domingo, 15 de junho de 2014

Anunciação: estampa de Joaquim Carneiro da Silva?

Embora aprecie muito temas religiosos, tenho sempre uma certa inclinação para comprar gravuras com representações de santos menos conhecidos, como S. Facundo, Sta. Maria Egipíciaca ou S. Brígida. Enfim, atrai-me sempre aquilo que está fora de moda. Mas desta vez não resisti a uma gravura com um dos temas mais representados pelos artistas plásticos nos últimos 500 ou 600 anos, uma Anunciação. Achei o desenho tão delicado e o preço estava tão em conta que resolvi traze-la para casa e guardei-a num envelope, à espera de encontrar uma moldura adequada e um local vago na parede

Há uns tempos, folhei um catálogo de livro antigo da colecção do Museu de Aveiro, editado em 1999 e encontrei ai reproduzida uma estampa praticamente igual à minha. A referida gravura fazia parte de um missal impresso em Antuérpia, pela Tipografia Plantiniana, em 1738.
Missale Romanum ex Decreto Sacrosancti Concilii Tridentini restitutum, S. Pii Pont. Max. jussu editum, et Clementis VIII. primum, nunc denuo Urbani Papae octavi auctoritate recognitum, et novis Missis ex Indulto Apostolico huc usque concessis auctum. Antuerpiae : ex Architypographia Plantiniana, 1738
Estranhei um pouco, pois tinha ideia que a minha estampa era portuguesa, mas também sei o suficiente de arte, para perceber a que a gravura foi o veículo privilegiado de circulação de imagens e era possível que a fonte de inspiração da minha estampa fosse flamenga.

Esta Tipografia Plantiniana, tinha tido início no século XVI com Christophe Plantin (ca. 1520-1589) na cidade flamenga de Antuérpia e os seus descendentes transformaram esta casa num dos negócios mais bem sucedidos da Europa. Nos séculos XVII e XVIII exportavam livros para todo o mundo católico usando um sistema engenhoso de letras de câmbio para evitar o uso de numerário. A Tipografia Plantiniana também era conhecida pelas boas ilustrações, assinadas por artistas famosos na época, nomeadamente Rubens, amigo de um dos netos de Plantin.
Peter Paul Rubens (1577-1640), Annunciation,  c1628, Rubens House (Antuérpia, Bélgica)

Aliás, esta Anunciação, do Missale Romanum, da Tipografia Plantiana tem qualquer coisa da Anunciação de Pieter Paul Rubens, feita em 1628 e que se encontra na Casa-Museu Rubens, precisamente na cidade de Antuérpia. É certo que todas as Anunciações são semelhantes, mas estas duas, nomeadamente o Arcanjo tem muitos pontos de contacto.
Tentei apurar mais algumas informações sobre este assunto e fiz várias pesquisas sucessivas no google, pelas palavras  Anunciação, em português e inglês, combinando-as com os termos Missale romanum, old print e gravura. Acabei por ir ter ao site da Casa de Sarmento, onde encontrei uma estampa igual à minha, identificada como sendo da autoria de Joaquim Carneiro da Silva (1727-1818), de quem aqui já escrevi e que foi um dos mestres da gravura em Portugal nos finais do XVIII, inícios do XIX.
Silva Fecit
De facto no canto inferior esquerdo da minhas estampa, está uma assinatura Silva f., que poderá realmente significar Joaquim Carneiro da Silva, embora Silva seja um nome demasiado comum em Portugal para ficar com certezas. Na descrição da Casa Sarmento, refere que a gravura fez parte de um missal.

A minha estampa é dimensões reduzidas

Procurei então na biblioteca onde trabalho consultar os missais portugueses editados nos finais do XVIII e inícios do século XIX. Neles encontrei várias anunciações assinadas de forma inequívoca por Joaquim Carneiro da Silva, mas muito diferentes da minha estampa, além de que estes missais eram de grandes dimensões, ln-fólios, com 30 ou mais centímetros de altura e a mancha de texto da minha estampa mede apenas 14,5 x 10,5 cm, portanto ela teria que pertencer a um livro dimensões mais pequenas.
O verso da minha estampa prova que ela fez parte de um livro

Como o verso da minha estampa da Anunciação está impresso, o que mostra claramente que fez parte de um livro, lembrei-me de transcrever um trecho e coloca-lo no Google, na esperança de localizar um site onde o livro estivesse digitalizado. E de facto, o google que permite coisas maravilhosas, localizou em 4 ou 5 segundos uma página na net, contendo exactamente o conjunto de palavras pesquisadas post alias vero horas, quanto terminatur officium, dicitur tantum pater noster. secreto".

