terça-feira, 8 de março de 2016

Azulejos da Sé de Beja: um jogo de cartas divino


Há quem ache a arte sacra aborrecida e macabra, uma coisa vinda de um tempo obscuro, quando o ser humano encontrava as explicações para os fenómenos da natureza em Deus e procurava ardentemente a protecção dos santos e da Virgem contra a morte, que espreitava em cada esquina, muito mais que no mundo de hoje, onde a esperança de vida é altíssima.

Naturalmente que entendo este ponto de vista. Também recebi uma educação religiosa, com catequese, aulas de moral e religião no Liceu, com missas obrigatórias ao Domingo e confesso que também me senti oprimido por aquele esquema de recompensas, castigos, remorsos e absolvições e no qual cedo pressenti uma pontinha de hipocrisia.

No entanto, há que reconhecer que uma boa parte das obras da arte ocidental são de temática cristã e que por vezes apesar da seriedade do tema, acabam por ser muitíssimo divertidas, como por exemplo este painel de azulejos da Sé de Beja, que mostra uma santa entretida num animado jogo de cartas com o Menino Jesus. Confesso que fiquei logo encantado com esta representação tão insólita e procurei aqui e ali algumas informações, para saber quem era esta Santa apreciadora dos jogos de azar, ainda que tidos com uma pessoa tão insuspeita, como o Menino Jesus.

Conforme li no site monumentos.pt o interior da Sé de Beja foi interiormente todo refeito nos anos 30 e 40 do século XX, aquando da adaptação da antiga igreja paroquial de Santiago a Catedral. A maioria da azulejaria desta igreja proveio de conventos, igrejas e palácios lisboetas. Segundo o mesmo site vieram do Convento das Mónicas 11 mil azulejos com cenas da vida de Cristo e Nossa Senhora e ainda 12 mil azulejos vindos de Lisboa sem especificar a sua proveniência. Em suma, este painel de azulejos com esta santa em animada jogatana com menino Jesus não se encontrava originalmente na Sé de Beja e o site monumentos.pt nem sequer o menciona.
Santa Rosa de Lima. A imagem clássica com a coroa de rosas, por Carlo Dolci
Resolvi continuar as minhas buscas através da iconografia e procurei santas que usassem coroas de rosas e o mesmo hábito, que enverga a figura do painel. Embora haja umas quantas santas que sejam representadas com coroas de rosas, por causa do hábito de dominicana, acabei por me convencer que é mais provável tratar-se de Santa Rosa de Lima (1586-1617), uma mística peruana, constantemente visitada pela Virgem Maria e pelo Menino Jesus. Até porque realmente encontrei uma tela do século XVIII, no Museu de Osma, em Lima, mostrando Rosa de Lima jogando dados com Jesus.

Mas porque razão se mostra uma santa da Igreja Católica, uma virgem mística em práticas tão profanas, como um jogos de cartas ou dados?

Encontrei a resposta num texto muito bom, intitulado Rosa limensis, de Ramón Mujica Puntilla e que está acessível na net em http://books.openedition.org/cemca/2317 e cuja explicação passarei a descrever de forma resumida.
 Santa Teresa de Ávila. Gravura de I. Palomino. Em Obras de Santa Teresa, t. 11, Madrid, 1752.

No renascimento e no início do período barroco, generaliza-se o conceito que Deus é um caçador divino, que fere a alma, para mante-la cativa. Por influência da literatura e da também da imaginária pagã, esse caçador divino é identificado com Eros ou o Cupido, com as suas setas que produzem feridas de amor. Temos assim Meninos Jesus rechonchudos e brincalhões, que realizam deliciosos jogos de diversão ou de azar com vários significados morais. Estes Meninos Jesus disparam setas, fazem bolas de sabão, correm atrás de um arco ou jogam as cartas. São metáforas com um conteúdo nítidamente pagão e que apesar da sua natureza lúdica, serão incorporados nos repertórios visionários de Santa Teresa de Ávila ou de Santa Rosa de Lima.
Santo António de Lisboa jogando cartas com o Menino Jesus. Santuário de Quinta Angustia de Cacabelos, província de Leão
Neste caso e a interpretação é minha, este jogo de cartas, tem um significado moral. Santa Rosa de Lima, perde a partida em favor do Menino Jesus, entregando-lhe a sua vida no mundo, mas ganha o amor divino em troca. Aliás, em Espanha, no santuário de Quinta Angustia de Cacabelos, província de Leão há um painel em madeira com uma representação de significado moral próximo, em que Santo António de Lisboa ou de Pádua joga às cartas com o Menino Jesus. Enquanto o Menino Jesus recebe do santo um quarto de copas, símbolo do mundano, entrega ao santo um cinco de Ouros, símbolo de renúncia aos bens terrenos.

