quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Um pesado relógio burguês


Talvez nesta época, quem que passagem do ano se aproxima e em que sentimos que o tempo passa sempre demasiado depressa, seja adequado mostrar no blog este relógio francês, que o meu amigo Manuel comprou recentemente. 

É um objecto pesado, opulento, destinado a decorar uma casa burguesa do passado, num tempo em que a decoração de interiores se caracterizava por uma ornamentação excessiva e em que se queria mostrar riqueza, mas também respeitabilidade. E este último sentimento tão burguês alcançava-se usando objectos de decoração e mobiliário, que fizessem referência ao passado, aos grandes estilos artísticos, como a Renascença, o Luís XIII, o Luís XV, o Luís XVI ou Império. No fundo os burgueses queriam uma casa com aquilo que os aristocratas tinham de sobra e a eles lhes faltava, um passado. 

Medaille d’Argent, 1855. Vicent & Cie

Numa primeira abordagem, quando olhamos para este relógio e pensamos de imediato, isto é uma coisa da segunda metade do século XIX, provavelmente no tempo em que Napoleão III era imperador dos franceses (1852-1871). Com efeito, quando o meu amigo Manel abriu o relógio para o restaurar, o mecanismo apresentava uma marca incisa do fabricante, com uma data, 1855. Mais precisamente a inscrição  Medaille d’Argent, 1855. Vicent & Cie. Este rótulo significa que o seu fabricante, a companhia francesa a Vicent & Cie ganhou uma medalha de prata na Exposição Universal de 1855 de Paris, que foi precisamente inaugurada por Napoleão III.

Napoleão III inaugura a Exposição Universal de Paris em 1855

Porém, olhando mais atentamente o mecanismo, encontra-se outra marca incisa, com a data de 1915. Portanto este relógio é muito posterior ao chamado período do II Império (1852-1871). Quando foi fabricado já se combatia nas trincheiras em França.

Data de 1915

Este pormenor é muito interessante pois desfaz-nos um bocadinho o conceito de periodização dos estilos artísticos. Nas escolas ou nos livros aprendemos que a Arte Nova começou em 1900 e o Estilo Arte Deco em 1925. Ficamos com a falsa ideia que a partir de 1900 todos os objectos decorativos apresentam as linhas fluidas Art Nouveau e que a partir de 1925, os relógios, as mobílias e os candeeiros são em Art Deco. Na verdade, os estilos revivalistas do século XIX continuaram a ser usados pelo século XX fora e as famílias da boa burguesia preferiam sempre adquirir um canapé ao estilo Luís XVI, do que uma moderníssima cadeira Barcelona, desenhada por Mies Van der Rohe.

Este objecto é o chamado relógio de chaminé, designado pelos franceses pendule de Paris e como o próprio nome indica destinava-se a ser colocado sobre a chaminé da sala, mas também por vezes numa cómoda, acompanhado de outras peças decorativas, como castiçais, jarrões da China ou figuras em porcelana, mas sempre em número impar. Os principais fabricantes franceses destes relógios foram Jappy, Marty, Pons e precisamente Vincenti, companhia fundada em 1823 por Jean (Ghjuvanni-Giovanni) Vincenti e que se manteve em actividade até 1923.



As formas do relógio inspiram-se na escultura clássica da antiguidade e são representações alegóricas muito caras a toda a arte europeia. A jovem envergando uma veste inspirada na Grécia segura um martelo numa mão, na outra, um escopro e um busto e será muito possivelmente uma alegoria à arte da escultura. Os meninos ou putti, representarão a música e o desenho. Serão talvez as artes que estiveram envolvidas na concepção do relógio, o desenho, para o mecanismo e a forma, a escultura para as figuras e a música para as suas badaladas. 

Este relógio é sem dúvida um objecto fora de moda, que se encaixa muito neste blog de velharias, escrito por mim, que não tenho muita paciência para os temas em voga.


Alguns links e bibliografia consultados: 

https://www.proantic.com/display.php?mode=obj&id=548481

https://fr.wikipedia.org/wiki/Pendule_(horlogerie)

https://fr.wikipedia.org/wiki/Exposition_universelle_de_1855

http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b53024709w/f1.item

Le XIXe siècle français: Paris. Hachette, 1957

8 comentários:

  1. Fora de moda mas bonito. :)
    Boas Festas, Luis!

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    1. Luisa

      Muito obrigado pelos seus votos, que retribuo. Estas peças fora de moda tem o seu encanto. É certo que não jogam muito bem o minimalismo de hoje em dia, mas mesmo assim, podem ser peças interessantes para contrabalançar uma decoração moderna.
      Bjos

