Como já aqui referi muitas vezes, recebi como prenda da prima Ana Paula dois álbuns de fotografia carte de visite. O antigo terá sido formado pelo meu trisavô, José Rodrigues Liberal Sampaio (1846-1935) e o segundo pelo seu filho, José Maria Ferreira Montalvão.
Regresso hoje a esse tema, escolhendo um senhor que consta do primeiro álbum, Paulino Antunes Guerreiro e do qual até há pouco tempo não tinha conseguido apurar quase nada sobre a sua vida ou as relações, que manteve com o meu trisavô. Mas, estas fotografias antigas são um desafio fascinaste e tento sempre por todas vias montar uma história para elas a partir de dados, que colho aqui e acolá.
Photographie française Celestin Benard, no Porto, Rua de Santa Catarina, nº 247 |
O retrato de Paulino Antunes Guerreiro foi feito pela Photographie française Celestin Benard, no Porto, que tinha o seu estúdio no 247, na Rua de Santa Catarina no Porto. Este dado permitiu-me datar de algum modo a fotografia. Será posterior a 1872, pois nesse ano o Celestin Benard mudou o seu estúdio do nº do 128 para o nº 247, e anterior a 1890, data em que este fotógrafo terá cessado sua a actividade. A título de curiosidade este Celestin Benard era de origem francesa e irmão de Elie Benard o fundador da célebre pastelaria Benard em Lisboa.
Uma vez que este retrato consta do álbum de Liberal Sampaio e na época a fotografia era ainda uma coisa cara, que se oferecia apenas as pessoas pelas quais se tinha estima e respeito, pude desde logo tomar como ponto assente que este Paulino Antunes Guerreiro fez parte do círculo de relações do meu trisavô, entre 1872 e 1890.
Liberal Sampaio |
Como maior parte das personagens, que constam deste álbum de fotografias, são transmontanas, pesquisei pelo nome do senhor no Arquivos Distrital de Vila Real e consegui perceber que este Paulino Antunes Guerreiro desenvolveu a sua actividade profissional no Cartório Notarial de Montalegre entre 1854-1863 e de 1866 a 1894 e ainda em Vila Pouca de Aguiar, entre 1862 e 1865.
Sendo o meu trisavô José Rodrigues Liberal Sampaio, natural da aldeia de Sarraquinhos, do Concelho de Montalegre é perfeitamente plausível que se tivessem conhecido e privado naquela vila transmontana e tivessem trocado fotografias um com o outro.
Mas não fiquei por aqui e continuei nas minhas pesquisas pela net fora até que encontrei um estudo de genealogia de uma família de Montalegre, Tentativa de dedução genealógica da família Caldas / Diogo Paiva e Pona, onde este Paulino Antunes Guerreiro é mencionado duas vezes.
A primeira em 29 de Dezembro de 1867, no baptizado de Virgínia de Jesus Rodrigues Canedo, nascida em Montalegre em 28 de Dezembro desse ano, em que os padrinhos foram Paulino Antunes Guerreiro, Escrivão de Direito em Montalegre e D. Josefa Xavier Teixeira
A segunda em 1905, em que uma tal Virgínia Alves, casou com um Acácio Alfredo Antunes Guerreiro, então de 43 anos, nascido em Montalegre em 1862, filho de Paulino Antunes Guerreiro e de Josefa Xavier.
Destas simples menções, confirmei que o Paulino Antunes Guerreiro fez grande parte da sua vida em Montalegre, concelho de onde era natural meu trisavô e que casou com Josefa Xavier Teixeira, certamente uma senhora de condição, pois no registo de baptizado da tal Virgínia, é designada por Dona. Tiveram um filho, o Acácio Alfredo Antunes nascido em 1862, que deixou descendência.
E por aqui fiquei nas minhas pesquisas, até que uma dia uma amiga Celina Bastos me indicou que o Diário do Governo, o antepassado do Diário da República, se encontra praticamente todo digitalizado e on-line na página https://digigov.cepese.pt. Fiz uma pesquisa no motor de busca e obtive uma lista, que é praticamente um currículo do Senhor e que acrescenta alguns dados novos às pesquisas realizadas no Arquivo Distrital de Vila Real. Além de Montalegre e Vila Pouca e Aguiar foi também e escrivão e tabelião do Juízo de Direito em Torre de Dona Chama entre 1855 e 1861, mas sobretudo, o mais importante é que consegui descobrir o ano da morte do senhor, bem como a existência de um segundo filho.
