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Maria Adelaide Alves Carneiro e Maria José Dias de Carvalho |
Fazer a história da família, ainda que só de 3 ou 4 gerações é como encontrar um extenso romance, inteiramente desfeito, em que nos aparece primeiro uma parte do capítulo 82, depois o capítulo 34 e o 6º e mais além três ou quatro folhas rasgadas ao meio, sem qualquer numeração. As personagens são muitas, algumas entram e saem brevemente, outras permanecem na narrativa. Por essas razões, no meu blog as minhas lentas investigações sobre a história da família, vão sendo escritas sem ordem cronológica.
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O retrato de grupo em 1901 |
Desta vez, regresso novamente ao ano de 1901, ao concerto em Chaves, em que as meninas da boa sociedade flaviense, posaram com os seus instrumentos musicais, debaixo do olhar do seu mestre, certamente por ocasião de algum sarau musical, promovido pelo Grémio Musical Flaviense. Nesse retrato, figuram a minha bisavó, Aninhas, segurando um bandolim e a sua irmã, a tia Marica com um violino e ainda as suas amigas, a Maria Adelaide Alves Carneiro e Maria José Dias de Carvalho. Conforme, a dedicatória que estas duas últimas escreveram no verso da fotografia, oferecida à minha bisavó e tia bisavó, parecem ter sido dias felizes para estas jovens, com a camaradagem, excitação dos ensaios todos e de um ou dois concertos onde brilharam perante a sociedade da então vila de Chaves.
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A bisavó, Aninhas, segurando um bandolim e a sua irmã, a tia Marica |
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Maria Adelaide Alves Carneiro e Maria José Dias de Carvalho |
Tenho pensado bastante no senhor mais velho, que se encontra de pé, que foi sem uma dúvida o mestre deste grupo de meninas da sociedade flaviense e creio, que poderá tratar-se do Maestro Pinto Ribeiro, que esteve activo em Chaves, pelo menos entre 1892 e 1912 e deixou uma marca profunda na vida musical daquela cidade, encenando operetas e zarzuelas, algumas da sua autoria. Mas não tenho a certeza. Só encontrei uma fotografia de João Carlos Pinto Ribeiro Pinto Ribeiro (1862--1931) num site de genealogia estrangeiro, com fraca qualidade e nesta época, todos os cavalheiros, que usavam fartos bigodes, se pareciam uns com os outros.
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O mestre das jovens poderá ser o maestro Pinto Ribeiro? |
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João Carlos Pinto Ribeiro Pinto Ribeiro (1862-1931) |
Ainda destes tempos felizes e no arquivo da família encontrei uma carta de Maria José Dias de Carvalho, dirigida à minha bisavó Aninhas, datada de 10 de Outubro de 1902, muito afectuosa.
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Carta de Maria José Dias de Carvalho, dada em Castelo Branco, datada de 10 de Outubro de 1902 |
Acusa a recepção de notícias da Aninhas, cuja mãe foi a banhos para Carvalhelhos na companhia da Marica. Conta que escreveu à Mariquinhas, uma amiga comum, talvez outra das jovens do retrato de grupo e soube que o estado do pai desta se agravou e não há esperanças de o salvar.
É curioso observar os diminutivos destas jovens, Marica, a Mariquinhas. A minha trisavó de uma geração anterior, também Maria era igualmente conhecida pelo petit nom de Maricas. Parece que, nesta época, em 1902, maricas ainda não era um termo pejorativo usado para designar um homem efeminado.
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Carta de Maria José Dias de Carvalho, dada em Castelo Branco, datada de 10 de Outubro de 1902
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Depois, a meio da missiva, a Maria José Dias de Carvalho pede um grande favor à minha bisavó ando a fazer uma coberta para o piano em lãs de fantasia e como tu e a Maricas tem vestidos lindíssimos para isto pedia-te a fineza de me mandares todos os bocadinhos que não te sejam precisos, mesmo de Inverno tudo serve, mesmo alguns que te pareçam feios, manda-mos sem receio, porque isto tudo serve.
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Carta de Maria José Dias de Carvalho, dada em Castelo Branco, datada de 10 de Outubro de 1902
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No passado havia este hábito de cobrir os pianos com panos decorativos. Recordo-me que a minha avó Mimi, quando ainda estava de boa saúde ofereceu um manton de Manila à minha irmã, explicando-lhe que antigamente aquelas espécie de xailes, bordados e com muitas franjas eram usados para cobrir os pianos. Mas nesta época, em que as meninas tocavam piano e falavam francês não havia lugar para desperdícios e guardavam-se os retalhos todos de tecidos e Maria José teve tempo para idealizar o seu projecto de manton. A encomenda com os retalhos terá ido de mala posta até à Régua, depois de comboio até Porto, depois para o Sul até ao Entroncamento, e finalmente até Castelo Branco, onde Maria José estaria a residir. Finalmente, a jovem terá passados semanas cosendo artisticamente os paninhos uns aos outros e no final terá aplicado um passamane cheio de franjas ou fez ela própria um em renda, quem sabe, se em bilros. Talvez na família Maria José Dias de Carvalho, algum dos seus netos ou bisnetos ainda tenha esta coberta do piano.
