sexta-feira, 2 de maio de 2014

Ainda o covilhete de faiança Miragaia


Bem, ultimamente ando a repetir as mesmas peças no blog, mas estou a sempre a descobrir mais dados novos sobre elas e por isso volto por vezes ao mesmo assunto.
Faiança portuguesa. roteiro: Museu Nacional de Arte Antiga. Lisboa. IMP, 2005
Em primeiro lugar, descobri que além do Museu Nacional de Soares dos Reis, o Museu Nacional de Arte Antiga também possui um destes covilhetes da série País de Miragaia. Contudo, apesar das dimensões serem iguais, no exemplar do Museu das Janelas Verdes o fabricante colocou o desenho assente na base do triângulo. Pelo contrário, no meu covilhete e do Manel, o desenho do casario assenta na ponta do triângulo. A marca do covilhete do Museu Nacional de Arte Antiga é também diferente. Por extenso, está escrito Miragaia Porto.

Covilhete Davenport

Embora na decoração Miragaia copiado livremente View in the Fort Madura da
Herculaneum Pottery, nas formas parece ter colhido inspiração nos covilhetes de outras fábricas inglesas, como este covilhete que o MAFLS teve a bondade de me enviar imagens.

View in the Fort Madura da
Herculaneum Pottery
Já aqui se escreveu várias vezes que este motivo decorativo país de Miragaia  é uma adaptação livre de uma loiça inglesa, fabricada pela Herculaneum Pottery de Liverpool, mais particularmente do padrão View in the Fort Madura, que terá sido fabricado mais ou menos entre 1810 e 1820.

View in the Fort, Madura. British Library

Conforme, a Maria Andrade já tinha explicado no seu blogue, a partir de uma leitura que fez do José de Queiroz, esta View in the Fort Madura foi inspirada numa gravura do pintor paisagista inglês, Thomas Daniell, (1749-1840), que assistido pelo seu sobrinho, William Daniell, entre 1786 e 1793, esteve na Índia, onde executou uma série de desenhos de paisagens e monumentos indianos, que publicou quando regressou a Inglaterra, entre 1795-1808, num álbum em 6 volumes, intitulado Oriental Scenery.

Frontispício de um dos volumes da Oriental Scenery. British Library
Portanto, o forte Madura não é uma mera invenção romântica. Existiu e existe ainda na Índia. Na verdade Madura é Madurai, que foi capital da dinastia Nayaka, uma família que governou parte do Sul da Índia, a chamada região dos Tamil, durante os séculos  XVI e XVII.

Pavilhão em pedra construído por Tirumala Nayak

O conjunto arquitectónico representado na loiça de Miragaia e na Herculaneum Pottery também é verdadeiro. Trata-se de um pavilhão em pedra construído por Tirumala Nayak, o mais famoso dos soberanos Madurai, no lado leste do forte e era usado durante festivais religiosos. Esta estampa em particular exerceu uma grande atracção na Europa e o pavilhão foi não só copiado pelos fabricantes ingleses de faiança, como também pelos franceses, que o reproduziram em papéis de parede. Todas estas informações colhi-as na British Library, onde esta estampa se encontra digitalizada.

Claro, como a Maria Andrade muito bem referiu no seu blog, os ceramistas ingleses, não fizeram uma cópia exacta. Aproveitaram o pavilhão, mas usaram elementos daqui e dacolá de outra estampas da Oriental Scenery, de Thomas Daniell, talvez por exemplo, tenham colhido inspiração nesta vista sobre rochas esculpidas em  Mavalipuram.

Sculptured Rocks, At Mavalipuram, On The Coast Of Coromandel. British Library

Em suma, este motivo decorativo País tem origem numa gravura, fenómeno frequente em arte e ao qual a faiança não escapou e reproduziu muitas vezes estampas representando, paisagens, monumentos, castelos e cidades de diferentes países. Estas estampas com vistas circularam por toda a Europa no século XVIII e XIX. Os ingleses que foram pioneiros no turismo eram especialistas na sua produção. Mas também em França, se imprimiam as vues d'óptique com vistas de países, que eram depois passadas numas caixas ópticas, de que já aqui falei, os zogroscópios. Em Itália, no século XVIII, estiveram também na moda as veduttas, nas quais se notabilizou Piranesi. Portanto, quando se fala em País, está-se a falar em paisagens, em vistas.