Paulino Antunes Guerreiro terá morrido em 1904. Imagem de https://digigov.cepese.pt |
Com efeito, a 29 de Novembro de 1904 é publicado um edital, em que o filho Acácio Alfredo Antunes anuncia publicamente morte de Paulino Antunes Guerreiro e de sua mulher Josefa Xavier Teixeira de Magalhães citando a mulher do co-herdeiro Aníbal Aquiles Guerreiro, D. Maria Carolina Fornazini Guerreiro, ausente em parte incerta em África, para deduzir os seus direitos, querendo, no referido inventario, com a pena de revelia.
Bem sei que o meu objectivo era identificar a relação de José Rodrigues Liberal Sampaio com o Paulino Antunes Guerreiro, mas entusiasmei-me com o assunto e parti para o registos paroquiais de Montalegre, que se encontravam em grande parte disponíveis on-line no site a Arquivo Distrital de Vila Real, para tentar apurar mais alguma coisa desta família.
Comecei por procurar o assento de nascimento do filho, Acácio Alfredo Antunes, que sabia que ter nascido em 1862. Vasculhei todo o livro desse ano e não encontrei o registo de baptismo do nosso Acácio. Fiquei chocado com a quantidade de filhos naturais e expostos nesta paróquia. Já tinha lido sobre o assunto, num estudo acerca de outra aldeia transmontana, Santalha, em que os filhos ilegítimos chegavam a ser 40 por cento do total dos baptismos, mas ver desfilar à minha frente todos aquele bebés abandonados na roda dos expostos, chocou a minha sensibilidade moderna. Pensando, que a referência ao ano de nascimento do Acácio Alfredo estivesse incorrecta, passei a ver o livro de 1861 e lá encontrei mais e mais crianças, filhas naturais ou expostas, até que no dia 27 de Janeiro achei o assento de baptismo do outro irmão, o Aníbal Aquiles, nascido a 25 do mesmo mês e que é registado como filho natural. Pelos vistos a Josefa Xavier Teixeira de Magalhães e o escrivão de direito Paulino Antunes Guerreiro prevaricaram e tiveram uma criança fora do casamento. No assento de baptismo, indica-se Josefa Xavier Teixeira de Magalhães, solteira, era filha de Francisco Xavier Teixeira de Magalhães, escrivão de direito e de Maria Alves da Nóbrega. Os padrinhos foram o bacharel Manuel Alvares Martins de Moura, advogado e Comba Ermelinda da Conceição.
O assento de baptismo de Aníbal Aquiles |
Pelos apelidos e pelas profissões, percebe-se que esta é obviamente uma família com posses, instruída, o que nos prova que não eram só as pobres jornaleiras, quem tinham filhos naturais.
Pressentindo que existia aqui alguma paixão contrariada à maneira dos romances de Camilo Castelo Branco, passei para os registos de casamento, para descobrir exactamente o que se passara entre a Dona Josefa Xavier e o escrivão de direito, Paulino Antunes Guerreiro. Ao contrário dos livros registos de baptismo, que são enormes, onde proliferam filhos naturais e bebés expostos na roda, os assentos de casamentos de Montalegre são poucos e em menos de uma hora vi quase duas décadas. Impressionou-me ver os casamentos dos filhos expostos, em que padre regista, Pedro Exposto casa com Maria Gonçalves, como se exposto fosse um apelido. Acabei por descobrir o casamento dos dois a 31 de Outubro de 1861, 10 meses passados do nascimento do pequeno Aníbal Aquiles.
