quinta-feira, 24 de setembro de 2015

A perpétua felicidade


Santa Feliciana

Há santos do calendário cristão que estão mais esquecidos que as antigas divindades da Grécia ou de Roma. Se Vénus, Júpiter ou Plutão terminaram a sua carreira como deuses, continuam a fazer aparições regulares na literatura e no cinema. A mitologia clássica está sempre na moda, mas quem ainda hoje sabe quem é a Santa Feliciana?


E no entanto, Feliciana deve ter sido objecto de algum culto e devoção, pois ainda recentemente comprei uma estampa, representando esta santa, uma coisa talvez primeira metade do XVIII ou um pouco mais antiga, já que lhe faltam os ornatos que costumam decorar estas imagens nos finais de setecentos. Em tempos alguém rezou a esta santa, acreditou nos seus poderes miraculosos e comprou esta estampa impressa por um tal Anjos, para a colocar entre as páginas de um livro de orações. Aliás, encontrei outra gravura representando esta mártir, na colecção da Casa Martins Sarmento, impressa em Lisboa, por Francisco Manuel e atribuída a Teotónio José de Carvalho, o que demonstra que a devoção a Felicidade não seria uma coisa muito rara no século XVIII. Talvez ainda hoje haja por esse país fora, alguma romaria em honra da Santa Feliciana.
Estampa da colecção da Sociedade Martins Sarmento

Apesar do esquecimento a que almas mais devotas votaram a Santa Feliciana ou Felicidade, esta mulher, ao contrário de muitos santos e santas do calendário cristão teve uma existência bem real, que está documentada. A jovem Felicidade, foi martirizada pelos romanos em Cartago, no ano de 203, juntamente com Perpétua e outros três jovens, Saturo, Revocato, Saturnino e Secondino e desse martírio existe um testemunho escrito, o Acta Perpetuae et Felicitatis, de quem presenciou e viveu os acontecimentos. A primeira parte do texto é o diário de Perpétua, a segunda parte o relato de Saturo e a terceira foi escrita por um testemunho ocular do martírio, que alguns investigadores atribuem a Tertuliano. Esse documento escrito em latim foi descoberto por Luca Olstenio e publicado por Pierres Pussines em 1663. Em 1890, apareceu um outro relato escrito em grego, que coincide em linhas gerais com o primeiro. 

A Acta Perpetuae et Felicitatis é um documento quase único acerca das perseguições e martírios dos primeiros cristãos, mas vistos pelos próprios, sem as lendas, que séculos de transmissão oral acrescentaram normalmente a estes casos.
Duas jovens cristãs aguardando o martírio, na visão perversa do século XIX do pintor vitoriano St George Hare (1857-1933). National Gallery of Victoria, Melbourne
Os jovens em questão pertenciam a famílias, abastadas de Cartago, excepto Felicidade, que era escrava de Perpétua. Aliás o culto às duas jovens costuma ser conjunto. Perpétua e Felicidade tinham filhos pequenos, que foram poupados, mas as duas não escaparam ao martírio. Foram postas na arena onde foi lançada uma vaca selvagem, que acometeu sobre elas. Normalmente, os animais eram escolhidos consoante o sexo dos prisioneiros. Posteriormente os sobreviventes foram decapitados.

Explica-se assim a iconografia desta estampa. A jovem empunha a palma do martírio, noutra mão segura a espada pela qual foi decapitada e na parte inferior está representado um bicho feroz, cujos cornos se confundem com a prega do vestido. Houve uma outra S. Felicidade, também martirizada em Roma, algumas décadas antes, mas essa costuma ser representada com os seus sete filhos.
Claro, neste culto a estas duas santas, há também um jogo de palavras, a perpétua felicidade é afinal um objectivo que todos nós perseguimos e as duas jovens terão conseguido encontra-lo sacrificando a sua vida a Deus. Pudéssemos nós, que não temos fé, também encontrar a felicidade, ainda que fosse só passageira.

