terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O mais delirante rococó alemão: um episódio da vida de Sto. Agostinho

 
Naquela feira de alfarrabistas do Chiado comprei esta estampa de um delirante estilo rococó, representando um episódio da vida de Sto. Agostinho. Como de costume, parti à procura de mais dados sobre esta gravura, pesquisando no google usando dois termos associados: uma palavra extraída da legenda, S. Augustini e Klauber Cath, a assinatura do que me pareceu o impressor. Rapidamente descobri, que esta estampa saiu de uma oficina de impressores alemã, que foi das mais activas de toda a Europa ao longo do Século XVIII. Esta oficina da cidade de Augsburg pertencia à família Klauber, uma dinastia de impressores, que ao longo de três gerações se especializou na produção de registos e ilustrações de carácter religioso.

O frontispício da Vita Sancti Augustini Doctoris eximii in aere Universo orbi / exhibita a P. T. Z. A. -  [Augustae Vindelicorum] : [in verlag Ios. und Ioan[n]. Klauber], 1758
Fiz mais umas pesquisas aqui e acolá e descobri que a minha gravurazinha fazia parte de obra intitulada, Vita Sancti Augustini Doctoris eximii in aere Universo orbi / exhibita a P. T. Z. A, impressa em Augustae Vindelicorum, o nome latino para a Augsburgo, por Johann Baptis Klauber, em 1758. Segundo percebi na Biblioteca Nacional de Espanha, onde encontrei o registo catalográfico, esta Vita Sancti Augustini Doctoris não era propriamente um livro, mas antes um álbum de estampas, acompanhadas por algum texto em latim, descrevendo os principais episódios da Vida de Santo Agostinho de Hipona (354-430).


A cena que observamos na minha gravura mostra Sto. Agostinho recebendo o hábito das mãos de Santo Ambrósio, enquanto do lado esquerdo é observado por Santa Mónica, sua mãe e ainda pelo seu filho, Adeodato. Com efeito, Agostinho de Hipona antes se ter decidido pelo celibato e pela vida religiosa, manteve uma ligação com uma mulher durante 14 anos da qual teve um filho, Adeodato. Agostinho de Hipona é um homem que se decide pelo Cristianismo já tarde, com cerca de 32 anos.

Esta cena não é propriamente um episódio histórico, pois embora S. Ambrósio tenha sido o responsável, pelo baptismo de Agostinho, este não se encontrava com Agostinho, quando alguns anos mais tarde se tornou eclesiático e fundou o primeiro mosteiro em Hipona, uma antiga cidade do Norte de África, perto de Tunis, a actual capital da Tunísia. No fundo, a gravura quererá representar que foi sobre dos ensinamentos espirituais de Santo Ambrósio, que Santo Agostinho tomou o hábito religioso e fundou uma comunidade monástica. Mas, a importância daquele Santo de Hipona não foi só a fundação de uma comunidade monástica. Sto. Agostinho foi também o primeiro a escrever uma regra, ou seja um conjunto de normas, sobre a qual a uma comunidade religiosa deveria viver. Ele é por assim, dizer, juntamente com São Bento de Núrsia, um dos pais do monaquismo ocidental.

Naturalmente a importância de Santo Agostinho na história vai muito para além de ter esboçado a primeira regra monástica. Foi antes de tudo um pensador, que fez a síntese entre a filosofia grega e o judeio-cristianismo das Escrituras. 

Outra estampa do ciclo Vita Sancti Augustini Doctoris eximii in aere Universo orbi.
Santo Agostinho fez a síntese entre a filosofia grega e o judeio-cristianismo das Escrituras

Fiquei então muito contente por ter identificado a obra de onde foi extraída a minha estampa, Vita Sancti Augustini Doctoris eximii in aere Universo orbi, o nome dos seus gravadores Johann Baptist Klauber (1712-1787?) e Joseph Sebastian Klauber (1700?-1768) e ainda por ter encontrado uma explicação sobre a iconografia da estampa.

