando se querem criar ambientes mais "leves". Mas tudo isto para dar os parabéns ao Manel pelo trabalho absolutamente fantástico. Como o entendo nos prazeres de restaurar uma peça, que passa quase por uma mística de "ressurreição", se é que não é sacrilélio falar assim relativamente ao restauro. Porque não se trata de fazer renascer, mas antes trazer novamente à vida. Tudo passa por um processo de entendimento da época que a produziu, como foi feita, as funções que desempenhou, os estragos e os restauros que já sofreu, os materiais que a compõem e aqueles que se podem utilizar, e no final apresentá-la novamente no seu esplendor original porque todos os pormenores foram pensados.
Sendo que nestas coisas sou apenas um amador, um dia ainda tenho de pedir uns conselhos ao Manel!!!
Abraço
C.
Manel obrigado por me teres deixado fotografar a tua cadeira e ainda pelo teu comentário, mais técnico, que traçou pistas e ensinamentos a quem gosta ou pretende de restaurar peças.
ResponderEliminarCaro C
ResponderEliminarFico sempre todo contente quando posso contar com os seus comentários. Sinto que os meus posts acertaram na "mouche"
Embora não possa falar por ele, julgo que o Manel terá todo gosto em partilhar e trocar experiências sobre restauro.
Também prefiro os velhos estilos portugueses, D. José, D. João V ou século XVII com a azulejaria como pano de fundo, mas não consigio deixar de me seduzir facilmente por estes estilos franceses.
Enfim, sou sempre um bocadinho enciclopédico, quer na cultura, nas leituras ou nos gostos. Só embirro mesmo é com mobiliário contemporaneo
abraços e boas férias
Obrigado pelas suas palavras C.
ResponderEliminarClaro que terei muito gosto em partilhar o conhecimento que vou tendo, mas ele também não é muito. É sobretudo baseado no algo que me foi dado aprender na Ricardo Espírito Santo, na prática, nas leituras, nas pesquisas da net, nos conhecimentos de história da arte e do mobiliário em particular, no muito que vou procurando saber na visita a museus de artes decorativas por esse mundo fora (tento não perder nenhum que me caia na alçada!) e nas conversas que vou tendo com outros, poucos, profissionais/amadores do campo que têm a paciência e a amabilidade para partilharem.
O restauro é um mundo, para mim fascinante, e quando tenho uma peça na mão é frequente esquecer-me de comer, de dormir ... enfim, há tontos para tudo!
Mas o que gostaria mesmo é de ter tempo para fazer cursos de especialização em campos que me fascinam dentro do restauro.
Manel
Tenho tido pouca disponibilidade para aqui vir, sempre em trânsito e absorvida pela
ResponderEliminarvida familiar, mas gosto muito das suas incursões pela história a propósito dos móveis que vai mostrando e respetivos estilos . É muito enriquecedor fazer este enquadramento e o Luís fá-lo muito bem.
Também considero uma mais-valia para este post o comentário do Manel - muito interessante a descrição que faz do excelente e certamente aliciante trabalho que foi a recuperação desta cadeira. E teve muito bom gosto na escolha do tecido para a estofar e do galão.
Gosto de móveis antigos e tenho alguns de família, incluindo uma mesa bufete, talvez o mais antigo, de que gosto muito, mas não tenho preferência por estilos. É cada peça em si que me atrai por um ou outro motivo e até exemplares já do século XX me conseguem encantar.
Só não gosto de cópias feitas em série - embora tenha algumas de tempos menos seletivos ;) - ou de mobílias completas que é só ir à loja comprar.
Muitos parabéns ao Manel pela magnífica peça como resultado do seu paciente trabalho e a si por o ter apresentado tão bem no post.
Abraços
Lindíssima cadeira!!
ResponderEliminarParabéns ao Manel. Pode não ter seguido as pisadas da familia por inteiro mas "amanha-se" lindamente!! Parabens
Optimo resultado!