15 comentários:

  1. Luis,

    Paz e Sorte,

    É muita informação contida num pequeno triângulo de louça azul branca: paisagem natural (aí foi com Deus), arquitetura, desenho, pintura ou gravura, livros, quadros, bibliotecas, os fautores de tudo isso, o intercâmbio entre nações... e por fim os colecionadores de velharias, os blogueiros e seus leitores (Será que entendi que "país" remete-se à "paisagem" ?).

    Muitas vezes estes seus posts se desdobram em descobertas posteriores. É uma das riquezas das velharias.
    Por aqui o C.Deveikis do TEMPODOGUARANADEROLHA , que é um incansável nas pesquisas de seus posts, sobretudo quando é vidro (seu carro chefe) faz um trabalho semelhante. Há também o Fabio com suas louças e azulejos.

    Como digo para eles tenho dito para você: um comentário para marcar a visita. Sem nada para enriquecer na maioria das vezes, mas para cumprimentar e agradecer pela partilha de um gosto e de um bem.

    Um abraço.

    Amarildo

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  2. Amarildo

    Em primeiro lugar fico contente com as suas palavras, porque isso significa que sou lido e não ando aqui a escrever para o boneco.

    As várias artes, a faiança, a pintura, a arquitectura e a escultura não são independentes e muitas vezes a relação que se estabelece entre elas é através da gravura, o veículo privilegiado de transmissão de imagens, numa época em que não existia a fotografia, o cinema, a televisão ou a internet.

    Na verdade, as estampas da Oriental Scenery tiveram imenso impacto em Inglaterra e serviram de inspiração não só para a faiança, mas também para a arquitectura e para o desenho de novos jardins e contribuíram para difundir o gosto pela arte indiana na Europa.

    O pequeno covilhete de Miragaia é uma reminiscência desse gosto pela arte indiana, que alimentou o gosto europeu no século XIX.

    Um abraço

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  3. O Luís enriqueceu muito a história com a publicação destas gravuras da British Library. Eu dificilmente lá teria chegado, mas o que é que o Luis não consegue descobrir on line?!
    Também achei muito curiosa esta versão do covilhete com uma diferente orientação da estampa.
    Não haja dúvida que este motivo tem sempre novas pontas por onde se pegar e sempre com muito interesse.
    Já tenho saudades de voltar à faiança inglesa... ;)
    Bjos

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  4. Maria Andrade

    Quando escrevi este post fui consultar o seu blog, porque me lembrava que já tinha pegado neste assunto e nesse momento senti falta dos seus célebres chás das terças-feiras, onde forneceu tantas informações úteis sobre faiança e porcelana inglesas.

    Tenho ideia que muita da faiança inglesa tem origem em estampas. Nem sempre temos é os dados todos que nos permitam identificar essas gravuras, que lhes serviram de matriz. Por outro lado, é curioso que alguma da loiça portuguesa copiou também a faiança inglesa, como neste caso e assim estamos perante uma verdadeira árvore genealógica de cópias, o que é muitíssimo engraçado.

    Bjos

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  5. Viva, Luís.

    Apenas uma pequena nota para referir que se conhece um formato semelhante a este, com diferente decoração (aquela que parece ser uma variante do motivo Swiss Fishing Scene), na produção da fábrica inglesa Davenport.

    A marca corresponde ao período 1815-1860, sendo a série datável de 1835-1840 segundo os peritos na produção Davenport.

    Saudações!

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    1. Caro MAFLS

      Não conheço, mas estou cheio de curiosidade. De facto, na net aparecem muitos pickle dish de formato triangular em faiança inglesa, datados do século XIX, mas o formato de que me fala não conheço. Se tiver a bondade de me enviar um link, agradecia pois fiquei curioso

      Um abraço

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    2. Prezado Luís:

      O "link" demorará algumas semanas, pois terá quer ser obtido em Chaves...

