quarta-feira, 30 de setembro de 2015

6º Aniversário do velharias do Luís


Nunca fui muito dado a comemorações. Esqueço-me dos aniversários de familiares e de amigos, há muito que deixei de dar jantares e festarolas quando faço anos e embirrava quando me mandavam escrever aquelas redacções sobre a Primavera, o Natal, a Restauração ou o dia da árvore. Funciono sempre melhor com um tema livre, em que espontaneamente qualquer me sai da cabeça uma ideia qualquer.

Apesar de todas essas condicionantes, não podia deixar se passar o aniversário do velharias do Luís. Os blogues são instrumentos úteis e terapêuticos, para quem já chegou à idade madura e não realizou aquilo a que sempre aspirou na juventude. Foi o que aconteceu comigo. À medida que iniciava o blog, descobri que a internet me fornecia um instrumento onde poderia escrever e publicar as minhas ideias, de uma forma livre, sem correcções de superiores hierárquicos e sem a menor preocupação de escrever textos politicamente correctos, mas inócuos de conteúdo. Toda esta liberdade criativa era gratuita e bastava clicar no “enter” para publicar um texto.

De facto, em seis anos de escrita do blog, dei uma reviravolta na minha vida, mudei de emprego, alguns textos foram publicados em livros e revistas, fui convidado para a televisão, fiz amigos novos por todo o país e até no Brasil e sobretudo arranjei uma motivação quotidiana, que é estar sempre a pensar qual será o próximo tema da semana, fazendo para isso pequenas investigações, em livros, revistas, por vezes em arquivos e sobretudo na internet.

O que ocorreu comigo através não é um caso isolado, mas antes um fenómeno sociológico dos dias de hoje. Existe um filme Julie & Julia, proganizado por Meryl Streep, acerca de uma profissional frustrada, que a certa altura da sua vida decide fazer um blog, acerca da única coisa que realmente gosta e se sente competente, a culinária e que acaba por ter um enorme sucesso nos Estados Unidos. É um filme muito divertido que nos ajuda a perceber este fenómeno sociológico e psicológico dos blogs, da autoconfiança que devolvem aos seus autores, destruída por anos de empregos castradores e da liberdade criativa que proporcionam a quem os escreve.

Mas talvez não tivesse prosseguido esta tarefa de escrever no blog com uma periodicidade regular, se à sua volta não se tivesse reunido uma tertúlia de comentadores, gente interessada e curiosa, que vai aqui trocando impressões sobre antiguidades, artes e história, de forma informal como se estivéssemos todos à mesa de um café. Também sei que muitas páginas do blog são consultadas regularmente, por mulheres e homens, que não comentam, nem os conheço, que estão algures por aí, escondidos atrás dos seus monitores e aqui encontram informações úteis sobre gravuras antigas, faianças, porcelanas e ferrachos.

A todos vós envio o meu melhor sorriso.
 
 

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

A perpétua felicidade


Santa Feliciana

Há santos do calendário cristão que estão mais esquecidos que as antigas divindades da Grécia ou de Roma. Se Vénus, Júpiter ou Plutão terminaram a sua carreira como deuses, continuam a fazer aparições regulares na literatura e no cinema. A mitologia clássica está sempre na moda, mas quem ainda hoje sabe quem é a Santa Feliciana?


E no entanto, Feliciana deve ter sido objecto de algum culto e devoção, pois ainda recentemente comprei uma estampa, representando esta santa, uma coisa talvez primeira metade do XVIII ou um pouco mais antiga, já que lhe faltam os ornatos que costumam decorar estas imagens nos finais de setecentos. Em tempos alguém rezou a esta santa, acreditou nos seus poderes miraculosos e comprou esta estampa impressa por um tal Anjos, para a colocar entre as páginas de um livro de orações. Aliás, encontrei outra gravura representando esta mártir, na colecção da Casa Martins Sarmento, impressa em Lisboa, por Francisco Manuel e atribuída a Teotónio José de Carvalho, o que demonstra que a devoção a Felicidade não seria uma coisa muito rara no século XVIII. Talvez ainda hoje haja por esse país fora, alguma romaria em honra da Santa Feliciana.
Estampa da colecção da Sociedade Martins Sarmento

Apesar do esquecimento a que almas mais devotas votaram a Santa Feliciana ou Felicidade, esta mulher, ao contrário de muitos santos e santas do calendário cristão teve uma existência bem real, que está documentada. A jovem Felicidade, foi martirizada pelos romanos em Cartago, no ano de 203, juntamente com Perpétua e outros três jovens, Saturo, Revocato, Saturnino e Secondino e desse martírio existe um testemunho escrito, o Acta Perpetuae et Felicitatis, de quem presenciou e viveu os acontecimentos. A primeira parte do texto é o diário de Perpétua, a segunda parte o relato de Saturo e a terceira foi escrita por um testemunho ocular do martírio, que alguns investigadores atribuem a Tertuliano. Esse documento escrito em latim foi descoberto por Luca Olstenio e publicado por Pierres Pussines em 1663. Em 1890, apareceu um outro relato escrito em grego, que coincide em linhas gerais com o primeiro. 

