quinta-feira, 31 de maio de 2012

Casa com pintura escaiolada no Algarve ou uma visita ao baú do Zé Júlio

Através deste blog, fui encontrando pessoas que estão atrás de outros computadores, em outras partes do País, de Trás-os-Montes ao Algarve e até mesmo no Brasil. Aos poucos fui conhecendo-os e abriram-me as portas das suas casas, algumas delas cheias de história, mostraram-me as suas colecções, os seus interesses e ainda me deram dormida e de comer, sem nunca me terem visto antes. Um desses conhecimentos foi o Zé Júlio, que me convidou para o Algarve para me mostrar os seus tesouros, que são as ruínas de casas abandonadas, as alfarrobeiras centenárias, as praias desertas, as plantas selvagens e os jardins que vai criando para outras pessoas, transplantando para esses espaços a natureza do Algarve que ele tão bem entende.


Desse passeio pelo Algarve, onde contornámos os resorts turísticos, o que talvez me tenha mais impressionado foi o interior de uma casa dos anos 20 ou 30, abandonada e cujas paredes interiores mostravam uma pintura escaiolada, uma técnica, muito típica da região. O efeito desta pintura de escaiola transmite de uma forma imediata toda a luz e alegria do Sul e ao mesmo tempo lembra-nos as pinturas dos palácios de Creta, que são o expoente máximo dessa luminosidade mediterrânica.


Enfim, falo em alegria do Sul, não porque julgue que os seus habitantes sejam mais alegres que no Norte ou Centro, mas, antes, porque acredito, que nós, os que chegamos dos climas chuvosos e mais frios experimentamos uma espécie de euforia com a luz do Sul reflectida pelo mar, que nos faz acreditar por momentos, que algum Deus grego nos devolveu a juventude.


Todas estas sensações que esta pintura consegue provocar são conseguidas através de uma técnica muito económica, que usa como matéria-prima, a cal, a argila e pigmentos de cor naturais, tudo produtos abundantes na região. A pintura a escaiola pretende imitar os materiais mais caros como o mármore ou a pedra ou a madeira. É uma arte de fingimento e talvez por isso seu impacto nos nossos sentidos seja tão grande.



As fotografias foram cedidas pelo Zé Júlio, cujo blog recomendo vivamente.

sábado, 26 de maio de 2012

Velho aplique a gás


Há já muito tempo existia um velhote na Feira-da-Ladra, que deveria andar a vender os restos de uma loja de cortinados e decoração, talvez uma daquelas muitas casas, que faliram na Baixa e cujo recheio foi apodrecendo ao longo de muitos e muitos anos num primeiro andar de um prédio pombalino, à espera da decisão de um qualquer tribunal. O Senhor vendia botões em osso antigo, suportes fabulosos para pendurar cortinados, imitando os estilos franceses do século de ouro e toda uma panóplia de produtos em latão, que uma pessoa não sabia exactamente para que serviam, mas que nos apetecia comprar e levar para casa. Foi o que eu fiz com este aplique, que não me fazia falta em casa, mas que era um crime deixa-lo lá, até pelo preço irrisório que o velhinho fazia.

Quando, cheguei a casa olhei melhor para o candeeiro e percebi que originalmente foi concebido para ser alimentado a gás, pois apresentava uma espécie de manípulo para regular a intensidade da luz.
O manípulo para regular a iluminação
Este pormenor levou-me à procura das datas limites em que a iluminação a gás se fez em Portugal, para tentar de alguma maneira situar o candeeiro num espaço temporal mais preciso.

A iluminação a gás começou a usar-se em Paris, Londres e Bruxelas na segunda década do século XIX e foi-se vulgarizando pela Europa e Estados Unidos ao longo do século XIX. Em Portugal, neste período, vivíamos uma situação complicada, com a ocupação inglesa, a independência do Brasil e a guerra entre Liberais e Miguelistas, de modo que as primeiras tentativas para iluminar a gás a cidade de Lisboa começaram-se só em 1844. O sistema foi crescendo por toda a cidade ao longo da segunda metade do século XIX.

