quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

O general, a fidalga desencaminhada e o bacharel louco: histórias esquecidas




Tratar o espólio documental de uma família é um trabalho fascinante. Ler cartas escritas há 150 anos é como se estivéssemos a ouvir as vozes e os pensamentos de quem há muito morreu e desta forma vamos conhecendo aos poucos os traços da personalidade dos antepassados e ao mesmo tempo uma época tão diferente da nossa. Talvez por experimentar um prazer tão grande na leitura dessas cartas sinta necessidade de as partilhar com outras pessoas e convida-las a viajar numa espécie de máquina do tempo. Bem sei que é uma analogia simplista, mas é esse sentimento, que se experimenta durante a leitura destes documentos.

Desta vez escolhi umas quantas cartas onde os protagonistas foram a minha trisavó, Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão (1856-1902) os meus tios trisavôs o General António Ferreira Montalvão (1840-1919), Miguel José Ferreira Montalvão (1838-1890), mas também num plano secundário o companheiro da primeira, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio (1846-1935), meu trisavô e o filho que tiveram em comum, José Maria Ferreira Montalvão (1878-1965)

Os três irmãos tiveram destinos muito diferentes, o General António Ferreira Montalvão fez uma carreira brilhante nas armas, foi um matemático conceituado, chegando mesmo a Comandante do que é hoje a Academia Militar. Casou muito bem, com uma senhora da boa sociedade lisboeta, Mariana das Mercês Bravo Borges (1858-1888) e juntos tiveram uma filha, Elina Bravo Borges de Ferreira Montalvão, uma virtuose do piano. O irmão, Miguel José, formou-se em direito em Coimbra, mas apaixonou-se por uma prima ingrata, acabou por enlouquecer, morrendo em Outeiro seco, num quarto rodeado de livros, recusando lavar-se e fazer a barba. A outra irmã, a minha trisavó, que tinha todas as qualidades para fazer um belíssimo casamento, beleza, um bom-nascimento e fortuna, acabou por se envolver com um padre, do qual teve dois filhos bastardos e acabou por morrer cedo, de doença prolongada, em 1902, triste e amargurada.

A primeira carta, do General António Ferreira Montalvão foi dirigida à irmã e embora não esteja datada, presumo que seja de meados da década de 70 do século XIX, numa época em que as relações entre os dois eram boas. Transcrevo aqui o seu conteúdo, que achei muito interessante.



Maricas

Recebi a tua carta e com ela o teu retrato, que muito te agradeço. Para te dizer o que sinto não o acho nada bem, todavia pode-se admitir-se como retrato tirado em Chaves e as tuas feições parecem um pouco manchadas com as bexigas.

Agradeço-te igualmente a lembrança de me mandares a prova do fumeiro, há alguma dificuldade em manda-lo, por isso se o Bastos não se encarregar de mandar pagar os direitos de entrada no Porto e de o mandar entregar na Estação Central do caminho-de-ferro no Porto, o melhor é não vir, porque eu não sei de me demorarei aqui ou se irei brevemente para Lisboa.

Quanto aos retratos que me pedes, não posso já obtê-los porque fui a Lisboa a um concurso e deixei lá a máquina. Neste concurso só apareceu mais outro, que tem menos habilitações e mais empenho que eu; se eu for o preferido como espero tornarei a ter férias para ir visitar-te todos os anos.

Recomenda-me a todas as pessoas que me mandaram lembranças.

A propósito do fumeiro, lembra-me de perguntar-te se já se pagou a despesa que fez o Celestino quando uma vez se encarregou de mandar-mo do Porto, a prima Amélia pode informar-te a este respeito. A despesa é pequena, mas se ainda não foi paga deve-o ser com brevidade.

Dispõe do teu irmão António

NB: Vai incluso conhecimento para tu mandares receber do Porto na estação central de Caminho-de-ferro, um aparelho que era para enxofrar as vinhas e para melhorar o vinho não deixando fazer vinagre. Podes encarregar o Bastos de tentar de o receber e conduzir para Chaves; deves dar-lhe o dinheiro para este fim e dizer-lhe que está num caixote que pesa menos que uma arroba.

Retrato da minha trisavó executado presumivelmente por Tomás Aquino Pacheco e ao qual se refere António Vicente na sua carta.


Creio que quando António Vicente se refere ao retrato da irmã, escrevendo que só era aceitável porque foi tirado em Chaves, trata-se certamente uma de duas fotografias, que eu tenho da Maria do Espírito Santo executadas pelo primeiro fotógrafo activo em Chaves, Tomás Aquino Fonseca, que a partir de 1876, estaria a trabalhar naquela terra transmontana. Igualmente interessante é que quando a Maria do Espírito Santo pediu um retrato ao irmão, este respondeu-lhe que foi a Lisboa e deixou lá máquina. Portanto, em meados dos anos 70 do século XIX, António Vicente já tinha uma máquina fotográfica, o que era raro para a época! Era realmente um homem um homem tecnológico. Tenho três retratos dele, um assinado pelo H. Tisseron de Lisboa e outros dois sem marca de fotógrafo. Talvez um destes dois seja um auto-retrato feito com a sua própria máquina.