10 comentários:

  1. Luís,
    Revela-nos aqui mais uma santa, para mim desconhecida (o que também não é de admirar!!!) com a sua história real e bem documentada!
    Realmente as gravuras antigas escondem muita informação quase codificada, pelo menos para quem as lê a partir desta sociedade essencialmente laica descrente do séc. XXI.
    São desenhos ingénuos mas muito atraentes, cheios de encanto, que felizmente o Luís vai encontrando, estudando e partilhando aqui connosco acompanhados de textos sempre muito elucidativos!
    Um bom domingo! Bjos.

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    1. Maria Andrade

      logo no início do meu blog tinha já apresentado uma Santa Felicidade, representada com uma iconografia diferente, mas explorei pouco a história desta figura, que teve uma existência real e documentada. Em todo o caso é interessante comparar http://velhariasdoluis.blogspot.pt/2009/11/registos-de-santos-ii.html.

      bjos e boa semana

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  2. Luís,
    Obrigada por trazer aqui este apontamento. Conhecia mas a forma como a revelou deu-me prazer a ler.
    É sempre agradável visitá-lo.
    Bom Domingo. :))

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    1. Ana

      Obrigado pelo comentário. Pela net fora encontram-se algumas traduções da Acta Perpetuae et Felicitatis e são muito curiosas as descrições dos sonhos de Perpétua. É sempre estranho ler os sonhos que alguém teve no século III da nossa era. há também um documentário sobre o assunto, que se pode ver no youtube.

      bjos e bom início de semana

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  3. Luis,

    Felicidade Sempre.

    Apesar de terem se tornado, em certo sentido, menos importantes que os deuses e heróis da mitologia clássica,os nomes de S.Perpétua e S Felicidade foram
    mantidos na reforma que sofreu o Cânon Romano no Concílio Vaticano II. Assim em cada Missa rezada são estas mártires particularmente honradas.Se bem que foram admitidos ou reintroduzidos outros Cânones que não trazem seus nomes e mesmo no CR o trecho da oração onde se encontram, juntos a outros de grandes testemunhas da Fé, está entre parêntesis, isto é, de como uma fórmula facultativa ou mais breve.

    Penso que a Arte, aqui cumpre seu principal papel: enaltecer o humano naquilo que tem de mais honroso. Esta pequena gravura foi concebida e executada neste sentido;E ainda bem que perdurou pelos tempos e chegou em mãos piedosas ainda que de descrente...

    Um abraço.

    ab

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    1. Amarildo.

      Obrigado pelas suas observações sobre o Cânone Romano, que enriqueceram o conteúdo deste post.

      Gostei muito da expressão "mãos piedosas, ainda que de descrente". Sabe que embora não tenha fé, tive uma edução católica, da qual herdei uma certa espiritualidade, que julgo ser importante para a minha percepção do mundo e da cultura. Talvez o pior que haja seja o materialismo, que centra na economia ou na gestão toda a visão do mundo.

      um abraço

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  4. Mais uma que não conhecia.
    Mas também não admira, para un "incréu" como eu já vai sendo muito aquilo que vou sabendo, umas vezes com a tua ajuda, outras observando o que me vai aparecendo pela frente.
    Já não me lembrava de teres dissertado anteriormente sobre esta figura religiosa.

    O texto está bom e apresentas ideias mais desenvolvidas, o que ajuda a perceber melhor esta personagem.
    E venham mais!
    Manel

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  5. Muito obrigada pela partilha. Gostei imenso do tema e da forma como está escrito. Hoje aprendi mais um bocadinho.
    Já sou uma seguidora assídua do blog, por favor continue as suas partilhas.
    Ana

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    1. Cara Ana F.

      Muito obrigado. Por vezes temo maçar as pessoas com estes temas tão beatos. Mas tenho uma paixão por estas estampas religiosas, que nem sei bem explicar, já que não sou crente. Talvez porque estes santos estejam tão esquecidos, seja tão fascinante descodificar a mensagem, que transportam consigo, que no século XVIII era percetível para toda a gente e que hoje para nós é quase um mistério.

      Um abraço

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  6. Maravilha. Sei de uma senhora cujo nome era Felicidade Perpétua!!! kkkk

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