Fiz depois algumas investigações sobre o autor do desenho um tal Johann Anwander (1715-1770), um pintor alemão, rococó, célebre pelas suas pinturas a fresco em tectos de igrejas, cheias de complicados efeitos cenográficos, mas ao mesmo tempo graciosos e que os conseguiu reproduzir também no papel, como nestas estampas sobre a vida de Sto. Agostinho.

Um fresco da autoria Johann Anwander

Tinha ficado com as minhas investigações sobre esta gravura por aqui, quando por acaso me passou pelas mãos uma livrinho de Marie-Thérèse Mandroux-França Information artistique et «mass-media» au XVIIIe siècle : la diffusion de l'ornement gravé rococo au Portugal - Braga : [s.n.], 1974, que me ajudou a entender como é que uma gravurazinha alemã de Augsburgo veio parar em Portugal.

Augsburgo foi durante todo o século XVIII um centro de edição particularmente activo. Os seus impressores copiaram os tratados de arquitectura e de desenho de ornato franceses, que continham os novos modelos do estilo rococó, e difundiram-nos por toda Alemanha através de estampas contra faccionadas. O que eram modelos imaginários nos manuais franceses, tornaram-se edifícios concretos no Sul da Alemanha e e a assimetria, a curva e a contra curva foram exploradas até às últimas consequências, criando um barroco, absolutamente delirante.

Gravura da Biblioteca Nacional de Portugal. As estampas impressas em
Augusburgo foram veículos privilegiados para os arquitectos e entalhadores portugueses tomarem conhecimento das formas rococó

Em meados do século XVIII, em Augusburgo já se tinha desenvolvido uma verdadeira indústria de estampas rocaille, que traduziam e reflectiam a arquitectura das igrejas de peregrinação da Baviera. Essas gravuras eram na sua maioria registos ou imagens de livros religiosos, que eram depois vendidas em grandes quantidades para toda a Europa, inclusive para Portugal. Marie-Thérèse Mandroux-França descobriu centenas dessas estampas de Augsburgo, nas bibliotecas e arquivos portugueses, muitas provenientes de antigas livrarias conventuais, como da Abadia beneditina de Tibães e pensa mesmo, que foi através delas que arquitectos como André Soares ou escultores como Frei José António Vilaça (1731-1809) tomaram contacto com o estilo rocaille, que depois aplicaram em obras emblemáticas portuguesas, como o Mosteiro de Tibães. 

Detalhe de Tibães. Talha de André Soares


Mas, segundo Marie-Thérèse Mandroux-França as estampas dos impressores de Augusburgo não influenciaram só os arquitectos e entalhadores portugueses. Serviram também de modelo aos gravadores de registos de santos em Portugal, que ignorando as complicações espaciais e de pespectiva dos gravadores alemães, copiaram as molduras rocailles, que enquadram os santinhos, nas quais parecem às vezes deslocados. A influência dos registos alemães não se fez só sentir na gravura como se estendeu também aos registos de azulejos.

Concluídas estas pequenas investigações, a minha estampa ganhou um novo significado. Foi uma das muitas imagens provenientes de Augusburgo, que serviram de modelo para a difusão do estilo rococó em Portugal. Só fiquei com pena de não ter comprado as restantes estampas que por lá ficaram.

13 comentários:

  1. Uma estampa maravilhosa. Um post que me deliciou. :))
    Alguma pena de não a ter descoberto primeiro. :)) Sorry. :))
    Luís, Santo Agostinho é um dos meus predilectos.

    «O Elixir do Prazer

    Que é, pois, o que se opera na alma, quando se deleita mais com as coisas encontradas ou reavidas que estima, do que se as possuísse sempre? Há, na verdade, muitos outros exemplos que o afirmam. Abundam os testemunhos que nos gritam: -«É assim mesmo!». Triunfa o general vitorioso. Mas não teria alcançado a vitória se não tivesse pelejado e quanto mais grave foi o perigo no combate, tanto maior é o gozo no triunfo.» in Confissões
    Beijinho.