Breviarium Romanum ex decreto sacro-sancti Concilii Tridentini restitutum, S. Pii V. pontificis max. iussu editum, et Clementis VIII. primum, nunc denuo Urbani PP. VIII. auctoritate recognitum ...: Pars autumnalis. - Antuerpiae: ex architypographia Plantiniana, 1747

Encontrei-as num um breviário digitalizado no google books, uma edição também da Tipografia Pantiniana, de 1747. Os Breviários eram documentos oficiais da Igreja, cujos textos eram definido pelo Papa e portanto o seu conteúdo era igual e de edição para edição. Portanto a minha estampa fez parte não de um Missal, mas sim de um Breviário, mais exactamente do volume Pars autumnalis e antecedia imediatamente o capítulo Proprium de tempore. Aliás, o PRO, no rodapé indica as primeiras letras do capítulo imediatamente a seguir.


Em suma, a minha estampa, será presumivelmente da autoria de Joaquim Carneiro da Silva e foi com toda a certeza publicada num Breviário editado em Portugal nos finais do XVIII, inícios do XIX e inspirou-se numa gravura publicada num missal, em Antuérpia, na Oficina Plantiniana, em 1738, que talvez tenha tido como fonte de inspiração, ainda que longínqua, uma Anunciação de Rubens, de 1628 

10 comentários:

  1. Maravilhosa, Luís.
    Parabéns pela compra.
    Gosto muito desta temática: religiosidade e manifestações artísticas.
    Encantou-me.
    Boa noite!:))

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    1. Cara Ana

      Muito obrigado. Fico contente por ter gostado.

      Um abraço

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  2. Iluminado e luminoso Luis,

    Paz e Saúde verdadeiras,


    Sua formação o ajuda muito em seus achados bibliográficos cheios de histórias e encanto.
    O tema da Encarnação (ainda mais nas gravuras; tão copiadas, como Vc diz) talvez seja o que mais redeu em criações originais e recriações cheias de detalhes curiosíssimos: desde objetos do dia a dia, cenas familiares, bestiário fantástico, OVNIs, a paradoxais crucifixos nas paredes da Casa de Nazaré ou nas toscas paredes da Lapa do Presépio... Se bem que antecipação, ou vinculação, da Paixão à Encarnação não seja contra as Escrituras (a mirra como terceiro presente dos Magos e o famoso trecho de Filipenses: "Esvaziou-se de sua glória... tornando-se mortal e pela morte de cruz...são exemplos dessa vinculação)).
    Mas não gosto de ver o Menino abraçado à Cruz ou repousando junto a uma coroa de espinhos... Um dia desses havia uma linda Sagrada Família num leilão do Rio onde o Menino trazia uma coroa de espinhos (imaginária hispânica), que eu retiraria caso fosse minha.
    A Encarnação fecunda a Arte de um modo alegre e cheio de luz já o outro extremo, a Paixão, por mais que tenha sido pintada, cantada em prosa e verso, e tão bem encenada, até na Sétima Arte, toda dor que mostra é sempre muito real com pouco espaço para um imaginário que quer tomar parte na própria versão apresentada...
    Na sua bela gravura um cesto de costuras, eu penso, esta aí para lembrar-nos de que o que está sendo anunciado e vai acontecer, se a Virgem consentir, se dará em nossa terra, nossa vida.
    Embora seja tão majestosa a Senhora e tão celestial o Mensageiro que traz a Luz do mais alto dos Céus, é na terra e nos corações dos homens que se dará, o quanto permitirem, a arrebatadora presença do Deus Eterno e Onipotente. Um cestinho de costura, neste caso, não é um mero recurso pictórico ou estético...
    Acho que te falei que depois das louças abri-me também às pinturas, gravuras. E penso que seu gosto me impulsionou também. E te agradeço por isso.
    O florão do verso será de que flores? Pensei ter visto frutos e lembrou-me os centros de alguns pratos de faiança antiga.

    Agradeço por suas visitas ao pobrezinho, pelas estimas de melhoras (vou levando) e pelo luminoso comentário levantando a possibilidade daquela pintura em miniatura ser referente à Apresentação de Maria no Templo, tradição apócrifa as de grande simbologia. Na resposta ao seu comentário tentei mostrar que talvez não seja S. Joaquim, nem um anônimo sacerdote do templo, mas um tio-primo, S. Zacarias, que a tem carinhosamente ao colo. Mas prefiro que, em minha miniatura, seja S. Joaquim...

    Um abraço. Muito obrigado.