Optimo post Luis
Um abraço
Flávio
Peço desculpa ao Luís pelo que vou escrever, mas não tenho outra forma de o fazer.
ResponderEliminarFlávio, "eu não me amanho", eu faço as coisas de forma bastante séria, e aprendi com profissionais, alguns do melhor que existe no campo.
Posso não ser exímio (conheço um ou outro que caberia dentro desta categoria, mas são uma classe à parte e fazem disto a sua vida, e com eles não me posso comparar, pois possuem uma tecnologia que me está vedada, pelo exorbitância de valores que isso comporta), mas dentro do meu ramo sei que posso ser razoável e o que faço levo muito a sério, não sou um curioso que "se amanha".
Tento ser o mais rigoroso possível naquilo que faço, e, quando o faço, há muita pesquisa anterior para que não falseie a peça que estou a intervencionar.
Quando não sei vou ter ter com quem sabe e adquirir o conhecimento necessário. É assim que, julgo, o conhecimento de adquire.
E aos meus antecessores o Flávio não os conheceu, nem poderia julgar da sua obra ou da comparação dela com a minha, e, sei de fonte segura, nunca se teriam dedicado ao restauro pois não era o seu ramo nem teriam qualquer apetência por ele.
Agradeço-lhe os parabéns, e, estou em crer que não terá havido dolo nas suas palavras, mas talvez fosse preferível uma escolha mais acertada de termos quando se refere a terceiros porque, afinal, não me conhece e muito menos à minha obra, e a sua juventude não é desculpa para este tipo de léxico que utiliza
Manel
Bem, nunca pensei que o meu comentário fosse atingir tão levadas proporções e peço imensa desculpa se o ofendi!!
ResponderEliminarSe não reparou usei as aspas, por não ser amanhar-se o termo certo!
Pela conversa que uma vez nos foi trocada não sabia que o fazia de forma séria, pensei que fosse como hobby caseiro e não tivesse formação técnica.
Nunca me desculpei com a minha juventude para nada e nunca o irei fazer, pois bem sei que há pessoas mais velhas que eu que são menos educadas e pessoas mais novas que são mais bem educadas que eu.
Mas lhe digo que não devo ter nem metade dos estudos que o Manel tem, e como tal não tenho um campo lexical tão abrangente quanto o seu.
comentei com o objectivo de elogiar os dois, e não com o sentido de receber a atenção que recebi...
Quando digo que não os seguiu (os seus antepassados) digo profissionalmente. Mas tem razão, não o conheço para falar de si.
Para a próxima calo-me que assim estou melhor.
Não julguei nem os seus antepassados nem o trabalho deles, se teve uma má interpretação mas minhas palavras, não me cabe a mim remendar, pois mais uma vez que digo que foi sem macula alguma!
Passar bem e novamente as minhas desculpas ao sr. Manuel
e ao Luís.
Cumprimentos
Pela minha parte, desculpas aceites Flávio, porque, como já referi anteriormente, não creio ter havido má-fé da sua parte, mas uma infeliz escolha de termos e julgamentos inadequados, os quais não poderia deixar passar
ResponderEliminarManel
Ola Manel
ResponderEliminarObrigado
Colegas como antes
Flávio teixeira
Cara Maria Andrade
ResponderEliminarJulgo que somos de uma época caracterizada por um gosto eclético em termos de mobiliário. E depois como coleccionadores que somos temos tendência a gostar um pouco de tudo e de todas as épocas, porque, para além das peças atrai-nos a história de cada uma delas. A velha cadeira D. José é uma recordação de uma antiga casa de família e cadeira romântica foi a nossa primeira compra numa casa de velharias.
Abraço e obrigado pelo seu comentário
Gostaria que conhece-se meu Ateliê de Moveis em SP.
ResponderEliminarhttp://www.americonevescadeiras.com.br
Caro Anónimo
ResponderEliminarVivo em Portugal e infelizmente não poderei visitar o seu atelier em S. Paulo, mas irei ver o seu site.
Um abraço