Cerca de 1880, a electricidade apareceu nos Estados Unidos e na Europa. E depois dessa data, o gaz cedeu progressivamente lugar à electricidade. No nosso País, os primeiros ensaios de iluminação eléctrica também tiveram em lugar nessa década, mais precisamente em 1882 e 1886, primeiro na Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental Portuguesa e Espanhola, evento que deu origem ao Museu Nacional de Arte Antiga e depois no Teatro S. Carlos. Contudo, só depois da guerra de 1914-18, o uso da electricidade penetrou de um modo generalizado nos lares lisboetas, destronando definitivamente o gás.

Em jeito de conclusão, este meu aplique terá sido fabricado no período que medeia os anos de 1844 e 1918, o que não é uma informação propriamente exacta, mas ajuda-me a enquadra-lo num período da história portuguesa e a imaginar-lhe um cenário, talvez  iluminando uma daquelas boas lojas da Baixa, com um nome francês ou alusivo aquele País, como Paris em Lisboa, atelier de reliure, ou o Bonheur des Dames, tal como se chamava aquela perfumaria muito bonita, que existia ali da Rua do Carmo.

Este texto usou como fonte principal:

Serrão, Joel
Iluminação pública e privada
In

Dicionário de história de Portugal. Lisboa, Iniciativas Editoriais , s. d.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Pratos de faiança catalães: séries azuis

A cerâmica catalã em harmonia com a azulejaria portuguesa da minha casa

Hoje volto novamente à faiança, com um conjunto de 3 pratos comprados pelo Manel em Els Encants, o poético nome da feira-da-ladra de Barcelona. São de faiança catalã, pertencentes às séries azuis, um tipo decorativo de pratos, fabricados entre o séc. XVII e o XIX. Tal como os nossos ratinhos, as séries azuis não correspondem à produção de uma oficina específica de cerâmica, mas a uma moda decorativa seguida por vários oleiros de Barcelona, caracterizada pelo uso da cor azul sobre o branco. A designação foi-lhes atribuída pelos coleccionadores e antiquários catalães, que também inventaram um jargão para designar os diferentes tipos das séries azuis.

As séries azuis dos séculos XVII a XIX caracterizam-se pelo uso de medalhões centrais ocupados por figuras, paisagens e barcos, realizados segundo uma perspectiva ingénua e popular. Diferenciam-se pelos motivos ornamentais das orlas e dividem-se em 3 grupos, consoantes as influências:

1: A catalã, de que infelizmente, nem eu nem o Manel dispomos de exemplares para aqui mostrar.
A decoração de gravatas de influência genovesa

2- A Genovesa, de que o prato com o cão é bom exemplo. Está decorada nas orlas com o motivo que os antiquários e coleccionadores designam por gravatas.

O prato que me foi oferecido pelo Manel

3- A francesa. Nos finais do século XVIII, a moda italiana é esquecida e o modelo que é tomado por inspiração é a faiança francesa de Marselha ou de Moustiers e os pratos apresentam-se decorados com motivos geométricos e miúdos. Pertencem a este grupo o prato com a paisagem ao centro, que o Manuel me ofereceu e o prato decorado com o motivo conhecido pela cerejinha.
O padrão das cerejinhas

No site do Museo de Cerámica de Barcelona encontrei um prato muito semelhante ao meu datado de meados do século XVIII.

Prato do Museu de Cerâmica de Barcelona datado de meados do Século XVIII

Destes três pratos catalães, o mais antigo será o do cão, talvez da primeira metade do Século XVIII, o da paisagem com casario, de meados do mesmo século e o do das cerejinhas, talvez já do início do XIX, conforme as minhas pesquisas no Museu de Cerâmica de Barcelona.