A Acta Perpetuae et Felicitatis é um documento quase único acerca das perseguições e martírios dos primeiros cristãos, mas vistos pelos próprios, sem as lendas, que séculos de transmissão oral acrescentaram normalmente a estes casos.
Duas jovens cristãs aguardando o martírio, na visão perversa do século XIX do pintor vitoriano St George Hare (1857-1933). National Gallery of Victoria, Melbourne
Os jovens em questão pertenciam a famílias, abastadas de Cartago, excepto Felicidade, que era escrava de Perpétua. Aliás o culto às duas jovens costuma ser conjunto. Perpétua e Felicidade tinham filhos pequenos, que foram poupados, mas as duas não escaparam ao martírio. Foram postas na arena onde foi lançada uma vaca selvagem, que acometeu sobre elas. Normalmente, os animais eram escolhidos consoante o sexo dos prisioneiros. Posteriormente os sobreviventes foram decapitados.

Explica-se assim a iconografia desta estampa. A jovem empunha a palma do martírio, noutra mão segura a espada pela qual foi decapitada e na parte inferior está representado um bicho feroz, cujos cornos se confundem com a prega do vestido. Houve uma outra S. Felicidade, também martirizada em Roma, algumas décadas antes, mas essa costuma ser representada com os seus sete filhos.
Claro, neste culto a estas duas santas, há também um jogo de palavras, a perpétua felicidade é afinal um objectivo que todos nós perseguimos e as duas jovens terão conseguido encontra-lo sacrificando a sua vida a Deus. Pudéssemos nós, que não temos fé, também encontrar a felicidade, ainda que fosse só passageira.

domingo, 13 de setembro de 2015

Uma cabeça decepada do século XVII

Como já aqui escrevi muitas vezes tenho sempre uma certa atracção por objectos estranhos ou bizarros, dos quais às vezes nem conheço a utilidade. Foi o caso desta peça, uma cabeça em madeira, cortada a metade, que estava na banca de um feirante de uma feira em Estremoz. Encantei-me logo com a qualidade escultórica do trabalho do cabelo e a expressão serena da figura. A peça também não estava repintada, como acontece com quase toda a arte sacra à venda naquela feira, em que as pintadelas modernas estragam irremediavelmente em dez minutos imagens, que sobreviveram ao tempo duzentos ou trezentos anos. Como o dono da banca, devia estar com dificuldade em vender uma meia cabeça, com um ar macabro, propôs-me um preço muito simpático e lá a levei eu todo contente. A peça estava colada a um prato de madeira, moderno, que me fez suspeitar que fosse um São João Baptista, mas como houve uns quantos santos cristãos decepados e esta meia cabeça, poderia ter feito parte de um qualquer grupo escultórico, representando, por exemplo os mártires de Marrocos.


Quando cheguei a casa, fiz algumas pesquisas. Os mártires de Marrocos, que coitados, foram decapitados eram todos franciscanos e portanto se esta cabeça tivesse feito parte de um grupo escultórico representando aqueles monges, teria obviamente uma tonsura. Depois lembrei-me que tinha vistos umas quantas cabeças de S. João Baptista, na exposição da colecção Franco Maria Ricci, que esteve patente, no Museu Nacional de Arte Antiga e fui consultar o catálogo e a iconografia, a forma como se apresentava a cabeça, exposta numa bandeja e como que cortada logo abaixo do queixo, coincidiam perfeitamente.

Cabeça de S. João Baptista, séc. XVI, a partir de Andrea Solario, col. Franco Maria Ricci
Portanto, conclui, que de facto, a minha pequena escultura, se tratava de uma cabeça degolada de S. João Baptista, à qual faltava apenas o prato. Aliás, na base desta pequena estatueta, existem uns quantos buracos, que deveriam servir para a encaixar numa bandeja, ou em alguma moldura de talha dourada, que representasse de alguma forma esse objecto


Este tipo de iconografia algo macabra desenvolveu-se na Europa, nos finais da Idade Média, depois de terem sido descobertas no Oriente e transportadas para a Europa, várias relíquias de João Baptista, sobretudo aquilo que se pensava ser a cabeça original do Santo. Apesar de segundo a tradição mais antiga os ossos de São João Baptista terem sido mandados carbonizar no século IV pelo imperador Juliano, o Apóstata, logo nos finais da Idade Média, por toda a Europa, miraculosamente, contava-se a soma impressionante de 12 cabeças e 60 dedos, que teriam pertencido ao referido Santo. Claro, o que acontecia, é que muito peregrinos traziam da Terra Santa ou da Ásia Menor cabeças das sepulturas de outros mártires, também chamados João. Mas o que interessava é que quando essas ossadas chegavam à Europa, as pessoas acreditavam que eram realmente verdadeiras e que continham em si poderes miraculosos.