      Entretanto seguirá ainda hoje "link" de outra peça desse mesmo serviço Davenport.

      Saudações.

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  6. Um registo assaz interessante.
    Gostei muito das gravuras. O seu espírito dedutivo é louvável.
    Que engraçado, acho que gosto mais do motivo do seu covilhete, virado ao contrário. Terá sido uma peça em muitas? Terá sido mais corrente o desenho do MNAA?
    Questões se calhar difíceis de responder sem um périplo pelos museus europeus.
    Um abraço!:))

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    1. Cara Ana

      Não sei de todo qual seria a disposição mais comum. Se a do meu covilhete se a do MNAA. A deste Museu tem uma marca diferente, que talvez possa corresponder a um período cronológico um pouco diferente, mas não sei. Talvez ainda dentro do mesmo serviço, pudesse haver peças com uma disposição diferente, o que tornaria uma mesa posta com o conjunto inteiro muito atractiva. Enfim, são tudo conjecturas.

      Um abraço e obrigado

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  7. Costuma dizer-se que, de cada vez que se ouve uma música, ou se lê um livro, se descobrem pormenores e sensações diferentes. O mesmo sucedeu consigo relativamente ao seu covilhete, e tudo isso é resultado
    das suas capacidades de investigação e perseverança,as quais me deixam sempre pasmada!!
    E que mais acrescentar? Resta-me agradecer-lhe a partilha de todos estes preciosos dados.
    O seu blog é, e certamente continuará a ser uma referência no panorama das velharias!

    Beijinho

    Alexandra Roldão

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    1. Alexandra

      Concordo plenamente consigo. Há filmes que já os vimos dez vezes e estamos sempre a reparar em pormenores novos cada vez que os vemos.

      Relativamente ao Blog, o que faço aqui é contar em pequenos episódios os avanços das minhas pesquisas, que muitas vezes são enriquecidos com os contributos dos comentadores.

      Um abraço

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  8. Sobre este motivo escrevi no blog da Maria Andrade alguma coisa que me pareceu, e continua a parecer relevante.
    Recordo algumas excertos:
    « Este aspeto do aparecimento deste motivo dito "país" em peças de fábricas diferentes como Miragaia e Santo António, parece-me que tem como origem a posse destas mesmas fábricas sob o mesmo dono, Francisco da Rocha Soares, durante o período que vai de 1824 a 1833 (com várias outras fábricas à mistura também, o que vem baralhar todo este problema, mas vou concentrar-me nas duas fábricas em questão).
    Segundo o catálogo de Miragaia (pg. 247) este tipo de decoração teria tido início em Miragaia, no entanto, após o arrendamento de St. Ant. em 24, teria passado para esta fábrica a produção deste motivo enquanto, e em simultâneo, teria sido abandonado na fábrica original.
    Assim, seria possível que este motivo tivesse tido origem em Miragaia, por volta dos inícios da segunda década do séc. XIX, e que, com os arredamentos de outras fábricas (Sto. António de 1829 até 1833, Massarelos de 1829 a 1844) que entretanto Rocha Soares foi conseguindo, este fosse passando para a produção dessas unidades, aí se mantendo enquanto era abandonada na original. 
    Aliás, segundo o mesmo catálogo, operários e formas de Miragaia passaram para a fábrica de Sto. António, após a falência da primeira, o que vem baralhar de sobremaneira a identificação das peças quando não marcadas, o que parece uma constante na de Santo António.
    É também interessante observar que este motivo "país" pertence ao segundo, e último, período de laboração de Miragaia, 1822-1850, denotando já à influência inglesa tanto de padrões como de composição das pastas, com as inovações desenvolvidas dos "stoneware", "creamware", "pearlware", o que não era de estranhar, face à derrota napoleónica e a ascendente supremacia da indústria inglesa na Europa e em Portugal, muito particularmente. 
    Tanto mais que o primeiro período daquela unidade fabril tinha estado muito ligada à produção francesa de Moustiers e Rouen, por exemplo, e, por osmose associativa, igualmente à holandesa de Delft (o que não seria de estranhar, pois parece que, segundo Queiroz, um dos mestres tinham passado ou estado em França).
    Tal como foi referido já (...), a origem deste motivo terá sido o "View in Fort Madura", então produzido pela Herculaneum Pottery, desde os primeiros anos do séc. XIX, baseado num desenho publicado em 1797. 
    Claro que o desenho final foi feito a partir de uma miscelânea de outros motivos tirados de várias gravuras chegando-se mesmo ao cúmulo de se colocar sobre o pavilhão mais alto, com cúpula, de origem hindu, um crescente de origem islâmica. Era de quem não entendia nada das complexidades religiosas, sociais, raciais e políticas envolvidas! 
    O arco que se encontra logo abaixo do pavilhão com cúpula provém de um local que se situava a milhares de quilómetros de Madura.
    Um desenho para consumo europeu e que os povos orientais deveriam tomar como afronta, se acaso chegassem a reconhecer aquela miscelânea! 
    Claro que na passagem para o nosso motivo "país" tudo isto se alterou e desvirtuou, a bem das religiões e regiões envolvidas! 
    Ganhou a harmonia e a adaptação das formas em detrimento das diferenças geográficas, religiosas ou outras.»
    Desculpa repetir excertos daquele comentário que deixei no blog da Maria Andrade, mas pareceu-me que se poderia incluir neste teu post.
    Manel

