sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Talheres de prata franceses estilo arte nova ou a atracção pelo inútil



Há umas semanas comprei um conjunto de talheres de prata na Feira de Estremoz por um preço muitíssimo convidativo. Quatro deles são de uma tipologia, que eu nunca tinha visto na vida. São semelhantes aqueles talheres para segurar o osso do da perna do perú, enquanto, que com uma faca trinchante se vai cortando as várias fatias de carne, só que muito mais pequenos, pois têm apenas 14 cm de comprimento. O vendedor informou-me que serviam para comer perdizes e que eram franceses.

Quando voltei para a casa, cai em mim, pensando Disparate! Mas para que é eu quero talheres para comer perdizes e sei lá eu cozinhar perdizes! Mas, eram tão bonitos, lavrados com motivos florais característicos da arte nova, que me convenci que afinal foram uma boa compra e que ficariam bem lá por casa, nem que fosse só como decoração.

A parte superior dos talheres tinham um banho de dourado muito enferrujado, que infelizmente não se pode manter.


Em todo o caso, resolvi tirar a limpo essa história de serem talheres para comer perdizes e lancei-me numa busca sistemática nos sites dos antiquários franceses e no www.protantic.com encontrei um conjunto destes talheres em prata, que em França se designam por Manches à Côtelettes. São instrumentos para segurar o osso de costeletas ou eventualmente de pequenas aves, sem ter que sujar as mãos. O mecanismo no topo permite um ajuste à medida da grossura do osso e prende-o assim com segurança. Em França estes talheres eram muito comuns e encontrei muitos conjuntos à venda, de 12 ou 6 pessoas, alguns ainda com os estojos originais dos ourives.

O senhor que me vendeu estes talheres compra muito em França, nas grandes feiras que existem naquele país e depois revende por cá, mas à cautela decidi confirmar se eram realmente franceses e mais uma vez esbarrei com a tremenda dificuldade em ler as minúsculas sinalefas dos punções de garantia e marcas de ourives. As lupas que tenho em casa são fracas e a única forma que tenho de as ler, é usar o telemóvel, ampliando a imagem até ao extremo, e depois tirar a fotografia e ainda assim só a terceira tentativa é que obtive uma imagem nítida da marca. 

A Minerva


Trata-se do punção de garantia oficial da França, a cabeça de Minerva usada entre 1838 e 1973. É um período cronológico, muito grande, mas pelo menos tenho a certeza que estes talheres são franceses, de prata e de boa qualidade, pois tem o nº 1 à direita da cabeça. Contudo, não são prata maciça ao contrário dos restos do faqueiro, que herdei da minha avó. O cabo é apenas uma folha de prata, que reveste outro material.

Punção de garantia oficial da França, a cabeça de Minerva usada entre 1838 e 1973. Imagem retirada de https://argenterieetorfevrerie.wordpress.com/les-poincons-francais-1789-a-nos-jours-de-1789-a-1798-periode-dite-revolutionnaire/



Dois dos talheres, apresentam uma segunda marca incisa, talvez a do ourives, mas essa é tão pequena que não consegui descodifica-la, por mais que tentasse.

Esta segunda marca não consegui descodifica-la


Se através da punção Minerva, só posso afirmar com segurança que estes talheres foram produzidos em França entre 1838-1973, a decoração de elementos vegetais que se distribuem de forma assimétrica pelo cabo é típica da arte nova, o que me permite data-los entre os últimos anos do século XIX e os primeiros do século XX. Ao contrário de outros estilos artísticos, não houve ao longo do século XX revivalismos de arte nova, com excepção dos candeeiros e dos vidros, que foram replicados ou serviram de inspiração a novas peças nos últimos vinte ou trinta anos. Para os faqueiros de prata, ao longo do século XX e mesmo no momento presente, as pessoas com posses para os adquirir preferiam ou preferem os estilos mais clássicos como o Luís XV ou Luís XVI em França e em Portugal, o D. João V ou D. Maria. Por exemplo, nas ourivesarias portuguesas ainda hoje encontramos à venda os talheres das caninhas, uma decoração neoclássica, posta na moda há mais de 200 anos, mas feitos agora.




Em suma, tenho em casa uns talheres de prata franceses com cerca de 120 anos para comer costeletas de borrego, porco ou para perdizes, que nunca irei usar na vida, mas que são um testemunho de um tempo onde as famílias mandavam gravar o seu monograma nos faqueiros, as mesas eram postas com arte, com refeições de vários pratos e com variedade enorme de talheres para comer e servir, desde ostras, a morangos, passando por caracóis. Para quem, como eu põe o prato num tabuleiro de plástico e janta em frente à TV estes pensamentos são reconfortantes.

Os talheres encontraram um lugar no meio dos meus tarecos


Alguma bibliografia e ligações consultadas:

A guide to old French plate / Louis Carré. - London : Eyre and Spottiswoode, 1971.