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  2. Cara Ana

    Neste post limitei-me a abordar os aspectos artísticos e iconográficos da estampa e referi de passagem só a importância de Sto. Agostinho como pensador. É um homem tão importante para a história das ideias e do cristianismo, que se quisesse dar uma pincelada sequer das suas teorias, teria que ler umas quantas coisas e mesmo assim, teria dificuldade em expor de forma sintética e clara os traços do seu pensamento. Em todo o caso, tenho admiração pela figura, que transformou o Cristianismo numa religião mais filosófica.

    Um abraço


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  3. Extraordinário, como sempre. A difusão de imagens através de estampas é um tema interessantíssimo. Parabéns, mais uma vez, pelo seu blogue.

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  4. Cara Margarida

    Numa época como a nossa, que somos bombardeados segundo a segundo com imagens por todo lado, pela internet, pela televisão, pelos jornais e pela publicidade nas ruas, temos dificuldade em conceber um tempo pobre em imagens, em que as estampas eram as únicas representações gráficas, que circulavam facilmente pela Europa fora.

    Um abraço

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  5. Caro Luís,

    Pois nem sei que diga... a não ser que tenho mesmo de ir fazer uma visita a essa Feira do Chiado!! A avaliar pelas suas compras, deve estar recheada de preciosidades!
    E já agora, por acaso já a emoldurou? É que na minha modesta opinião, essa ainda é mais bonita do que aquela outra da antiga seguradora.
    Não sou muito versada em histórias de Santos. Costumo apelidar-me de "uma ovelha tresmalhada do rebanho", no que ao Catolicismo diz respeito, mas de uma coisa eu tenho a certeza:
    - Gosto por demais de toda a estética que envolve os assuntos religiosos, e aqui englobo os paramentos, a arte sacra, os missais antigos, os enormes livros de cantochão, os santinhos, os registos antigos, etc, etc, etc.
    Parabéns por mais uma belíssima aquisição!
    E o Natal vai ser na capital?


    Beijinho

    Alexandra Roldão

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    1. Alexandra

      Embora tenha sempre umas quantas molduras de reserva, que vou também comprando nas feiras de velharias, ainda não me decidi por nenhuma, para encaixilhar este Sto. Agostinho. Muito menos lhe encontrei um sítio em casa. Tanto mais que é uma estampa pequena e terá que ficar ao nível dos olhos de um adulto.

      Também sou um ímpio que se delicia com arte sacra.

      Passo o Natal em Lisboa e depois vou para o Alentejo.

      Bjos
      .

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  6. Luís, esta gravura é espetacular, sem dúvida! É realmente merecedora de toda a sua pesquisa e da persistência que mais uma vez revelou.
    Sabe que também já tenho passado nessa feira da Rua Anchieta e até já lá fiz uma ou duas boas compras, mas de livros. Foi realmente pena ter lá deixado as outras estampas, mas quem sabe se ainda por lá andam?
    É impressionante o percurso que o Luís conseguiu traçar, mesmo contendo a estampa, afortunadamente, a informação necessária para a identificação da obra original. E que obra magnífica deve ser!
    Não sabia nada sobre o papel de Augsburg como importante centro impressor de livros e gravuras no séc. XVIII e por isso foi com muito interesse que li também essa parte do seu texto. E depois a difusão dos desenhos por toda a Europa, incluindo Portugal...
    Enfim, mais uma belíssima entrada para a obra que espero esteja já na sua mente levar a cabo! ;)
    Beijos

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  7. Maria Andrade

    Este Sábado estou com vontade de voltar à Rua da Anchieta, para ver se encontro mais estampas deste ciclo da vida de Sto. Agostinho. O problema é o espaço para as colocar.

    No fundo, para fazer as pesquisas para estes posts, uso a experiência profissional, que acumulei ao longo de anos a pesquisar em bases de dados e na internet. Acredite que dava bem mais trabalho fazer pesquisas nos sites de documentação da União Europeia.