Não vou contar a aqui a história de s. João Baptista, que é das figuras mais conhecidas da nossa cultura cristã e das mais representadas na arte. S. João Baptista é apresentado menino, só ou na companhia o Menino Jesus é pintado ou esculpido em adulto e depois existem todas aquelas cenas, à volta do seu martírio, que envolvem a bela Salomé e a sua dança dos sete véus, que inspiraram tantos artistas plásticos, escritores e até mesmo cineastas.
Uma das mais emblemáticas obras do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, Salomé com a cabeça de S. João Baptista de Lucas Cranach
A cabeça de S. João Baptista num prato é uma representação, que resume todo o seu martírio e à qual na Europa se atribuíam poderes curativos de enxaquecas, dores de garganta, sufocamento e todas as doenças, relativas à parte capital do corpo humano. Era também invocada pelos condenados à morte.

Se relativamente à iconografia, estava certo que a minha estatueta representava o S. João Baptista, quanto à época em que foi executado estava cheio de dúvidas. Ela pareceu-me desde logo antiga e muito bem executada, mas tenho sempre presente que os santeiros portugueses no início do século XIX, estavam apegados a tradições antigas da profissão e repetiam fórmulas dos séculos anteriores e portanto esta cabeça podia ser muito bem uma coisa bonita, mas sem grande antiguidade.


Mostrei a peça alguns colegas do Museu Nacional de Arte Antiga, nomeadamente ao Anísio Franco e à Maria João Vilhena, que fizeram o favor de me darem a sua opinião. Quer um quer outro, crêem que se tratará de um trabalho do século XVII, o bigode, é muito típico dessa época e a Maria João Vilhena pensa mesmo que poderá tratar-se de uma escultura indo-portuguesa, por causa da configuração dos olhos, amendoados e da orelha, em evidência. Normalmente na arte europeia, a orelha ou está escondida pelos cabelos ou pura e simplesmente não se destaca. Igualmente o trabalho goivado do cabelo, muito usado pelos escultores flamengos em século anterior, é um arcaísmo que os mestres ditos indo-portugueses, conservaram até muito tarde.
A cabeça de S. João Baptista foi juntar-se a outras beatices da minha casa
Fiquei satisfeito com a compra desta figura, que dorme um sono dos justos, numa serenidade oriental e que talvez tenha sido feita na longínqua Goa, no século XVII.

Alguma bibliografia: 

FMR: a colecção Franco Maria Ricci. Lisboa: MNAA, INCM, 2014
Iconographie de l’art chrétien / Louis Réau. Paris: Puf, 1958
Vita Christi: marfins luso-orientais. - Lisboa: MNAA, 2013

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Janelas e portas de Bragança


Julgo que foi a pintora Maluda (1934-1999) quem tornou moda, no final a década de 70, a pintura ou fotografia de portas e janelas, que hoje está tão generalizada. Com efeito, a obra daquela pintora foi amplamente copiada por toda uma série de artistas amadores, como militares na reforma, donas de casas com filhos já criados e antigos professores liceais. Também na internet, há uns quantos blogues que se dedicam à fotografia de janelas, portas e aldrabas com uma clara influência maludiana. As obras de Maluda foram reproduzidas em selo, multiplicadas em serigrafia, postais e creio que é a única artista plástica recente realmente popular, que toda a gente conhece e sobretudo gosta de forma espontânea, sem precisar de ler de nenhum manual de arte para aderir às suas pinturas.

Esta popularidade do tema das janelas e das portas é do ponto de vista da psicologia humana compreensível, pois capta-las através do pincel ou da câmara é querer transpô-las e penetrar na intimidade de uma casa. 

Também é bem verdade, que no passado quem encomendou a feitura de janelas, com caixilharias complicadas, emolduradas em cantaria de pedra lavrada, varandas de ferro forjado ou portas almofadadas, pretendia transmitir uma imagem de si e da sua família a quem passava na rua. Queria-se demonstrar riqueza e luxo, ou então elegância e sobriedade e até mesmo pudor. Há pois uma mensagem em cada portão, varanda ou janela.
Uma varanda de ferro forjado

Também sou sensível à beleza das janelas e às vezes suficientemente afoito para empurrar um portão mal fechado e penetrar em casas decrépitas e tentando captar um pouco de um certo ambiente, que ainda sobrevive das famílias que ali viveram durante gerações.
Uma escada antiga

Desta vez andei por Bragança, cidade que não me é indiferente, pois foi aí que o meu pai passou parte da sua meninice e juventude e fotografei aqui e ali alguns portões, janelas, escadarias e varandas, que transmitem uma imagem de solidez e intemporalidade, próprias de que quem faz obras a pensar não só em si, mas nas gerações futuras.