Quem quiser conhecer um pouco mais sobre este assunto poderá consultar a obra Cerâmica espanhola dos árabes a Miró nas colecções do Museu de Cerâmica de Barcelona . Lisboa: IPM, 1996

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Destilaria: desenho de meados do séc. XIX


Já há muitos anos que comprei numa feira de velharias este desenho algo ingénuo de uma destilaria de bebidas alcoólicas, provavelmente datado da segunda metade do século XIX. A perspectiva é incorrecta e o engenho de destilação é representado de uma forma tosca, o que me levou a concluir que o desenhador desta obra não tinha pretensões artísticas. O seu objectivo era técnico, queria mostrar como o mecanismo funcionava e não exibir dotes artísticos.

O papel mostra sinais de ter sido dobrado várias vezes e percebe-se que em tempos formou um pequeno e bem feito embrulho. Portanto, é provável que este desenho tenha sido o anexo de um processo administrativo e assim esteve guardado décadas, pois apesar de o ter emoldurado há cerca de 15 anos, os vincos permanecem ainda bem marcados. A folha do desenho foi toda dobradinha para caber no processo ou talvez estivesse a ele cozida, num embrulho à parte como era vulgar fazer no século XIX.


Segundo as minhas pequenas investigações, percebi que este desenho deve ter feito parte de um pedido de licença feito por um particular ao Estado Português para construir uma destilaria. Depois de 1852, as fábricas portuguesas que ensaiavam uma revolução industrial modesta, requeriam uma licença de funcionamento ao Ministério do Reino, o antepassado do Ministério da Administração Interna. O estado pretendia verificar se a fábrica ou manufactura era ou não insalubre. Por exemplo, os curtumes eram sempre obrigados a funcionar afastados dos aglomerados urbanos. Este meu desenho deve ter feito parte de um pedido de licença desta natureza.

Aliás encontrei no site da Torre do Tombo, cujo motor de busca o Digitarq é estupendo,  muitas referência estes processos datados entre 1852-1860. Um dos que localizei, a Planta de fábrica e destilaria de cerveja, situada na Rua das Aranhas, nº 12, no Funchal, de 1857 tem uma planta e um desenho com algumas semelhanças com o meu desenho.

O autor deste meu desenho não conhecia as leis da perspectiva, mas sem o saber produziu um testemunho de uma modesta revolução industrial, que Portugal fez a partir de 1852, quando finalmente as guerras acabaram (Invasões francesas, lutas liberais, Maria da Fonte) e começou um período de fomento industrial, em que se construíram estradas novas, uma rede de caminhos de ferros, faróis e portos de navegação. É um pequeno símbolo desse período histórico que ficou conhecido como a regeneração.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

A Anunciação


As imagens dos santos católicos atraíram-me primeiro que as da Virgem Maria. Talvez nos santos eu tivesse encontrado de uma forma mais evidente os resquícios de um antigo paganismo, de um ancestral panteão de deuses, baptizados pelo cristianismo. Mas, com o tempo comecei a coleccionar imagens da virgem, Senhoras da Luz, Senhoras do Carmo, da Piedade e por aí fora.
Há uma semana comprei num antiquário em Borba uma Anunciação. Trata-se de uma estampa muito pequena, colorida e com uma legenda que julgo ser em língua italiana, com os dizeres S. S. Nunziata. A vendedora garantiu-me que o suporte é pergaminho, mas apesar de a folha ser muito dura, confesso que me lembro de ver poucos livros do séc. XVII ou XVIII com as páginas todas em pergaminho. Como toda a gente sabe, muita destas estampas são arrancadas de livros. Mas, fica a dúvida se esta anunciação será em papel ou pergaminho. Em todo o caso, a estampa é seguramente do século XVIII.