Este painel de azulejos só prova que a arte sacra, sobretudo a do período barroco é por vezes muitíssimo divertida.

16 comentários:

  1. A peça é belíssima, e a tua interpretação é curiosa e credível.
    Só neste tipo de troca espiritual se poderia explicar esta atividade de jogo profano que envolvem personagens deste teor.

    Também tive uma educação religiosa, basta que tivesse frequentado um estabelecimento de ensino dirigido por gente ligada à religião, católica, mas ainda que assim não fosse, em todas as escolas era lecionada a disciplina de "Moral e Religião" (tratava-se, claro, da vertente católica romana), decisão saída das convenções estabelecidas entre o Estado Português e a Santa Sé.
    Até havia livro oficialmente adotado e tudo (como aliás, existiam em todas as outras disciplinas que fui tendo ao longo do meu percurso escolar), com todos os ensinamentos que qualquer cristão romano necessitaria de saber para ser um bom elemento da comunidade católica.
    Cheguei mesmo a servir de sacristão por uma ou duas vezes no colégio onde andava, até que os meus pais, sabendo-o, acharam melhor acabar com todo este anacronismo, pouco digno de um filho de duas pessoas que nem sequer professavam a religião associada ao poder político - a minha mãe pertencia a uma seita protestante, anti católica, e o meu pai, que eu soubesse, era mesmo agnóstico, indiferente a qualquer culto, fosse ele qual fosse.
    E eu, que não sabia bem onde me posicionar, e porque me deixaram à vontade para escolher aquilo que quisesse, decidi que não há religiões certas, pois são feitas por homens e para homens. Para isso faço eu a minha mesma e assim, passei a ter as minhas crenças, práticas e preceitos, feitas de retalhos que me parecem fazer sentido.

    Só mais tarde reconheci a arte religiosa católica como crucial para a história da arte ocidental, no entanto tenho algum cuidado quanto ao deixá-la influenciar alguns campos do meu gosto. Prefiro admirar esta arte através da estética e como foi fundamental na formação de toda a arte tal como a concebemos no ocidente.

    No terceiro parágrafo tens um pequeno engano, quando referes que este painel está na Sé de Évora. Devias ter colocado Beja.

    Já me alonguei
    Manel

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    1. Manel

      Obrigado pelo teu comentário.

      Este conceito que Deus é um caçador divino, que fere a alma e a associação entre Cupido e o Menino Jesus, relaciona-se também com os excessos do culto ao Menino Jesus, que se praticava nos conventos, em que as religiosas confecionavam enxovais completos para os meninos e encomendavam cadeiras e camas aos melhores entalhadores para as imagens. Por essas razões, creio que painel de azulejos terá estado talvez num convento feminino e faria as delícias das irmãs, que ambicionariam que o Menino Jesus as ferisse com as suas setas de amor divino ou jogasse uma partida de amorosa com elas.

      Embora não tenha crença, agradeço à minha educação católica uma certa espiritualidade e alguns princípios éticos, como o perdão ou uma certa necessidade de se distinguir o bem e o mal, por mais discutível que isso pareça.

      Um abraço

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  2. Caro Luís
    Depois dos seus dois últimos posts sobre azulejaria, os leitores mais atentos passarão, sem dúvida, a olhar com outra atenção para as particularidades destes painéis historiados carregadas de simbolismo e informação.Eu confesso que perante estes painéis de cenas religiosas, me perco na observação do todo. Por vezes fixo-me nas representações das cenas do quotidiano, que acho muito interessantes do ponto de vista informativo, mas nada mais.
    Gostei muito de ler o que escreveu sobre Santa Rosa de Lima, que desconhecia, bem como a interpretação que faz do painel que nos mostra. Abençoada insónia, a que tive. Deu-me um tempinho extra para o poder ler como merece.
    Bjs e bom fim de semana que já nos vai acenando.