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    1. Manel

      A Oriental Scenery de Thomas Daniell teve o mérito de colocar a arquitectura indiana na moda. O Royal Pavilion, em Brighton , projectado por Nash, foi influenciado pelas estampas da Oriental Scenery.

      No fundo este covilhete de Miragaia faz eco dessa influência da Índia.

      Abraço

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    2. Prezados e de Boa Sorte Luis e Manel,

      A gente que junta velharias, compara peças, modelos, artistas e fabricantes, percebe logo que há uma apropriação (replicada simplesmente ou com todo toque de originalidade) das peças advindas de outras culturas e épocas. Aliás, penso que isto se dê, em certa medida, em tudo o que é humano (políticas, credos, leis, etc.)

      E o interessante disso, como você, Luis me disse em resposta, se deveu, pelo menos no período em questão deste post, aos gravadores e às gravuras.
      Realmente eles fizeram proezas. Podemos dizer que foram mais que câmaras fotográficas, foram uma espécie de "rede social" gravada.
      Como o nosso Aleijadinho poderia ter feito Congonhas sem que se desenhasse Braga? Parece que também painéis de azulejos portugueses do Rio tiveram alguma influência nas imagens narigudas e expressivas de nosso tão ilustre artista.

      Quanto a vocês com seus covilhetes indiano-anglo-franco-portugueses hindu-católico-islâmico-protestantes e ateus, são uns sortudos. Mas penso que o Manel levou uma ligeira vantagem por não ter comprado junto uns gatinhos... Ou será que foi o Luis, por tê-los?

      Um abraço, sobretudo para o Manel que só podemos enviar por aqui.

      Amarildo

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    3. Realmente, Amarildo, a arte é muitas vezes uma gigantesca rede de cópias sobre cópias e a gravura tem sido um veículo privilegiado na transmissão das imagens de país para país, de região para região.

      Não há mal nenhum na cópia. Aliás, nunca se copia inteiramente. Há sempre qualquer coisa que se introduz de novo e muitas vezes a cópia suplanta o original.

      No passado o acto de copiar era bem visto. Os pintores ou os escultores tomavam como exemplo os mestres da antiguidade ou da Renascença. Muitos artistas viajam até Roma para se inspirarem nas ruínas do passado clássico.

      O conceito de originalidade na arte é mais uma coisa do século XX, quando um tipo como o Pollock pinta no chão e pretende criar algo inteiramente novo.

      Um abraço

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