Um dos temas mais frequentes em toda a pintura cristã, a Anunciação representa o momento em que o Anjo Gabriel anuncia a Maria que terá um filho de Deus, a encarnação, e em que esta responde Fiat, isto é, faça-se, ou melhor faça-se a encarnação do corpo de deus no meu ventre. É umas das poucas frases que Maria diz longo de todo o Novo Testamento. Aliás as suas aparições ao longo das narrativas dos evangelhos são muito escassas. Também ninguém sabe qual foi o seu rosto, apesar de algumas igrejas afirmarem que possuem retratos pintados por S. Lucas, mas essas obras, submetidas a exames contemporâneos revelaram sempre serem muitíssimo posteriores ao período em que a virgem Maria terá vivido.

Em suma, Maria quase não falou no Novo Testamento, é referida escassas vezes nos Evangelhos e ninguém sabe se era loira, morena ou ruiva. E no entanto, é a figura mais representada em toda a arte ocidental, domina quase por completo o culto católico, a tal ponto, que Louis Réau, se interroga se o Cristianismo não de deveria designar com mais propriedade por Marianismo.

Enfim, não vou explicar num blog, em 4 linhas como tudo isto foi possível e como este fenómeno se processou em vinte séculos de existência do Cristianismo, mas Louis Reaud, na Iconographie de l’art chrétien, acredita que a Virgem Maria herdou as funções de todas as deusas destronadas pela nova religião monoteísta. Substituiu a egípcia Isis, a síria Astarté e ainda Artemísia, Deméter e Atena e muitas outras deusas mães de culto local cujo nome se perdeu na noite dos tempos.

sábado, 5 de maio de 2012

Algumas considerações acerca da compartimentação interior do Solar de Outeiro Seco

As salas contíguas do corpo nobre do solar dos Montalvões organizam-se segundo a compartimentação do Leal Conselheiro de D. Duarte 
O Solar dos Montalvões de Outeiro Seco é o resultado de várias construções, erguidas ao longo de pelo menos 2 centenas de anos e feitas à medida das necessidades de crescimento da família, do seu desafogo económico e da sua própria fé.

No meu post de 25 de Novembro de 2010, consegui com a ajuda do Humberto, esboçar uma primeira cronologia das várias fases de construção do solar, baseando-me em dados fiáveis, o processo de edificação da capela existente do arquivo Distrital de Braga e as inscrições epigráficas.


Assim, antes de 1738, no tempo o capitão de cavalos José Alvares Ferreira, os corpos Norte, Nascente e Sul já estariam construídos.  Antes de 1761, já estava concluída a fachada nobre a Poente. A capela é erguida entre 1762 e 1784. Pelo meio, em 1782, construiu-se a escada do pátio interior. Finalmente, a construção do último corpo, que liga a capela à cozinha, é feita depois de 1784. Este último núcleo fecha o pátio.

Ao longo deste esforço construtivo de várias gerações de Ferreiras e depois Ferreiras Montalvões, dos quais eu descendo, nota-se que foi seguido o velho modelo já milenar de erguer a casa em torno de um pátio central, tal como os romanos e os árabes o faziam. No fundo, as pessoas estavam a repetir velhas fórmulas arquitecturais, que passavam de geração em geração, sem que os mestres de obra que as aplicavam os proprietários que as ordenavam soubessem de onde provinha este modelo antiquíssimo da casa feita em torno de um pátio.

Um aspecto do tecto da divisão que veio a ser a biblioteca e que correspondia na compartimentação do Leal conselheiro, à Sala ou Aula
Respeitou-se a tendência da casa fechada em torno de si própria, autónoma, quer economicamente, quer até em termos legislativos, pois no portão, que dava acesso ao pátio, existia uma aldraba e antigamente quem pegasse nela, estava de imediato ao abrigo da justiça real. O solar e a propriedade constituiriam provavelmente aquilo que se designava no Antigo regime por Honra, isto é, um domínio em que as funções administrativas, judiciais e financeiras estavam nas mãos de um Senhor.

