quinta-feira, 16 de novembro de 2017

O dardo do amor divino: registo de meados do século XIX representando Santa Teresa de Ávila


Sempre tive um certo fascínio por Santa Teresa de Jesus, essa mística espanhola do século XVI, fundadora da Ordem das Carmelitas Descalças. Não só pelas suas qualidades intelectuais, mas também pelas representações que dela se fizeram na arte, nomeadamente o seu êxtase místico, que é profundamente erótico.

Por isso quanto encontrei este registo representando a Transverberação de Santa Teresa de Ávila, preciosamente encaixilhado com restos de tecidos ricos, comprei-o sem hesitar. Decididamente, faltava uma Santa Teresa na corte de santos que decoram as paredes da minha casa.

Procurei saber mais alguma coisa sobre esta estampa, que só apresenta uma simples legenda identificando a Santa e uma frase em latim Divini amoris cuspide/ In vulnus icta concides. A restante legenda foi tapada pela senhora ou menina prendada que executou a preciosa moldura.
Parte da legenda foi tapada pela senhora ou menina prendada que executou a preciosa moldura

Através de uma pesquisa por imagens e encontrei uma estampa igual a esta no site da Casa Martins Sarmento, que tem o resto da legenda, que o caixilho da minha estampa esconde. Nela, indica-se que é dedicada A' MUITO RD.A MADRE/ Maria Gertrudes de S. Ignez/ RELIGIOSA CARMELITA EM S. TERESA/ DE CARNIDE/ F. Jose da Pureza Religioso da mesma ordem. Também na gravura indica-se o nome do gravador, um tal C. Acquisti, elemento que falta na minha gravura.
A Sociedade Martins Sarmento tem uma estampa igual à minha, mas com a legenda completa

Santa Teresa de Carnide foi um convento de Carmelitas descalças fundado no século XVII e cuja existência se prolongou até 1891, ano da morte da última religiosa, em que fechou as suas portas. O edifício ainda hoje existe no bairro com o mesmo nome e é propriedade da Confraria de Santo Vicente de Paula e serve de lar para terceira idade e igualmente de creche. 

Esta Madre Maria Gertrudes de Santa Inês a quem a estampa é dedicada viveu na primeira metade do século XIX e era em 1847 prioresa do convento de Santa Teresa de Carnide, segundo se refere na obra Convento Santa Teresa de Jesus de Carnide: o falar das pedras / coord. Augusto Moutinho - Lisboa : Confraria de São Vicente de Paulo, 2016

Frei José da Pureza é também mencionado nessa obra, como membro dos Carmelitas e que em 1845 conseguiu que o Papa oferecesse ao Convento de Carnide o corpo inteiro da virgem Mártir de Santa Ágata, o qual chegou ao Convento em Setembro. Na Grande enciclopédia portuguesa e brasileira, Frei José da Pureza consta como alguém ligado ao mundo editorial, que organizou e reviu a edição do 1860 do missal romano, considerada a melhor de todas as edições feita pela imprensa Nacional. 
Estampa de C. Acquisti da colecção da Biblioteca Nacional de Espanha

Quanto ao gravador da estampa, o tal C. Acquisti não há muitos dados sobre ele. Encontrei uma estampa da sua autoria no catálogo da Biblioteca Nacional de Espanha, representando os Mártires de Tonkin, com a legenda em espanhol e impressa com caracteres tipográficos semelhantes aos da estampa de Santa Teresa de Jesus. No Arqueólogo Português, Vol. XIV, 1909 Ernesto Soares refere que terá sido talvez um italiano que trabalhou em Portugal.

Em suma, esta estampa terá sido impressa à volta de 1850 em homenagem à Madre Maria Gertrudes de Santa Inês, prioresa de Santa Teresa de Carnide, que talvez nessa altura já tivesse falecido, porque enfim, como todos nós sabemos as homenagens só chegam depois de as pessoas terem morrido. A gravura é-lhe dedicada por Fr. José da Pureza, homem ligado ao mundo editorial e que terá encomendado a imagem ao tal C. Acquist, um gravador estrangeiro. 
Reverso do registo, manufaturado por mãos devotas.

Todos nós temos a ideia que em 1850, os conventos estariam numa longa agonia, já que a lei que os extinguiu em 1834, previa que estas casas fossem fechando à medida, que morresse à última freira. Mas pelos vistos, algumas dessas casas religiosas estariam ainda activas, pois por volta de 1850, continuava-se a mandar imprimir estampas piedosas relativas a devoções desses mesmos conventos e havia púbico para as comprar.


Quanto à iconografia desta estampa representa umas das visões de Santa Teresa, que a própria Santa descreveu no seu Livro da vida e que não resisto a transcreve-la, pois aos nossos olhos do século XXI pode ser visto como uma sublimação dos prazeres da penetração. Mas, também é verdade, que hoje temos a visão distorcida por demasiadas imagens de sexo na televisão, no cinema e sobretudo na internet.

Via um anjo ao pé de mim, para o lado esquerdo, em forma corporal, o que não costumo ver senão por maravilha [..) Via-lhe nas mãos um dardo de oiro comprido e, no fim da ponta de ferro, me parecia que tinha um pouco de fogo. Parecia meter-me este pelo coração algumas vezes e que me chegava às entranhas. Ao tira-lo, dir-se-ia que as levava consigo, e que me deixava toda abrasada em grande amor de Deus.