O assento de casamento de Josefa Teixeira de Magalhães e Paulino Antunes Guerreiro |
O assento dá informações detalhas sobre o Paulino. Era filho de Bernardino Antunes Guerreiro e Domingas Alves Ferreira, neto paterno de Manuel Antunes e Josefa Dias de Melo e materno e José Alves e Maria Dias. Quanto à Dona Josefa era filha de Francisco Xavier Teixeira de Magalhães, de Maria Alves da Nóbrega, neta paterna de Francisco Xavier Teixeira de Magalhães e Jerónima de Macedo e materna de António Alvares da Nóbrega e de Teresa Maria. Quase toda esta gente era natural de Montalegre. No assento, percebe-se que houve qualquer confusão com os arquivos e pároco transcreve os assentos de nascimento dos nubentes. A Josefa Xavier nasceu a 4 de Abril de 1834 e o Paulino a 7 de Fevereiro de 1830. Casam relativamente tarde, ela com 27 e ele com 31. Quando a Josefa se deixou seduzir pelo Paulino já não era uma garota e contava com 26 anos.
Fica no ar a pergunta, porque é não estavam casados aquando do nascimento do primeiro filho, o Aquiles, em Janeiro de 1861. Através do assento de casamento ficamos com a ideia que os apelidos da família da noiva eram mais sonantes que os família do Paulino. Será que a família Teixeira de Magalhães acharia que o Paulino não estava à altura da Josefa. Mas é estranho, pois o pai, o Francisco Xavier Teixeira de Magalhães era tal como o Paulino, escrivão de direito e conviveram os dois no cartório notarial de Montalegre, antes e depois do casamento, conforme se pode ver pelos registos do Arquivo distrital de Vila Real. Tinham os dois a mesma profissão. Enfim, as pessoas que poderiam responder a estas interrogações, deixaram este mundo há mais de 100 anos.
Em todo o caso o Aníbal Aquiles usará os apelidos do pai, mesmo sendo filho natural.
Sabendo o ano do nascimento, posso atribuir uma data mais segura para retrato do Paulino. Na fotografia aparenta ter entre 40 e 50 anos, portanto a fotografia terá sido tirada por volta de 1875, um ano a mais ou um ano a menos.
Paulino Antunes Guerreiro (1830-1904) |
Bem sei que me desviei do meu propósito de encontrar a relação entre o Paulino Antunes Guerreiro (1830-1904), escrivão de direito em Montalegre e o meu trisavô, José Rodrigues Liberal Sampaio, que trocaram fotografias por volta de 1875 e perdi-me na reconstituição do percurso familiar do primeiro. Mas é fascinante consultar estes registos paroquiais, que revelam hábitos tão diferentes dos nossos, em que era prática corrente expor crianças na roda, abundavam filhos fora do casamento e os matrimónios eram contrariados.
Bibliografia:
Diário do Governo https://digigov.cepese.pt.
Ruralismo e família em Vinhais: estudo de caso sobre a paróquia de Santalha (1886-1909) / Berta Gonçalves Morais. Porto, 2003
Tentativa de dedução genealógica da família Caldas / Diogo Paiva e Pona
Fontes Arquivísticas:
Arquivo Distrital de Vila Real: Livro de casamentos de 1861
Arquivo Distrital de Vila Real: Livro de baptismos de 1861
Caro LuisY, é fascinante como consegue desfiar assim novelos de vidas, e construir pela pesquisa e pela escrita as histórias dessas pessoas que aparecem em fotografias de antigos álbuns.
ResponderEliminarLuisa
EliminarObrigado pelo seu comentário.
Este trabalho é um puzzle, em que se monta uma história a partir de dados dispersos e dá-me um um enorme prazer.
Tudo isto se torna mais complicado, porque os livros paroquiais, principal fonte para esta histórias de família, nunca estão completos. Uns não foram digitalizados e outros desapareceram de todo, de modo que a partir do assento de casamento, tenta-se reconstituir os dados do nascimento e por aí fora.
Em todo o caso, apesar da secura destes assentos de baptismo, casamento e óbitos, conseguimos pressentir dramas, paixões e uma forma de as famílias se estruturarem e agirem surpreendentemente diferente da nossa. Hoje não abandonamos os filhos na roda dos expostos, as crianças são registadas e casamos com quem bem nos apetece. A história da dona Josefa e do Paulino repete-se por todo o lado e já varias vezes encontrei casos semelhantes nestas minhas investigações familiares.
Um abraço
Luís, muito boas as suas publicações. Mesmo quando, em algumas, parece que a sua leitura irá ser uma perda de tempo bem pelo contrário: São uma fonte de prazer e aprendizagem.