Relativamente à forma como as divisões se organizavam, a história é mais complicada de reconstituir. Eu só conheci por dentro a casa no século XX, com a divisão tradicional da nossa época, um espaço de sala de jantar, a sala de visitas, a biblioteca, a cozinha, quartos, quartos para os criados, lojas. Etc.

Um pormenor dos tectos em estuque, da Sala de visitas, que correspondia à antecâmara do Leal Conselheiro

Mas, sei através de manuais de história, que esta organização dos espaços foi bem diferente no passado. A sala de jantar por exemplo é uma divisão recente. Num passado mais remoto, qualquer divisão servia para servir refeições, bastava para isso armar um estrado de madeira. Até meados do século XIX, em muitas das casas portuguesas nobres sobrevivia a sala do estrado, onde as senhoras e as criadas de dentro se sentavam no chão, a costurar, a bordar, a ler ou a conversar.

Ora numa casa construída em várias fases ao longo de presumivelmente dois séculos, as funções das divisões foram mudando necessariamente ao longo dos tempos. No entanto, a divisão interior da casa, seguiu fórmulas construtivas muito comuns na arquitectura portuguesa senhorial. Descobri isso por mero acaso, quando conheci outra casa na região, o Solar de Vilartão, do nosso amigo Joaquim Malvar e ao visitar os aposentos nobres da casa, uma sucessão de salas contiguas, encontrei ali qualquer coisa de familiar que me recordou o andar nobre do Solar dos Montalvões e a velha casa, também em Outeiro Seco, de Miguel Álvares Ferreira Montalvão, o meu tio trisavó, que morreu louco.

O fogão da Sala de visitas

O Joaquim Malvar teve a gentileza de me explicar que as 4 salas contiguas, comunicando entre si sem corredor faziam parte de um modelo antiquíssimo e fez até o favor de me indicar obra onde colheu essa informação, que esta semana comprei na feira do livro. Trata-se de Cozinhas, espaço e arquitectura, de Ana Marques Pereira, editada em lisboa, pela Inapa, em 2006. Procurando traçar a história das cozinhas nas casas senhoriais portuguesas, a autora acaba por dar informações úteis sobre a divisão geral dos espaços.

Planta do corpo nobre do Solar dos Montalvões. A compartimentação corresponde á do Leal Conselheiro, de D. Duarte
O modelo de compartimentação de uma residência senhorial foi descrito pela primeira vez por D. Duarte no Leal conselheiro. Existiriam 4 zonas que se iam tornado progressivamente mais intimas:
- Primeiro surgia a sala ou aula, destinada a receber as pessoas e fora e que se situava mais próxima da entrada;
- Seguia-se a câmara de paramentos, ou antecâmara, destinada aos moradores e alguns nobres de maior intimidade;

- Em terceiro, estavam as zonas de maior intimidade, a câmara de dormir, em que os maiores e os mais chegados da casa deveriam ter entrada;

- Por último, encontrava-se a transcâmara ou zona de vestir e do oratório, onde os moradores se retiravam para ler rezar ou meditar.

A sala do Museu, a câmara do morgado, que comunicava com a transcâmara, a capela, espaço de oração
Este esquema em quatro salas corresponde como uma luva aos salões nobre do solar dos Montalvões, conforme se pode ver pela imagem da planta.  A primeira sala, onde se situou mais tarde a biblioteca, era a sala ou aula; a sala de visitas seria a antecâmara, o museu correspondia ao quarto do morgado e finalmente a capela correspondia obviamente a transcâmara.

Não creio que os Álvares Ferreira e os Ferreira Montalvão conhecessem o Leal Conselheiro de D. Duarte, nem seria certamente conhecido do mestre-de-obras que contrataram, mas o modelo estava presente nas suas mentes, ainda que de forma inconsciente, tal como hoje em dia sabemos, que para escrever um texto, temos que obedecer ao modelo, introdução, desenvolvimento e conclusão, ainda que já não saibamos quem pela primeira vez enunciou este esquema teórico.