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    1. Maria Paula

      Concordo consigo. Por vezes quando vemos grandes conjuntos azuleares tendemos a ficar de respiração suspensa, sem saber muito bem para onde concentrar olhar. Aliás o objectivo de quem concebia estas igrejas dos séculos XVII e XVIII era precisamente o de deixar o crente maravilhado, de boca aberta, como se acabado de tivesse franquear as portas para um mundo quase divino.

      Mas, passado, esse momento, a azulejaria está cheia de pormenores deliciosos, quer decorativos, quer iconográficos. Eu encantei-me desde logo com esta cena de jogatana, que pensei de imediato que dava um belo post.

      Bjos e muito obrigado

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  3. Luis,

    Olá.

    Ando tão sumido que alguns, de alguma lembrança, podem até pensar que já segui de Viajem... Mas pelo que sei fantasmas não digitam mais que 3 palavras.
    Não queria me manifestar ainda, sem o post dos pratos e de algumas outras coisas de que tanto gosto que acabam chegando. Mas não resisti ao inusitado deste sei post sobre o Jogo de Cartas entre Nosso Senhor e uma incógnita Santa.
    Olha, em Arte Sacra já vi muita coisa surpreendente. Coisas que desafiam a História, a Física, o Tempo, os Bons Costumes, a Lógica ... e a própria Teologia à qual, de algum maneira, pretende servir. Mas tenho que admitir que fui surpreendido. Seja pelo baralho do azulejo ou da talha, como pelos dados do quadro...
    E, como as Escrituras, que também apresentam todas estas surpresas, contradições e muitas outras e, por isto mesmo, carecem de uma coerente e forte exegese, assim se dá na deliciosa e tão fecunda Arte Sacra. E Você se saiu muito bem em sua exegese. Também como a M. Paula apreciei a leitura que fez sobre S. Rosa. E embora outras iconografias de santas mulheres apresentem esta coroa de rosas, no caso de Rosa de Lima ela é praticamente um atributo.
    Realmente esta arte nada tem de enfadonha assim como seus posts.
    Um abraço para Você e seus muitos leitores, dentre os quais o atento e querido Manel.

    ab

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    1. Amarildo

      Realmente já andávamos preocupados consigo. Fico feliz por saber que não me está a comentar na categoria de alma do outro mundo.

      Este pequeno mistério que representava uma santa a jogar cartas com o Menino Jesus, faz parte do encanto da arte. Descodificar uma imagem que no passado era perfeitamente legível para todos e que hoje caiu no esquecimento é fascinante. Por exemplo, quando estamos a ver um filme de suspense e vemos a protagonista a ir para o banho, já sabemos que coisa vai correr mal, pois todos nós já vimos o Psycho do Hitchcock. Mas daqui a 100 ou duzentos anos, quando os filmes do Hitchcock tiverem caído no esquecimento, muitos terão já dificuldade em identificar a cena do duche, como um momento de perigo.

      Levei algum tempo a identificar a Santa representada e fiz mesmo uma listinha de todas aquelas que usaram coroas de rosas para pesquisar em várias direcções, mas acabei por chegar a Santa Rosa de Lima como a mais provável. Fiquei com pena de não ter conseguido localizar a gravura que estive na origem do painel de azulejos.

      Um abraço

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    2. Quero agradecer ao Amarildo a sua saudação e reenviar-lhe os desejos de boa saúde e de muitos posts mais.
      Um bem-haja
      Manel

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  4. Luís,
    Achei estes azulejos de Beja um assombro! A cena fez-me lembrar um painel de fabrico coimbrão da Igreja da Anobra, Condeixa, que ao representar o nascimento da virgem, apresenta pormenores deliciosos do interior do quarto, mostrando objetos do quotidiano de uma família normal. Mas haverá muitos outros com pormenores interessantes e reveladores, basta estarmos mais atentos aos pormenores! Só a partir da minha descoberta da azulejaria coimbrã do séc. XVIII fiquei mais atenta às cenas representadas e há séries de painéis em Coimbra e sua área de influência com muita informação da época, para além das representações religiosas...
    Eu nunca tinha visto cenas do Menino Jesus e dos santos a jogar cartas ou outros jogos, por isso este poste surpreendeu-me e deliciou-me! E gostei de saber o que resultou da sua pesquisa sobre Santa Rosa de Lima, que eu também desconhecia.
    Enfim, mais um poste muito bem conseguido e interessante a partir de um belo exemplar desta arte secular tão bela e tão nossa!
    Beijos