ResponderEliminarObrigado, Luís e abraço
Caro amigo Joaquim
ResponderEliminarTem toda a razão. à partida o retrato deste escrivão de direito de Montalegre não promete nada excitante. Não é a fotografia de um jovem fidalgo, de um militar garboso ou de um estudante de Coimbra com ar de poeta romântico. É apenas o retrato de um burocrata na meia idade.
Mas a vida das pessoas comuns oferece muitas vezes o retrato mais fiel de uma época, em que a forma como as famílias e as relações amorosas se desenvolvem era tão diferente da nossa.
Muito obrigado, um grande abraço para si e um beijo à Ângela.
Muito interessante o texto e a pesquisa revela um espírito, verdadeiramente, detetivesco... Um estudo da história privada de uma familia transmontana no seculo xix, torna se muito interessante e aliciante. Os amores e desamores, que se revelam nos frios registos paroquiais, de pessoas há muito desaparecidas... Fica sempre a nossa imaginação para recrearmos à maneira "cammiliana" o que aconteceu..
ResponderEliminarPassados 150 anos dos acontecimentos descritos é difícil saber exactamente que histórias, dramas ou paixões se escondem por detrás destes frios e secos assentos paroquiais.
EliminarNo estudo Ruralismo e família em Vinhais: estudo de caso sobre a paróquia de Santalha (1886-1909) a autora Berta Gonçalves Morais adianta que os casamentos eram muito dificultados, para impedir o parcelamento da propriedade. Ou seja, numa família, só a um ou dois dos filhos era consentido o casamento. Os outros ficavam para tio e quando morressem deixavam os seus bens aos sobrinhos.
Também haverá outros factores que nos escapam e que terão mais a ver com preconceitos sociais, antipatias pessoais. Os pais impediriam o casamentos dos filhos porque não gostavam do candidato a genro ou nora.
No entanto, pressentimos aqui hábitos e costumes muito diferentes dos nossos e que fogem à nossa compreensão.
Um abraço
Uma fotografia anónima, num álbum igualmente anónimo, e sem qualquer interesse em particular, nas mão certas torna-se um valioso estudo social de uma época, e, por isso, constitui história ao vivo.
ResponderEliminarNos manuais só nos aparecem grandes personagens, normalmente a alta aristocracia, eclesiásticos dominantes ou altas patentes das forças armadas, mas nada se sabe sobre o comum dos mortais, que esses enterram-se no pó do esquecimento, até que fazer a sua história dá trabalho.
É muito mais fácil acompanhar a vida dos grandes "figurões" da vida política, religiosa ou militar, pois sobre estes há abundante documentação.
Maria Filomena Mónica tem procedido igualmente ao desenterro de algumas destas famílias votadas ao esquecimento, no entanto um dos seus campos de trabalho tem sido esse: o desenterrar de pessoas dos arquivos poeirentos.
Ainda bem que essas fotografias te foram parar às mãos, doutra forma estariam para sempre enterradas na história, e nem mesmo os familiares destas pessoas conseguiriam ressuscitá-las.
Continua, que o estudo está a tornar-se numa história reescrita e fascinante sobre pessoas comuns e banais, mas que, afinal, e na realidade, fizeram um país.
Manel
Manel
EliminarA reconstituição das história das personagens, que formam este álbum é um desafio muito estimulante para mim. Tenho também presente, que quando tiver acesso às cartas, recortes de imprensa e documentos que o meu pai, conservou este conjunto de fotografias fará ainda mais sentido. Sei também que mais tarde ou mais cedo, algum estudioso de genealogia, virá ter a este blog, dando-me mais informações sobre estas personagens.
Um abraço e muito obrigado pelos teus comentários sempre tão pertinentes
Luis, agradeço-lhe que leia um comentário que fiz ao seu texto "Visita do arqueólogo José Leite de Vasconcelos" – notícia de 8 de Outubro de 2012. É relativo a um anel romano que nela cita e talvez também ao seu comentário no blog Outeiro Seco (de Humberto Ferreira), de 29 de Outubro de 2010. Cumprimentos, Graça Cravinho
ResponderEliminarMuito obrigado. Já fui ler o comentário e já respondi
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