Dois retratos não assinados do General António Vicente Ferreira Montalvão. Poderão eventualmente ser auto-retratos.

Depois há dois parágrafos sobre o fumeiro, assunto recorrente em quase todas as cartas da família, pois enfim, todos eles eram bons transmontanos, de Chaves e o presunto, os chouriços, os salpicões enviavam-se a quem estava longe, ainda que o transporte fosse uma trapalhada, pois além das vias de comunicação deficientes, ainda existiam barreiras alfandegárias internas no País, que taxavam a entrada de bens de consumo nas cidades, como António Vicente bem refere.

Por último, sempre tecnológico, António Vicente, enviou à irmã um aparelho que para enxofrar as vinhas e para melhorar o vinho, não deixando fazer vinagre.

Pelas dúzias de cartas, que o meu trisavô, Liberal Sampaio enviou à Maria do Espírito Santo com conselhos pormenorizados sobre como gerir a casa agrícola, imagino que esta tenha recebido esta encomenda com horror, a pensar o que iria ela fazer daquele aparelho e de como explicaria aos trabalhadores agrícolas como usa-lo. A ideia que fiquei dela depois da leitura dessas cartas, é que seria uma mulher com pouco sentido prático da existência, que muito nova se viu sem os pais e os irmãos, a governar sozinha uma grande casa agrícola. Anos mais tarde, já no final da sua vida, quando sua relação com Liberal Sampaio azedou, escrevia cartas ao filho com longas queixas sobre ele e uma delas é que não tinha ido dar corda ao seu relógio. Enfim, não há muita arte em dar corda a um relógio.

Maria do Espírito Santo com os dois filhos que teve de Liberal Sampaio


Depois desta carta de meados dos anos 70 do século XIX, a Maria do Espírito Santo envolveu-se com o padre, do qual teve dois filhos e o António Vicente afastou-se da irmã, embora não tenham perdido inteiramente o contacto. Neste período de tempo, viu-se ainda a braços com a doença do outro irmão, Miguel José, em processo de loucura

Em 15 de Setembro de 1884, António Vicente escreve-lhe de Lisboa, a propósito do Miguel José.

Maricas

Há um ano que aí fui a tua casa para ver o nosso pobre irmão. Notei uma falta de asseio que muito me contristou. Há poucos dias fui informado de que não convinha de forma alguma que continuasse em tua casa. Receando que uma mudança de hábitos lhe possa ser fatal, abstenho-me por enquanto de tira-lo da tua companhia, pedindo-te que sejas caridosa para com ele. Parece-me que pedindo-te isto, não te peço muito, tratando-se de teu irmão, que como tu me disseste na última vez que te falei, tem para a despesa que faz mais do que o suficiente. Por reste motivo, espera ser atendido o teu irmão António.

Há aqui uma crítica aberta à Maria do Espírito Santo sobre a forma como trata o irmão louco. Falta de higiene e até de caridade foram as acusações que o António Vicente lhe fez. Claro, eu não sei o que passou exactamente. Esta carta é aliás o primeiro documento que leio sobre o assunto. Mas imagino o drama da minha antepassada, uma menina fidalga, educada para se casar com um fidalgo de boa estirpe da região ou com algum burguês ricalhaço, ao ter que tratar sozinha do governo de extensas propriedades e ainda de um irmão louco. Nesta época, a psiquiatria portuguesa estava a dar ainda os primeiros passos em Lisboa e em Chaves não existiria nenhum clínico especializado em doenças do foro mental que pudesse socorrer o pobre Miguel, que viria a falecer 6 anos mais tarde, em 8 de Setembro de 1890, aos 52 anos, enchendo os cabeçalhos dos jornais locais, com a notícia da morte do bacharel louco.

Volto a ter notícias do General António Vicente, através de uma carta de Liberal Sampaio a Maria do Espírito Santo, datada 19 de Julho de 1894. António Vicente encontrava-se em Chaves na companhia da sua filha Elina e Liberal escreve-lhe preocupado com a forma com que Maria do Espírito Santo estaria a receber o irmão, dando-lhe muitos conselhos.

Como seu irmão aí está com a pequena, deve oferecer-lhe essa casa enquanto estivera aí na vila [Chaves], a de Outeiro Seco se quiserem passar por lá algum tempo, e no caso mais provável de provável de ir para Dadim, é conveniente mandarem-lhe um cântaro de azeite, um presunto, algum fumeiro e pinga, um cântaro de vinho e outro de vinagre e algumas batatas. Mande de tudo isto, que ele tudo precisa comprar. Será também bom oferecer-lhe de empréstimo, alguns lençóis e cobertores, porque certamente não os traria de Lisboa. Enfim, diga-lhe que mande buscar com toda a franqueza tudo aquilo, de que necessitar.

