Quem se dedica a comprar ou a admirar a faiança portuguesa dos século XIX e boa parte do século XX, já se apercebeu que a maioria das peças não estão marcadas e que as atribuições a esta ou aquela fábrica, ou até mesmo a um centro regional de fabrico são sempre um tiro no escuro.
A Ivete Ferreira, especialista em faiança ratinha e com a experiência acumulada de muitos anos no contacto com a cerâmica, escreveu há pouco tempo no seu blog, que só se pode fazer uma atribuição indiscutida se as peças tiverem a marca bem estampada e evidente. Por maior que sejam as nossas inclinações e (in)certezas (pasta, vidrado, paleta cromática, ornamentação, formato ...) as filiações são difíceis.
Julgo que este é um bom princípio a tomar quando começamos a tentar saber mais sobre as faianças que comprámos. Claro, isto não quer dizer que devemos desistir de identificar as peças que coleccionamos e que devemos pendura-las na parede, esquecer completamente a sua existência, até ao infeliz momento em que teremos de lhes limpar o pó. Pelo contrário um dos interesses de coleccionar ou adquirir velharias é precisamente acrescentar o nosso conhecimento, procurando informações em livros da especialidade, ou visitando museus.
Hoje apresento aqui um conjunto de duas chávenas e um pires em faiança, com os quais tentarei fazer algumas associações em termos de formas e decoração com outras peças já aqui apresentadas, mas sem a pretensão de tirar conclusões.
As duas chávenas lado a lado numa evocação do blog, arte, livros e velharias |
As três peças foram compradas na Feira de Estremoz pelo Manel, que teve a gentileza de me oferecer a chávena sem o pires. A primeira associação possível destas três peças é com uma chávena de faiança atribuída a SantoAntónio de Vale da Piedade, que já aqui mostrei.
Embora a decoração seja diferente, o molde a partir do qual estas chávenas foram executadas deve ter sido muito semelhante. Há apenas pequenas diferenças entre elas. No tardoz, no espaço delimitado pelo frete, a chávena em tons de azul é lisa, enquanto a chávena de chávena de Santo António de Vale da Piedade, tem uma saliência em formato de conezinho. Na chávena pintada com o casario o recipiente é menor que a xícara de Santo António de Vale da Piedade. Mas em todo caso, ambas saíram de um molde semelhante.
A segunda associação possível é com uma caneca proveniente da antiga colecção António Capucho. Quando fotografei as xícaras com a caneca e depois as vi no computador, não pude deixar de me surpreender com o ar de família tão evidente nas cores alegres, no vidrado e na decoração com que surgiam na fotografia, e pensei que todas elas teriam saído da mesma fábrica. Porém, é mais possível que correspondam a um gosto do público por louça de cores vivas, que todos os fabricantes do Porto e Gaia procuravam ir ao encontro, em meados do século XIX.
Depois olhando bem para esta simpática xícara, reconhecemos de imediato alguns elementos decorativos, as folhas das árvores e a mancha do chão, que são obviamente copiados do motivo país, da Fábrica de Miragaia.
Quanto ao casario, não vale a pena especular sobre ele. São as casinhas que todos nós desenhávamos na infância e que ainda hoje somos capazes de desenhar numa folhinha qualquer, enquanto atendemos no serviço a chamada de algum maçador, e que estão presentes em quase toda a faiança portuguesa mais ingénua.
Obviamente não posso concluir nada sobre o possível fabricante destas chávenas. Serão talvez de uma daquelas muitas fábricas do Porto e Gaia, quase vizinhas umas das outras, em que havia entre elas uma intensa troca de moldes, decorações, operários e mestres até patrões. Terão sido produzidas numa época, talvez à volta de meados do século XIX, um pouco antes, um pouco depois, em que estava na moda esta louça muito colorida.
É bem verdade que quando colocas as peças umas ao lado das outras, têm um ar de família que impressiona.
ResponderEliminarNão me tinha lembrado de o fazer.
Claro que será muito difícil estabelecer o parentesco, mas o ar de família está lá.
Quanto ao formato é afim, não sendo exatamente o mesmo.
No entanto fico extasiado por estas peças.
Aguentaram uma manhã toda na feira sem que ninguém lhes colocasse a mão em cima, e ainda bem para mim.
E o preço destas peças foi muito acessível, por isso, ainda não entendo porque não foram vendidas, tanto mais que sei que em Estremoz há muitos entendidos e amantes de faiança, e coleções particulares absolutamente fabulosas, cheia dos grandes exemplares das grandes fábricas míticas de antanho, nada destas peças comezinhas que tenho.
Por isso posso dar-me por muito feliz por ter conseguido adquirir este pratinho e as duas chávenas.
E gostei muito do teu texto, pois, apesar de não sabermos mais nada sobre estas peças, faz-nos sonhar com outros tempos
Manel
Manel
EliminarEste conjunto de chávenas foi um verdadeiro achado, um golpe de sorte.
Com efeito existe um ar de família entre estas chávenas, a caneca, e a xícara, esta última atribuída a Santo António de Vale da Piedade.