    Em todo o caso, o facto de muitas bibliotecas e museus terem colocado as suas colecções em linha facilita muito este trabalho que aqui faço.

    Até ao momento, desconhecia o papel desempenhado por estas estampas impressas em Augsburg na difusão do rocaille em Portugal. A teoria de Marie-Thérèse Mandroux-França, mulher de José Augusto França, pareceu-me muito bem fundamentada e lógica.

    Bjos

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  8. Luís
    Parabéns pelo seu texto, tão bem construído e fundamentado.
    Como muito bem salientou a Escola de Augsburgo formou importantes artistas locais, dentre eles salientando-se os irmãos Klauber, que ficaram mais conhecidos pela produção de estampas religiosas figurativas, envolvidas em grandiosas e artísticas encenações.
    Estas estampas vão expandir-se pela Europa e chegar aos nossos conventos, onde influenciaram a produção dos "registos", alguns elaborados, outros mais simples e populares, dando corpo ao carácter devocional das pessoas, que assim perpetuavam um momento importante nas suas vidas.
    if

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  9. Cara If

    Muito obrigado.

    A compra desta estampa e a pesquisas que fiz posteriormente permitiram-me descobrir com surpresa o trabalho desta família de impressores klauber e a importância das suas estampas na difusão do estilo Rococó em Portugal.

    Um abraço

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  10. Luís,
    A imagem conduz-me às palavras. Não conheço com profundidade Santo Agostinho mas o que li dele maravilhou-me. A sua postagem é excelente e conduz-nos a pensar e a procurar,
    Bem haja.:))

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  11. Não conheço o suficiente de Sto. Agostinho.
    No entanto realizei algumas leituras sobre ele aquando da peça de teatro em que o nosso amigo Luís encarnou aquela personagem, orientadas pela estranheza que senti pelo facto daquele homem ter seguido uma via de racionalismo ascético religioso, depois de ter tido uma vida de homem vulgar, com mulher e filho, sendo em simultâneo um pensador e filósofo, professor em centros importantes da cristandade da altura, e tendo como antecedente uma via de pensamento maniqueísta.
    Confesso sentir alguma atração por esta última via, não tanto pela sua dualidade de bem/mal, que está longe daquilo que acredito, mas pelas tentativas do criador desta forma de pensamento em conciliar as várias vertentes das religiões mais importantes à época, o que constitui uma forma de ecumenismo bastante interessante, a meu ver.

    Quanto ao barroco, resposta da contrareforma católica nos países com tradições mais ligadas aos movimentos protestantes, ou mesmo na Áustria dos Habsburgos, desenvolveu-se tarde, relativamente ao resto da Europa, por várias razões, sendo uma das mais importante o envolvimento desta região na guerra dos trinta anos, que provocou praticamente uma hecatombe nas populações das regiões em causa, e à ameaça turca que pendia sobre a Áustria.
    Mas quando o barroco desabrochou foi com uma força e uma exuberância tal que a sua ligação ao rococó, foi natural e consequente, sobretudo na arquitetura.

    Bem, o comentário já ultrapassa o "permitido por lei", mas por vezes sinto-me compelido a colocar por escrito as ideias, com o objetivo de lhes dar uma forma compreensível.
    Manel

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  12. Manel

    Na Faculdade, tive no segundo ano da Faculdade uma cadeira de cultura medieval onde se falou muito sobre Sto. Agostinho. Mas aos 21 anos faltava-me maturidade para apreciar este pensador da Igreja, que marcará todo o cristianismo. Aliás, foi para sublinhar o valor intelectual desta figura, que escolhi deliberadamente para o post uma imagem de Sto. Agostinho com uma biblioteca barroca ao fundo.

    Este rocaille alemão que se pode observar nas estampas é de facto delirante e delicioso. Julgo que serão imagens cheias de musicalidade barroca. Naquele tecto pintado parece que há notas de música a elevarem-se aos céus.

    Um abraço

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