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Carta de Maria José Dias de Carvalho, dada em Castelo Branco, datada de 10 de Outubro de 1902
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Finalmente, a Maria José recorda a Aninhas que ainda não recebeu o seu retrato e despede-se escrevendo, não te esqueças de mim, que depois dos teus pais e da tua mana não tens quem te tenha uma amizade mais sincera.
Tudo isto que escrevi não tem grande importância para a história, mas estas fotografias e cartas não deixam de ser o fresco da sociedade de terras pequenas do interior, com as suas actividades musicais, em que as meninas tocavam piano, dedicavam-se aos lavores domésticos e onde as palavras tinham até um significado diferente , do que têm hoje em dia.
Sempre agradável ler um post sobre as memórias familiares.
ResponderEliminarE sobre a forma como funcionavam os interesses das senhoras desta condição.
Se algum dia hoje uma senhora ou rapariga, desta ou doutra condição qualquer, escreveria a uma amiga a pedir-lhe bocados de tecidos para realizar um pano para proteção das teclas do piano.
Na verdade, eu tive um, que veio com o piano que tenho, mas a seu devido tempo as traças encarregaram-se de o comer. Quando me chegou as mãos era mais buracos que tecido, mas estava primorosamente bordado a seda, sobre um feltro de cor verde.
A sociedade, nos últimos cem anos, mudou de uma forma muito mais rápida do que os cem anos anteriores.
No entanto, reviver este tempo é sempre refrescante e muito nostálgico.
Manel
Manel
EliminarEstas cartas além do valor que têm para história quotidiana, dão também indícios sobre a decoração de interiores de uma época. Fiquei a imaginar como seria esta cobertura de piano, pois estas jovens tinham mãos de ouro e faziam estres trabalhos dos chamados lavores femininos com um grande virtuosismo.
Fica também a dúvida se o senhor da fotografia será o Maestro Pinto Ribeiro. Foi uma figura muito marcante em Chaves, na época, e na casa onde viveu está uma placa comemorativa. Curiosamente essa casa era ao lado do prédio da minha avô e sempre ouvi falar deste senhor, mas parece estar completamente esquecido e só encontrei uma fotografia de muito baixa resolução num site de genealogia estrangeiro.
A memória perde-se tão depressa...
Um abraço
Caro Luis
ResponderEliminarContado assim……vive-se esse passado…..um ambiente bucólico onde o tempo parou nos textos das cartas…..essas cartas são como uma caixinha de música antiga……lê-se e ouvem-se os sons……portas para outros lugares, outras gentes há muito sopradas como pó que o tempo se encarregou de dispersar…a magia de sentir uma brisa de outros tempos.
Bom trabalho resultado de um paixão invulgar
Abraço
Vitor Pires
Vítor
EliminarObrigado pelo seu comentário tão interessante. Tenho até reflectido muito sobre sobre o assunto das vozes e dos sons, que a leitura destas cartas parece nos fazer ouvir. Até há pouco tempo, o que sabia destas pessoas era através da tradição familiar, que o meu pai compilou escrupulosamente.
Agora, com as cartas, leio directamente o que estas pessoas pensaram, as suas preocupações, a sua linguagem própria, as sua cortesias. É quase como ouvir as vozes delas e um mundo, que se perdeu renasce novamente. O meu problema é por vezes escolher as cartas mais interessantes para publicar aqui, pois são tantas.
Um grande abraço
Olá, Luís. Que ótimo esse comentário sobre a manta para o piano, imagino que linda deve ter ficado, tecidos diferentes, texturas, estampas diversas, toda rebordado, talvez, adornada com rendas de bilro, que maravilha!
ResponderEliminarPrecioso o comentário sobre essas antigas cobertas para piano e o jeito que a moça pediu, tão educada dando valor até em pedaços de tecidos que talvez passassem por restos a serem jogados fora. Pareceria uma colcha de retalhos, um kawandi indiano? Que bom se tivesse uma foto. Quem sabe não aparece no meio de tantas imagens que vc tem resgatado.
À propósito, adoro a pose de Maria Adelaide posando com o violão.
Um abraço.
Jorge
EliminarA graça desta carta está em imaginar a cobertura do piano. Estas meninas eram umas virtuosas nestes lavores e imagino que o resultado deve ter sido bonito.
Já depois de publicar este post, descobri que a Maria José casou em Castelo Branco, em 29 de Junho de 1904, com Matias Libório de Abreu. Era filha de um militar, o capitão de Cavalaria, Isidoro Gomes de Carvalho, que provavelmente esteve a cumprir alguma comissão em Chaves, onde existia um quartel muito importante.
Talvez em Castelo Branco exista um descendente deste casal, que guarde o pano feito de retalhinhos, artisticamente cosidos uns nos outros.
Um grande abraço