quinta-feira, 3 de maio de 2012

velhas faianças: um lago e um sonho visitado por uma águia negra


Quase há dois anos mostrei aqui duas chávenas inglesas do século XIX, que recebi como herança. Não consegui identificar o fabricante, apesar de ter feito umas quantas pesquisas. Houve muitas fábricas inglesas a produzirem motivos semelhantes a este, uma paisagem formada por um lago ou rio, um par romântico nas margens ou remando num bote e ao fundo um palácio, um templo, umas ruínas ou um castelo. Portanto, com um padrão tão comum e não estando as chávenas marcadas é quase uma agulha num palheiro identificar que fábrica o fez, durante o século XIX, numa Inglaterra em plena revolução industrial, com uma produção variadíssima, que dominava o mercado mundial de loiças económicas.


Esta semana, na Feira de Estremoz encontrei uma espécie de taça de comsommé coberta (Obrigado, Maria Andrade, por me identicar a tipologia), com o mesmo padrão do meu serviço e não resisti e comprei-a. Tal como as chávenas, também não está marcada e a sua compra não me ajudou em nada a identificar a fábrica. Mas, o que consegui foi recuperar uma peça de um serviço que pertenceu à minha família há muitas dezenas de anos e cujo destino final foi o de todas as loiças, partir-se em pedaços às mãos de uma criada trapalhona ou de uma tia idosa com dedos trémulos. Esta compra foi no fundo uma forma de reconstituir na minha casa, através dos restos de 3 peças de faiança inglesa, momentos da minha infância e de um passado familiar que já não vivi, mas que conheço fragmentos por tradição oral.

A casa do Norte de onde vieram estas chávenas será vendida, senão não for em breve, será daqui a um ou dois anos e confesso que isso me causa mágoa e faz com que sonhe repetidas vezes com essa grande casa de janelas de guilhotina e soalhos de madeira. E como estes sonhos são recorrentes e sempre angustiantes, quando olho para o lago tão irreal, representado nos fragmentos deste serviço de loiça e recordo-me da canção da Bárbara, Aigle Noire, essa prodigiosa alegoria onde tudo é dito e nada é dito, acerca de uma grande águia negra que vinda de parte nenhuma nos visita enquanto dormimos,


Un beau jour ou peut-être une nuit
Près d'un lac je m'étais endormie
Quand soudain, semblant crever le ciel
Et venant de nulle part,
Surgit un aigle noir.

Lentement, les ailes déployées,
Lentement, je le vis tournoyer
Près de moi, dans un bruissement d'ailes,
Comme tombé du ciel
L'oiseau vint se poser.

Il avait les yeux couleur rubis
Et des plumes couleur de la nuit
À son front, brillant de mille feux,
L'oiseau roi couronné
Portait un diamant bleu.

De son bec, il a touché ma joue
Dans ma main, il a glissé son cou
C'est alors que je l'ai reconnu
Surgissant du passé
Il m'était revenu.

Dis l'oiseau, o dis, emmène-moi
Retournons au pays d'autrefois
Comme avant, dans mes rêves d'enfant,
Pour cueillir en tremblant
Des étoiles, des étoiles.

Comme avant, dans mes rêves d'enfant,
Comme avant, sur un nuage blanc,
Comme avant, allumer le soleil,
Être faiseur de pluie
Et faire des merveilles.

L'aigle noir dans un bruissement d'ailes
Prit son vol pour regagner le ciel

Quatre plumes, couleur de la nuit,
Une larme, ou peut-être un rubis
J'avais froid, il ne me restait rien
L'oiseau m'avait laissée
Seule avec mon chagrin

Un beau jour, ou était-ce une nuit
Près d'un lac je m'étais endormie
Quand soudain, semblant crever le ciel,
Et venant de nulle part
Surgit un aigle noir.

11 comentários:

  1. Que post tão pessoal! Nem vou comentar a beleza das peças, pois estas falam por si mesmas; prefiro ficar com o teu relato, com o compartilhar de sua tristeza em saber que em breve um imóvel onde parte de sua vida se desenrolou não será mais da família.
    É algo bem triste, mas que você transformou, ao menos para mim, em algo belo, pois toca em nossa mortalidade, em nossa vã crença de que tudo, inclusive nós, poderia ou deveria ser eterno, mas é justamente o oposto.
    abraços

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  2. Luís!
    A letra desta música tocou-me profundamente. A música e voz são fabulosas e fizeram-me sentir uma certa tristeza,mas... que já lá vai :)

    Fez muito bem em comprar a peça que aqui mostra, pois juntamente com as duas chávenas forma um trio muito bonito.
    Beijos

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  3. Fábio

    Seja bem regressado das terras de Portugal.

    De facto, neste amor pelas velharias, pelos objectos antigos pelas memórias está sempre em jogo uma tentativa desesperada de ultrapassar a morte, a velhice e o esquecimento. Mas tal como a morte faz parte do destino de todos os homens, lutar contra o esquecimento faz parte igualmente da natureza humana.