A Câmara comunicava com o coro da Capela.

As fotografias são do Manel.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

velhas faianças: um lago e um sonho visitado por uma águia negra


Quase há dois anos mostrei aqui duas chávenas inglesas do século XIX, que recebi como herança. Não consegui identificar o fabricante, apesar de ter feito umas quantas pesquisas. Houve muitas fábricas inglesas a produzirem motivos semelhantes a este, uma paisagem formada por um lago ou rio, um par romântico nas margens ou remando num bote e ao fundo um palácio, um templo, umas ruínas ou um castelo. Portanto, com um padrão tão comum e não estando as chávenas marcadas é quase uma agulha num palheiro identificar que fábrica o fez, durante o século XIX, numa Inglaterra em plena revolução industrial, com uma produção variadíssima, que dominava o mercado mundial de loiças económicas.


Esta semana, na Feira de Estremoz encontrei uma espécie de taça de comsommé coberta (Obrigado, Maria Andrade, por me identicar a tipologia), com o mesmo padrão do meu serviço e não resisti e comprei-a. Tal como as chávenas, também não está marcada e a sua compra não me ajudou em nada a identificar a fábrica. Mas, o que consegui foi recuperar uma peça de um serviço que pertenceu à minha família há muitas dezenas de anos e cujo destino final foi o de todas as loiças, partir-se em pedaços às mãos de uma criada trapalhona ou de uma tia idosa com dedos trémulos. Esta compra foi no fundo uma forma de reconstituir na minha casa, através dos restos de 3 peças de faiança inglesa, momentos da minha infância e de um passado familiar que já não vivi, mas que conheço fragmentos por tradição oral.

A casa do Norte de onde vieram estas chávenas será vendida, senão não for em breve, será daqui a um ou dois anos e confesso que isso me causa mágoa e faz com que sonhe repetidas vezes com essa grande casa de janelas de guilhotina e soalhos de madeira. E como estes sonhos são recorrentes e sempre angustiantes, quando olho para o lago tão irreal, representado nos fragmentos deste serviço de loiça e recordo-me da canção da Bárbara, Aigle Noire, essa prodigiosa alegoria onde tudo é dito e nada é dito, acerca de uma grande águia negra que vinda de parte nenhuma nos visita enquanto dormimos,


Un beau jour ou peut-être une nuit
Près d'un lac je m'étais endormie
Quand soudain, semblant crever le ciel
Et venant de nulle part,
Surgit un aigle noir.

Lentement, les ailes déployées,
Lentement, je le vis tournoyer
Près de moi, dans un bruissement d'ailes,
Comme tombé du ciel
L'oiseau vint se poser.

Il avait les yeux couleur rubis
Et des plumes couleur de la nuit
À son front, brillant de mille feux,
L'oiseau roi couronné
Portait un diamant bleu.

De son bec, il a touché ma joue
Dans ma main, il a glissé son cou
C'est alors que je l'ai reconnu
Surgissant du passé
Il m'était revenu.

Dis l'oiseau, o dis, emmène-moi
Retournons au pays d'autrefois
Comme avant, dans mes rêves d'enfant,
Pour cueillir en tremblant
Des étoiles, des étoiles.

Comme avant, dans mes rêves d'enfant,
Comme avant, sur un nuage blanc,
Comme avant, allumer le soleil,
Être faiseur de pluie
Et faire des merveilles.

L'aigle noir dans un bruissement d'ailes
Prit son vol pour regagner le ciel

Quatre plumes, couleur de la nuit,
Une larme, ou peut-être un rubis
J'avais froid, il ne me restait rien
L'oiseau m'avait laissée
Seule avec mon chagrin

Un beau jour, ou était-ce une nuit
Près d'un lac je m'étais endormie
Quand soudain, semblant crever le ciel,
Et venant de nulle part
Surgit un aigle noir.