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    1. Maria Andrade

      Se à medida que envelhecemos ficamos cheios de maleitas, que custam cada vez mais a curar, ao mesmo tempo tornamo-nos muito mais atentos à arte e aos pormenores de uma Igreja, de uma pintura, de um painel de azulejos ou de uma escultura. Se há vinte anos visitasse a Sé de Beja, estaria praticamente só com os sentidos em alerta para escultura religiosa e ficaria apenas com uma impressão geral dos azulejos. Mas com a idade, de facto ganhamos uma forma mais cuidadosa de olhar a arte. Além de tudo mais, o património azulejar de Beja é de uma riqueza tal que estes dois posts sobre os azulejos da cidade são apenas pequenos apontamentos, nos quais partilhei o meu encantamento com o que vi nesta cidade.

      Bjos

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    2. Maria Andrade

      Parece que aqui em Beja o sagrado se mistura com o profano, pois aqui na Sé temos uma monja dominicana a jogar cartas com o Menino Jesus e logo ali ao lado, viveu a Soror Mariana de Alcoforado, que matava o seu tempo a escrever cartas de amor ao cavaleiro francês. Enfim, tudo isto acaba por ser extremamente interessante e ao mesmo tempo divertido.

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  5. Ótima esta cena das cartas e todas as que colocam os santos a fazerem coisas comuns, de seres humanos comuns no seu dia a dia. Me lembrei das cenas de Sant'Ana e de São Joaquim na labuta com filha Maria, fazendo coisas tão habituais. Nunca vi por aí, santo ou santa jogando cartas...mas carrega muita simbologia isso, do mau, do bem. A talha de Santo Antônio é bem isso.
    Santa Rosa de Lima é bem cultuada aqui, tem igrejas, mas nunca me liguei muito na iconografia, não tem uma coisa assim, especial.
    Adorei a postagem, já tinha visto há bastante tempo, mas queria comentar.
    Tudo de bom pra vc e muitas novidades a mais aqui no seu blog.
    E Feliz Páscoa, Luís!

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    1. Caro Jorge

      Já estranhava a sua ausência, pois sei que gosta de arte sacra. O culto de Santa Rosa de Lima atravessou o Atlântico e no passado era também popular em Portugal e Espanha, aliás como prova este painel de azulejos. A sua vida serviria de exemplo para todas estas mulheres encerradas a vida inteira num convento e para as quais lhes restava suspirar pelas atenções do menino Jesus.

      Uma boa Páscoa para si e um abraço de Lisboa

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  6. Oi, Luís, mas eu entro sempre aqui para "apreciar" sua vitrine de variedades. Já vi as caixinhas de vidro pelas quais vc perdeu, com razão, a cabeça. São lindas e eu n conhecia assim tão chiques em vidro bisotado.
    Sim, mas eu queria te fazer uma pergunta: será que Yma Sumac, a soprano peruana, era devota de Santa Rosa de Lima??? Será que ela rezava pra santa antes de entrar em cena? Será que pedia:" minha santinha, faça com que eu dê um grito tão agudo que estremeça o teatro...e não me desampare na hora dos graves!"
    KKKK brincadeirinhas, Luís. Com sabor peruano.
    Abraços.

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    1. Jorge

      Não faço a menor odeia se Yma Sumac era crente. Mas uma devoção a Rosa de Lima assentaria bem com aquela cantora de voz absolutamente lendária.

      Um abraço

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  7. Luís,
    Mais uma pérola que aqui colocou. Aprecio arte sacra pela beleza e simbologia.
    Este painel da Sé de Beja é um assombro. Toda esta troca do jogo e da entrega ao amor divino fez-me lembrar a escultura de Bernini, imbatível, nesta entrega de amor divino: o êxtase de Santa Teresa de Ávila.
    Graças.:))

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    1. A comparação com a escultura de Bernini é muito interessante. Aliás, há uma representação escultórica da morte de Santa Rosa de Lima de Melchiorre Cafà, com óbvios pontos de contacto com a obra do Bernini.

      B jos

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