Les poinçons de garantie internationaux pour l'argent / [ed. lit] Tardy. - 5ème éd. - Paris : Tardy, 1957.


10 comentários:

  1. Mas se te apetecer jantas com todo o requinte ,numa mesa bem posta com talheres de prata, copos de cristal e um bom serviço de porcelana como o fazias em casa dos teus pais e avós .

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    1. Recebo pouco em casa, mas quando tenho os meus filhos a jantar, ponho sempre a mesa com talheres de prata e o serviço de porcelana. É a forma de gozar as peças e também de as ir limpando, não as deixando oxidar. Claro, depois é preciso lavar os talheres à mão. Convém não coloca-los na máquina de lavar a loiça, pois as lâminas tendem a soltar-se dos cabos. Mas, vale a pena o trabalho. bjos

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  2. Fartei-me de rir quando soube que seria para perdizes.
    Mas quem é que hoje come perdizes, a não ser um diminuto número de pessoas, sobretudo as que, infelizmente, se dedicam à caça.
    E nem estes deviam comê-las, muito menos matá-las. São aves tão simpáticas que, de vez em quando, me frequentavam o quintal, antes do aparecimento dos gatos. Agora com a gataria, elas nem sequer dão um ar da sua graça, e ainda bem. Elas que fujam!!!
    De vez em quando lá andavam elas com os perdigotos atrás, a ensinar-lhes a comer. Tinham tanta graça. E têm cores bonitas.
    E continuo a vê-las, de forma mais ou menos frequente, quando ando nas estradas do Alentejo, sobretudo nas rurais. São aves tão simpáticas e bonitas, fico sempre a desejar que escapem aos caçadores, que no Alentejo adoram matar bichos ... ainda se fossem mosquitos ou melgas ainda vá que vá, agora perdizes!!!!! Valha-me Santo Ambrósio, a mim e às perdizes.
    Mas os talheres são um requinte, não há dúvida! Mas não foram fáceis de limpar!
    Manel

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    1. Manel

      Cozinhar perdizes é um processo complicado. É preciso deixa-las apodrecer uns dias, o que os franceses chamam o "faisandé" e já imagino a minha casa mínima infestada com o cheiro a putrefacção.

      Além dessa trapalhada toda também não simpatizo muito com a ideia de andar a caçar e comer essas aves tão bonitas. Mas talvez, nos dias de hoje já as criem em aviário.

      Mas, como tu dizes estes talheres com uma decoração arte nova são um requinte e tiveste um bom trabalho a limpar a sua parte superior, que estava completamente enferrujada.

      Um abraço

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  3. Adorei! Não conhecia esses talheres, o parafuso na ponta é o máximo! São lindos. O final do texto é uma maravilha, não temos tempo para nada, nem para por uma mesa...mas temos talheres para aves pequenas e outras coisas mais que não usamos e nunca iremos usar. Mas é tão bom tê-los perto e vê-los no dia-a-dia atravancado. É o que importa! O belo é o que importa!
    Abraços, Luís.

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    1. Jorge

      Estes talheres foram também uma novidade para mim. Foram produzidos numa época em que havia criadagem, dinheiro, um maior formalismo e muito tempo e em os faqueiros tinham um sem número de peças para servir ou comer. Ainda há uns tempos comprei uns talheres para couverts desta época deliciosos.

      Também são de uma época e de um País, a França, onde as artes da mesa estavam no seu expoente máximo e cuja influência se estendeu pelo mundo inteiro.

      Claro, nunca irei usar estes talheres, mas periodicamente vou colocando-os em exposição e sentir imenso prazer a olhar para eles.

      Um grande abraço


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    1. Margarida

      É verdade. Estes talheres são uma tipologia rara por cá, mas pelas minhas consultas nos sites de venda de antiguidade, eram comuns em França.

      Bjos e muito obrigado pelo seu comentário

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  5. Olá, a minha avó tinha uns talheres desses que se perderam. Sempre me fascinaram e nunca percebia bem para que serviam, apesar de saber que se usavam para segurar coisas que se desfiariam só com o garfo.
    Que giro encontrar este seu texto. Compraria uns só para matar saudades

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    1. Muito obrigado pelo comentário. Nos finais do XIX e início do século XX os faqueiros eram muito completos e havia talheres com funções, que hoje temos dificuldade em descortinar. Correspondiam a hábitos requintados, mas também a um tempo onde havia criados para lavar louça à mão. As máquinas de lavar condenaram o uso destes talheres de prata a funções mais decorativas. Se colocarmos estes talheres nas máquinas os cabos soltam-se logo. Mas como bem referiu, há um factor sentimental que nos leva adquirir estes objectos, quanto mais não seja só para recordar.

      Um abraço

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