Teresa de Jesus, obras completas, Livro da Vida, cap. 29, 13, p 237 (citado a partir de Isabel Bastos - Iconografias de Santa Teresa de Ávila como esposa Mística, in Congresso Internacional sobre a Reforma Teresiana em Portugal, Fátima, 2015)
 

11 comentários:

  1. A gravura é muito bonita, de bom desenho. E fiquei contente em saber de um Convento que continuou a ser usado, sem entrar em ruína. Bom sábado!

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    1. Margarida.

      O convento de Carnide está ainda de pé e bem conservado. Claro, o recheio foi disperso. Mo Museu Nacional de Arte Antiga está exposto o presépio deste convento, que é lindíssimo.

      Bjos

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  2. A peça é muito bonita, com um desenho bem executado e a cercadura está muito bem combinada.
    Quem me dera conseguir fazer estas combinações.
    Não sei se é verdade ou é exagero meu, ou então talvez esteja numa de "Velho do Restelo", mas parece-me que existiria antes uma escola de trabalhos deste tipo, que talvez fosse maioritariamente conventual, julgo, onde existiria um gosto refinado e um cuidado, com base numa sabedoria e um gosto tradicionais que me parecem perdidos, pois vejo tanto registo à venda, feito agora, e onde é difícil encontrar uma combinação de cores, tecidos e formas elegantes e bem conseguidos.
    Normalmente exageram nas passamanarias, fios e cordões cheios de dourados demasiado vistosos, nos laçarotes, ou em cores e tonalidades que não fazem boas combinações entre si, ainda que os tecidos, em si mesmos, até sejam bons, mas as combinações ... deixam a desejar ... para não falar nas pagelas que são pouco apelativas.
    Se têm trabalho porque não investir em imagens de boa qualidade? E elas até se vendem por preços tão simpáticos ...
    Manel

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  3. Manel

    Concordo plenamente contigo. Embora hoje em dia haja muita gente a fazer estes trabalhos, raramente o resultado é muito convincente. Ou porque o trabalho peca por excesso de laçarotes e franjas ou porque a estampa é feia. Há uns tempos recomendei a uma senhora, que faz estes trabalhos de emolduramento de registos religiosos para tentar encontrar passamanaria e tecidos antigos nas feiras de forma a conseguir, que os seus registos fiquem menos vistosos e com uma certa patina do tempo.

    Creio que antigos conventos, os colégios de freiras e outras casas religiosas eram verdadeiras escolas de lavores femininos e cada vez há menos mulheres a dominar estas artes.

    Um abraço

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  4. Lindo quadrinho feito com tanto esmero por uma prendada de escol. Eu também adoro Santa Teresa, uma mulher incrível...li a vida dela há alguns anos.
    O quadrinho é lindo demais!
    Abraços.

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    1. Jorge

      Estes registos eram feitos com esmero notável, aproveitando restos de tecidos. Uma vez comprei um que estava em tal mau estado, que tive que desmontar a estrutura e aproveitar apenas a estampa. Era muito engraçado porque a estrutura base do caixilho era formada por canas, cortadas ao meio e com as pontas em viés.

      Teresa de Jesus foi uma mulher notável, que lutou contra ventos e marés para fundar a sua própria ordem e deixou também obra escrita. No fundo, entrar para uma ordem religiosa podia significar para uma mulher a possibilidade de se instruir e não estar sujeita a um marido.

      um abraço

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  5. Uma gravura e toda uma história rica em detalhes, que me fez ir até o google e pesquisar.
    Estas tuas palavras, escritas acima Luis, muito me fazem sentido para aquela época. A Santa em questão era notável.
    "No fundo, entrar para uma ordem religiosa podia significar para uma mulher a possibilidade de se instruir e não estar sujeita a um marido."

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    1. Maria Glória

      Há muitas ideias feitas sobre os antigos conventos. Todos tendemos a achar que eram verdadeiras prisões e que as freiras passavam o dia inteiro a comer doces de ovos, a intrigar umas com as outras e a suspirar por homens. Enfim, há muito mais para além disso, como nos provam a vida e obra de Santa Teresa de Ávila, ou ainda outras mulheres notáveis, como Santa Gertrudes a Magna.

      Bjos

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    2. Eu vi o filme da vida de Hildegarda de Bingen, notável e uma mulher muito focada em seus objetivos. Valente, enfrentava a todos.

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    3. Glória

      Os conventos femininos foram locais onde as mulheres se podiam instruir, mas também encomendavam muitas obras de arte. Em Portugal, no século XVII, houve uma pintora Josefa de Óbidos, famosa pelas suas naturezas mortas, mas que trabalhou muito para conventos e pintou muitas representações de Santa Teresa de Jesus, absolutamente encantadoras. Bjos

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    4. Encontrei um vídeo do Prof. José Hermano Saraiva, que conta sobre a Josefa de Óbidos, que irei ver mais tarde, na televisão. Fiquei interessada.
      Mais uma vez Luis, agradeço por conhecer mais personalidades tão interessantes pelas nossas conversas :)
      Um beijo e bom domingo.

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