    Abraços lisboetas

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  4. Maria Paula

    A Barbara era única. Há quem diga que esta aigle noire, é autobiográfica, que é uma alusão aos abusos sexuais a que cantora foi sujeita pelo pai durante a infância e que esse pesadelo a atormentava recorrentemente na idade adulta, mas o poema, tem muitas leituras e achei que servia muito bem como fundo sonoro, a estes meus sonhos acerca de uma casa de família, que certamente irei perdere da tentativa de manter algo da infância e do passado através de objectos que vou coleccionando.

    Bjos

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  5. Mais um post muito pessoal, poético e intimista, de que, de quando em vez, vais dando nota aqui neste teu lugar tão eclético, e por isso, tão abrangente e interessante.
    As mortes anunciadas a prazo não deixam de estar envolvidas de alguma tristeza e nostalgia, mas o facto de serem inevitáveis e predizíveis, torna-as mais suportáveis, digo eu.
    Claro que uma morte lenta é sempre mais desgastante que outras, no entanto, o futuro é neutro, inexorável, não se envolve com as tristezas ou alegrias, muito menos memórias, limita-se a fazer-se cumprir.
    A nós cabe-nos, a quem tem essa capacidade, não deixar extinguir a memória, ainda que a custo de uma tremenda nostalgia, fruto da sua transmutação.
    Manel

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  6. Já gostava destas suas duas chávenas, adoro este tom lilás e o motivo decorativo, e agora foi uma sorte ter encontrado a pequena terrina igual. Todo o conjunto ficou lindíssimo nas fotografias, acompanhado do belo prato “poultry” no mesmo tom, igual a um que eu tenho e acho muito invulgar.
    É como diz, a produção de faiança na Inglaterra industrial do século XIX foi de tal maneira intensa e diversificada que é muito difícil identificar peças sem marca de fabrico ou nome de padrão. De qualquer modo ainda fiz uma pesquisa por “grapevine border”, sem resultado.
    Compreendo esse sentimento de perda e também penso que muitos de nós se ligam a objetos do passado precisamente porque os associamos a um mundo que perdemos. Eu, por exemplo, não tenho praticamente nada da casa dos meus avós maternos, desse lado da família perdeu-se quase tudo. Com as mágoas vêm as histórias e embora tudo se tenha passado na altura em que eu nasci, essas histórias fazem parte das minhas recordações familiares, da minha infância e portanto da minha vida.
    Ainda hoje passo em frente à casa que foi dos meus avós, construída nos anos 40 e com umas linhas Deco, e penso que se me saísse o euromilhões – só por milagre, porque não jogo :) – a comprava...
    Enfim, gostei muito do post e a canção da Bárbara dá um tom de melancolia nostálgica perfeitamente adequado.
    Beijos

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  7. Maria Andrade

    Chamei compoteira a esta peça sem grande certeza. Julgo que foi o Manel que lhe começou a chamar compoteira e eu fui atrás.

    Na verdade, parece-me muito grande para compoteira, demasiado pequena para terrina e não tem o formato de um prato coberto.

    Por outro lado, eu deveria indicar a medida das peças nos meus posts, mas passa-me sempre.

    Bjos e obrigado pelo seu comentário

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    Respostas
    1. Olhe, Luís, eu chamei-lhe terrina distraidamente, sem ter reparado ao escrever o comentário que o Luís lhe tinha chamado compoteira.
      Mas agora olhando melhor para a peça e considerando o tipo de asas, acho que é uma chávena "bouillon"("bouillon" cup), isto é, uma taça para caldo, neste caso com tampa.
      Vêem-se muitas sem tampa mas há uma parecida com a sua em http://chestofbooks.com/food/science/Handbook-Of-Household-Science/Clear-Soup-Or-Consomme.html
      Um abraço

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  8. Maria Andrade

    Julgo que mais uma vez terá razão e esta é talvez uma taça coberta de consommé ou caldo. Actualizei o post e agradeço-lhe o esclarecimento. Os seus conhecimentos de louça inglesa são sempre úteis e depois nestes serviços antigos usavam-se peças que hoje passaram de moda e cuja função temos dificuldade em identificar.

    abraços

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  9. Hola Luis,
    As peças nao som inglesas, son da fabrica sevilhana de Pickman y Cia, na Espanha.
    Saudos.

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  10. Olá Corbu

    Bem vindo a este blog.

    O seu comentário deixou-me muito surpreendido.

    Pesquisei no Google e encontrei muitas peças da Pickman y Cia com o motivo decorativo central exactamente igual ao de estas peças. No entanto, a borda é diferente das minhas peças, decoradas com uvas e folhas de parra.

    Também há cerca de um ou dois meses vi uns pratos na feira de velharias de Estremoz exactamente iguais a estes, com a bordadura decorada com uvas, mas marcadas Davenport.

    Fiquei agora na dúvida se serão espanhóis ou ingleses

    Um abraço e muito obrigado

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