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  2. Sim, Luís, a burguesada adorava uma decoração suntuosa que remetesse à aristocracia de épocas mais distantes, à nobreza. Colocar um relógio desses numa sala dava respeitabilidade. Mesmo sendo de 1915, quando a art nouveau ainda estava em voga e o déco por nascer e mil evoluções nas arte decorativas, o novo sempre assustava. Era melhor não arriscar e seguir velhas cartilhas de comportamento e decoração.
    O art nouveau acho que foi até consumido e aceito bem, mas encheu o saco... o art déco assustou muito o povo da época. O art déco nunca foi para todos. Talvez as estatuetas tenham atingido mais, foram mais populares, mas a arquitetura, o mobiliário foi para um grupo seleto e mais sofisticado.
    Tenho dois relógios art déco, tão mais simples, tão mais bonitos, pra mim, que os de características clássicas e tão cafonas. Eu fujo de um relógio desses.
    Não sei se me fiz entender.
    O bom mesmo é o relógio de Dali a derreter. O tempo que se esvai.
    Falar em relógio e tempo, Feliz Ano Novo, Luís.

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    1. Jorge

      A escolha de um relógio para um post na época do ano novo foi deliberada, ainda para mais um objecto pesadão, definitivamente fora de moda, que o tempo parece ter condenado ao armazém de um antiquário, ao lado de um cofre antigo e de uma máquina de escrever dos anos 50.

      É bem verdade, os modernismos do século XX demoraram muito a chegar às casas burguesas e conservadoras, como bem prova este relógio, feito num tempo em que Picasso já pintava coisas arrojadíssimas.

      Pessoalmente tenho um gosto eclético, tanto aprecio santos barrocos do século XVIII, como candeeiros arte nova ou art deco, ou estas coisas pesadonas de estilo burguês. O problema é que um relógio destes implica muito espaço, uma cómoda grande e uma casa com um grande pé-direito. Como a minha casa é muito pequena, não me posso diversificar muito nos estilos, mas o meu amigo Manel tem a sua casa de Lisboa decorada muito ao gosto do século XIX e estas peças ficam a matar por lá, no meio de cortinados cheios de berloques e sofás capitonnés.

      Um grande abraço

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  3. É uma peça muito interessante. Boa tarde e bom Ano Novo!

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    1. Margarida

      Muito obrigado pelo seu simpático comentário e retribuo também os votos de boas entradas.

      Um abraço

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  4. Esta peça, ainda que sob uma temática artística, tem um ar bélico, todo em tons de preto ou cinzento escuro, mesmo as esculturas parecem algo assustadoras, não obstante estarem relacionadas às artes.
    Terá sido, possivelmente, uma peça destinada a estar de acordo com as propostas bélicas que estavam, no momento da sua criação, a vingar pela Europa.
    Toda a Europa estava em armas, pensando, e mal, que a guerra duraria um ano, no máximo ... revelou-se uma carnificina horrível, com uma pandemia à mistura, e que iria dizimar milhões de pessoas, entre elas muitos milhares de soldados portugueses; resultou na movimentação de milhões de seres humanos, provocou fome, e mergulhou a Europa numa era tenebrosa, que, para a fazer esquecer, deu origem aos loucos anos 20.
    Este relógio, neste tons negros e a lembrar algo bélico, apesar, volto a repetir, do tema aparentemente tranquilo e artístico, é quase premonitório do que viria a suceder nos anos sequentes.

    Está colocado sobre uma cómoda fabricada praticamente na mesma altura que o relógio, só que referida a um gosto mais passado.
    Não fica mal, mas é anacrónico numa casa de hoje, mas como sou mesmo antigo e gosto de coisas antigas, está de acordo com a minha forma de ser.
    Minimalismos não têm nada a ver comigo!!! Definitivamente!
    É mais um, das dezenas de relógios que por aqui pululam, sem contar com os do Alentejo.
    Um bonito post, e com um bom enquadramento
    Um bom ano a todos os teus leitores
    Manel

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    1. Manel

      Num estilo ao gosto império, este relógio acaba por se adequar ao tempo em que foi produzido, 1915. O estilo Império tem sempre o seu quê de marcial, evoca as conquistas de Roma e as de Napoleão, quando este pôs a Europa a ferro e fogo. Em 1915, os grandes impérios europeus defrontam-se numa guerra sangrenta. Embora fosse uma republica, a França tinha um gigantesco Império Colonial e pretendia a revanche da derrota de 1870. A Inglaterra temia a ameaça alemã ao seu Império Colonial. O militarismo prussiano ameaçava tudo e todos e a Rússia e a Áustria impunham a sua bota pesada a tantas nações europeias. Em 1915, os Impérios europeus sonhavam com mais anexações e mais e mais poder.

      Mas, não há dúvida que o relógio é uma peça imponente e aparatosa e que na tua casa fica às mil maravilhas.

      Um abraço

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