O fumeiro voltou a ser tema recorrente, mas mais importante, é que através da leitura destes conselhos, noto novamente uma certa incapacidade da minha trisavó para a resolução de assuntos práticos da existência, tais como receber o irmão e a sobrinha, ou pensar em oferecer-lhe de empréstimo cobertores e lençóis. Talvez a Maria do Espírito Santo fosse como veio a ser a neta, a minha avó Mimi, que aliás tinha o mesmo nome próprio e ela também não sabia receber. Recordo-me da minha mãe me contar, que no Natal, quando íamos passar uns dias à sua casa de Chaves, tinha que improvisar lençóis com toalhas de mesa velhas, para fazer a cama onde o meu irmão e eu dormíamos, porque a minha avó Mimi não se lembrava desses pormenores.

Em todo o caso, a carta demonstra que apesar de um certo afastamento, a Maria do Espírito Santo e António Vicente, continuaram a relacionar-se.




A doce Elina. O verso é dedicado ao meu bisavô, que estima como a um irmão.


O último dado que eu conheço desta relação entre o general e a minha trisavó, ocorreu já em 1902, pouco depois da morte desta. O filho de Maria do Espírito Santo e do Padre Liberal Sampaio, o José Maria Ferreira Montalvão tomou-se de amores pela doce Elina, sua prima direita, a filha de António Vicente e quis mesmo casar com ela. O pai, Liberal Sampaio, um homem sempre sensato e avisado, escreveu-lhe uma longa carta a 3 de Julho desse ano, dissuadindo-o desse namorado.

Vejo que continuas teus devaneios ou antes ingenuidades com a prima. Não os repreendo, porque os considero produto de primeiras impressões; mas recomendo e exijo que, em tudo e por tudo te portes de modo que não melindres o teu tio e à prima não deias o mais leve ensejo de descobrir em teus actos e palavras qualquer atentado contra o decoro que lhe é devido, trata-a não como uma amante, mas como uma irmã inocente.

Inteligente, Liberal Sampaio não se opõe directamente à relação e afirma complacente. Em ninguém veria com mais gosto brilhar as jóias da tua inolvidável mamã do que a em tua prima, para quem ela as guardava com tanto cuidado.

Mas a tua prima, que teve a infelicidade se ser criada sem mãe e a desventura de não ter por mestra uma tia que por ela se desvelaria, ensinando-lhe o governo doméstico, será a que mais convenha para tua esposa, isto é, para consorte da tua vida, para mãe dos teus filhos, para governante da tua casa?


Carta de Liberal Sampaio ao filho desencorajando-o do namoro com a prima


Além do problema da consanguinidade que Liberal Sampaio teria presente, saberia bem que a Elina, dama do Paço, com o curso superior de piano, discípula de Viana da Mota era demasiado fina, doce e impreparada para se enfiar numa aldeia transmontana, em Outeiro Seco, governar um solar e a respectiva criadagem ou a coadjuvar o marido na administração da casa agrícola.

Retrato de José Maria Ferreira Montalvão em 1902


Não sei se foram os conselhos do pai, se a oposição do tio ou se a própria Elina o desencorajou, mas o que é certo é que o meu bisavô desistiu da ideia e casou no ano a seguir, em 1903, com Ana da Conceição de Morais Alves, filha de um burguês rico de Chaves e foi um casamento feliz e longo, do qual resultaram muito filhos e a com efeito a minha bisavó Aninhas sabia governar uma casa grande. Quanto à Elina casou mais tarde em 1910, com outro primo, mais afastado, mas morreu dois anos depois, deixando um filho pequeno e não consta que tenha sido feliz.


Verso do retrato de José Maria dedicado à sua adorada Elina

Dos desvaneios que o meu bisavô sentiu pela filha do general, sobressai um pormenor curioso. Maria do Espírito Santo tinha guardado as suas jóias para a sobrinha, filha de um irmão que se afastou dela, em consequência do escândalo causado pelos filhos que teve do Padre.

Estas cartas devolvem aos dias de hoje o modo de vida do último quartel do século XIX, através das palavras dos que viveram esses acontecimentos.

Alguma bibliografia:

Famílias transmontanas : descendência de Francisco de Moraes, Palmeirim : ligações familiares e outras famílias de Trás-os-Montes / Francisco Xavier de Moraes Sarmento- . Ponte de Lima : Carvalhos de Basto, 200

1 comentário:

  1. Estimado primo
    Como sempre, amei ler mais um capítulo da história da sua família.
    O pequeno da fotografia era muito parecido com o pai, padre Liberal Sampaio, pois já vi retratos por si publicados.
    As cartas transportam nos no tempo e quase conseguimos vivenciar esses tempos. Partilho consigo este fascínio por cartas antigas , que tão bem retratam as épocas e constroem a história.
    Também tenho muitas e quero dedicar me a analisar .
    Quanto ao assunto do fumeiro, ainda hoje é assunto, não em cartas mas em mensagem e emails continuando a ser uma das iguarias transmontanas.
    Em 1742 um padre Manuel de Sampaio , natural de Nuzedo de cima foi padrinho de batismo do meu 5° avô .
    Beijinhos e votos de Boas Festas

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