As fotografias evidenciam esse ar de família, mas não nos permitem concluir grande coisa, apenas o que aquilo que fomos lendo acerca destas fábricas do Porto e Gaia, vizinhas umas das outras em que os patrões estavam ligados por laços de família e existia entre elas uma troca de operários e mestres. Por outro lado, todas elas procuravam corresponder aos mesmos gostos dos consumidores. Enfim, talvez essas associações de imagens nos permitam chegar mais tarde a conclusões, quando descobrirmos peças iguais marcadas ou forem revelados mais achados arqueológicos.
Um abraço
Luis e Manel,
ResponderEliminarVocês sempre a nos fazer inveja. Ainda que inofensiva inveja...
Essas louças decoradas, como você disse, Luis, com desenhos de nossa infância, são tão simples quanto belas.
Nós aqui temos também algumas louças de decoração ingênua mas normalmente estanholas dos meados do XX em diante.
As peças da cerâmica São Caetano, se não fossem marcadas, passariam por portuguesas.
Mas louça decorada à mão livre é rara por aqui: Luis Salvador e uma ou outra sem marca alguma.
Houve um primórdio de uma produção de peças em cerâmica pesada com . O Fábio já até fez uma boa postagem sobre esta louça; acho que chamada "saramenha"...
As comparações que fez têm seu sentido. É claro que basta serem xícaras para terem semelhanças. Mas o tal ar de família existe mesmo. E é legal buscar saber o máximo sobre uma peça colecionada. E embora seja precipitado fazer afirmações de paternidade, nada custa dizer que esta ou aquela peça tem a cara de fulano e sicrano...
De xícara em xícara vai formando um serviço inteiro...
Um abraço.
ab
PS. depois você apaga o borrado.
Amarildo
EliminarA inveja poderá até ser um sentimento positivo se for transformada em admiração. E todos nós gostamos de admirar coisas belas e até desejar ter coisas iguais. Se assim não fosse, as lojas dos museus não estariam cheias de reproduções de obras de arte.
As peças muito ingénuas assemelham-se sempre de alguma forma. São representações do que há de mais autêntico na natureza humana.
Um abraço
Caros Luís e Manel,
ResponderEliminarEstou apaixonada!
Essas peças são um mimo!
Na minha modestíssima colecção, não tenho um único exemplar que se lhes assemelhe...
No entanto,no quintal da minha casa do Sardoal, e sempre que faço alguma jardinagem, surgem caquinhos muito idênticos. Antigamente, e a casa em questão está na família há 114 anos, havia o hábito de deitar para o fundo das propriedades as loiças que se partiam..vai daí, de quando em vez surgem os pedacinhos. Aliás, ainda não vai há muito que por lá encontrei um fundo de bacia inteirinho!
Quanto à sua origem, não há dúvidas de que elas transpiram Norte!!
Como não sou expert, nada mais posso afirmar,a não ser a sua beleza.
Um abraço a ambos, e parabéns por esse achado!!
Alexandra Roldão
Alexandra
EliminarÉ curioso que na casa da família da minha mãe, uma coisa construída em 1934 ao gosto do Raul Lino, encontro também no terreno muita cacaria, normalmente restos de louça com o motivo cavalinho de Sacavém ou Massarelos. Eu bem tento encontrar restos de algum prato Miragaia, mas ainda nada. O terreno também é lavrado todos os anos e os cacos são muito pequenos.
Estou também convencido que estas peças são todas do Porto ou Gaia, mas não me atrevo a arriscar palpites sobre as fábricas.
bjos
Meus caros amigos,
ResponderEliminarSabem que eu andei uns tempos a namorar uma chávena e pires igual a estas... com o rótulo de Miragaia?
Até podem ser, eu também diria que não nasceram longe dessa zona, mas neste caso o que me atraiu mais foi a beleza das peças. Só que, com o preço exorbitante que me pediram, claro que deixei ficar...
Há pessoas nas feiras que têm muitas certezas, geralmente infundadas, mas todas as considerações que o Luís tece no início do texto são a linha que tem norteado este grupo, a mais certa e segura na abordagem de faianças não marcadas. Havia realmente um gosto de época, uma inflência comum vinda da loiça inglesa, a tal "promiscuidade" entre fábricas, daí haver tantas semelhanças.
As imagens ficaram de novo muito boas e até tirou aquela foto das duas meninas que lhe lembrou as parelhas que eu às vezes faço... :) Ficam muito bem juntas, mas o molde, apesar de semelhante, não foi o mesmo, por isso não devem ter saído da mesma fábrica.
As fotos de conjunto ficaram lindas!
Parabéns aos dois e bom fim de semana.
Bjs.
Maria Andrade
EliminarMas as chávenas que viu estavam mesmo marcadas como Miragaia ou eram vendidas como tal?
Com efeito, o motivo País serviu de inspiração longínqua a estas chávenas, mas como todos aqui afirmámos é sempre complicado fazer atribuições. Teremos que esperar pacientemente por mais escavações arqueológicas.
A fotografia do par não foi intencional. normalmente tiro sempre muitas fotografias em vários pontos da casa e depois no computador escolho as melhores e apago a maioria. Quando vi esta achei-lhe tanta graça, pois parecia uma imagem, que servia na perfeição ao título do seu blog, o arte, livros e velharias, daí a surgiu a legenda.