    Amarildo

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    1. Amarildo

      Imaginei que gostasse deste post. De facto esta Anunciação é uma estampa muito perfeita e quem a fez sabia do seu ofício. Tenho as minhas dúvidas sobre quem a executou realmente. Se foi Joaquim Carneiro da Silva, a acreditar na catalogação da Casa Sarmento, se Domingos José da Silva, que foi seu discípulo.

      Para quem não tem dinheiro para comprar boa pintura, cujo preço é proibitivo, as gravuras são uma boa colecção. Aqui em Portugal, compram-se boas estampas do século XVIII e até do XVII por bons preços.

      Relativamente à iconografia da estampa, tentei encontrar alguma coisa sobre o cesto de costura aos pés de Maria, mas sem sucesso. É um elemento vulgar em muitas anunciações dos séculos XVII, XVIII. Julgo que talvez queira significar que Maria é surpreendida nos seus afazeres domésticos e enfim, como se dizia antigamente, uma mulher honrada nunca deve ter as mãos ociosas. Em todo o caso é um detalhe muito bonito, ao qual dei destaque.

      Já o livro tem um significado especial. Representa a Bíblia, aberta nas Profecias de Isaías.

      O motivo decorativo floral é muito comum no final de cada capítulo dos livros anteriores a 1800. Pode ser um vaso ou um cesto com flores, ou pura e simplesmente como aqui um mero motivo decorativo floral.

      Um abraço

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    1. Margarida

      Muito obrigado. Votos de uma boa semana também para si

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  4. É uma magnífica imagem da Anunciação, com pormenores nem sempre presentes, como a açucena na mão do anjo. O cesto de costura com o pano ali deixado em desalinho e as folhas em cima da banqueta ou caídas no chão, sugerem tarefas interrompidas pela surpresa daquela aparição e tornam a cena muito realista.
    Estes são elementos que também se encontram na Anunciação do Breviário do Museu de Aveiro, realmente muito semelhante a esta e certamente próxima no tempo.
    Fui rever as gravuras dessa publicação, sobre o Livro Antigo do acervo do Museu de Aveiro, com as belas ilustrações dos livros do séc. XVIII, cheias de movimento e de pormenores que vale a pena explorar.
    Adoro estes livros e estas imagens! Até os pequenos ornatos e vinhetas que delimitam capítulos!
    Espero que continue a partilhar aqui os exemplares que vai descobrindo.
    Bjos

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  5. Maria Andrade

    No geral, acho a qualidade desta gravura portuguesa superior à da Oficina Plantiniana, o que prova que muitas vezes as cópias são superiores aos originais.

    Os pequenos pormenores são deliciosos como o ramo de açucenas, o cesto de costura ou pápeis espalhados ao caso, mostrando como a Virgem foi surpreendida pela aparição do Arcanjo.

    Quanto à vinheita achei-a também uma delícia, tanto que resolvi terminar o post com ela, recriando o hábito que os impressores tinham de marcar o encerramento de um capítulo com estes motivos decorativos.

    Bjos

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  6. Esta representação de objetos do quotidiano nas representações religiosas não são simplesmente icónicos, mas carregados de simbolismo, assim como a flor da açucena, que aqui também lhe é associada.
    Este cesto de costura é um dos objetos que aparece muitas vezes juntamente com a virgem, pois representa o labor da virgem.
    Zurbarán representa-o, com este significado, numa quantidade de quadros, cada um o mais belo: uma "Anunciação", que se encontra em Grenoble, um "Nascimento da Virgem" em Pasadena, uma "Casa de Nazareth" de Cleveland e, finalmente, uma "Virgem em Êxtase", no Metropolitan Museum of Art, de Nova Iorque.
    Esta estampa está executada com um primor típico do século XVIII. Absolutamente fantástica.
    E é realmente interessante verificar como diferem uma estampa do século XVIII doutra do século XIX. Transparece imediatamente, até na própria qualidade dos traçados feitos pelos diversos instrumentos da profissão, como berceaux, buris ou brunidores, para só citar alguns, nomes que aprendi há alguns anos, quando estudei algo sobre estas técnicas.
    É difícil não perceber a olho nu a diferença de ambas, quando se começa a adquiri-las e, por conseguinte, prestar-lhes mais atenção.
    Manel

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    1. Manel

      Esta gravura foi executada com um grande virtuosismo.

      Tentei encontrar no Louis Réau o significado do cestinho na iconografia da Anunciação, que surfe em muitas pinturas do XVII e do XVIII. Mas o Reaud centra-se em períodos mais antigos ao da produção desta estampa. No entanto, refere que nas Anunciações bizantinas era vulgar a Virgem encontrar-se a fiar. Julgo que aqui o cesto de costura terá um significado semelhante. A Virgem é uma jovem ajuizada que ocupa o seu tempo costurando o seu enxoval.

      Um abraço

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