As certezas nas feiras de velharias e nos sites de venda on-line são por vezes tão caricatas, que a coisa rapidamente descamba para a gargalhada. Há uns tempos a Maria Paula mandou-me um link de um site de vendas espanhol, onde estava um portuguesíssimo pratinho cantão popular atribuído a Manices!!!
Também recentemente, na Feira de Estremoz, peguei numa travessinha cantão popular, uma coisa bonita, mas já do século XX e perguntei o preço. O vendedor atirou com uma enormidade de preço e depois interrogou-me sobre se eu sabia o que era aquela peça, com um ar de desprezo. Fiz-me de sonso e disse-lhe que não fazia a menor ideia. Então o senhor respondeu-me com o ar mais doutoral do mundo "Companhia das Índias!!!!!"
Bjos
Não, Luis, nem a chávena nem o pires estavam marcados, mas alguém lá pôs um papelinho a dizer Miragaia...
EliminarÉ isso, quando os vendedores querem subir a parada, atiram com Miragaia para as faianças e com Companhia das Índias para as porcelanas e às vezes nem porcelana é...
Realmente aquela foto ficava muito bem no meu blogue! ;)
Luís
ResponderEliminarParabéns ao Manel pela aquisição e ao Luís pela oferta que recebeu. Postas lado a lado compõem um conjunto harmonioso.
As chávenas são elegantes e muito bonitas. Tinha ideia de ter visto uma, muito semelhante no formato e decoração, mas diferente nas cores. Após uma busca pelos alfarrábios, deparei com ela num catálogo da Cabral de Moncada, de 2013.: nele está atribuída a Miragaia. a cor que predomina é o manganés, com uns laivos de azul. Quase de certeza podemos apontar para fabrico do Norte, mas fábrica é prematuro indicar nomes.
Mais uma vez parabéns.
if
Cara Ivete
EliminarChego a pensar que nos catálogos de leilões, nos sites venda online, nos antiquários e nas feiras de velharias, "Miragaia" tornou-se um sinónimo de faiança produzida no Porto ou Gaia. Quando se suspeita que a peça é do Norte e do século XIX, atira-se com a catalogação Miragaia. Realmente Miragaia parece ter-se tornado quase um nome mítico, não sei resultante do prestígio que a fábrica realmente teve ao seu tempo, ou se fruto de um hábito que por qualquer razão estranha se entranhou entre os vendedores.
A chávenazinha de que me enviou cópia é de facto muito parecida com esta e vou ver se a encaixo no blog.
Um abraço
Peço desculpa ao Luís por irromper de novo no blog.
ResponderEliminarPela minha parte não quero deixar de agradecer a simpatia dos comentadores e as suas agradáveis palavras.
Na verdade não é todos os dias que se consegue encontrar peças interessantes, e mais importante que tudo, ao preço da nossa bolsa; quando sucede, fica-se como que entorpecido e, até algo de "pé atrás", pois, de imediato, uma pessoa pergunta-se logo se por acaso não serão falsificações que ali estão à venda - afinal de contas não se trata de um local onde se pode estar mais confiante em relação à origem das peças.
Infelizmente, neste momento, talvez porque deram conta que vou adquirindo quase sempre cerâmica, e porque falo pouco e, quase nada sobre as possíveis origens das peças que vejo à venda, alguns vendedores, sabe-se lá porquê, porque tenho a consciência de nunca ter feito nada nesse sentido, convenceram-se que devo ser algum conhecedor de cerâmica - os "ceramólogos das feiras", como os denomino - e solicitam-me informação sobre isto ou aquilo ... desgraçadamente, pois 99% das vezes não sei o suficiente, posso ter algumas ideias, baseadas no que vi antes, mas são só minhas, para "consumo interno", o que não é suficiente para dar palpites sobre o que quer que seja - qualquer palpite destes passa a ser, para um vendedor, certeza absoluta!!!
Por conseguinte, e por norma, digo sempre a mesma coisa ... "pode ser tanta coisa, pois uma peça sem marca pode ser tudo!", porque é verdade!
O efeito é sempre contrário ao que pretendia, pois os vendedores julgam que sei e que, por qualquer "esperteza saloia", não quero partilhar.
Quantas vezes adquiro uma peça só pela beleza que acho nela, sem qualquer preocupação de ser daqui ou dali.
O meu sentido estético é preponderante nestes momentos, independente de saber, ou não, a origem da peça, apesar de, por vezes ter as minhas suspeitas; não obstante, não considero correto partilhá-las numa feira, porquanto posso induzir em erro uma quantidade de pessoas.
Manel
Luís,
ResponderEliminarA chávena é linda. Aliás as três peças são lindas.
O que dá prazer é ler as suas associações e as conclusões possíveis.
Bom Domingo!:))
Ana
EliminarMuito obrigado!!!
Um abraço bom começo de semana
Que maravilha! Que belo achado! Parabéns
ResponderEliminarAna Margarida
EliminarMuito obrigado pelo seu comentário. Um abraço