sábado, 16 de janeiro de 2016

São Sebastião socorrido por um anjo: uma estampa flamenga do século XVII


S. Sebastianus
No meio de um molhe de registos de santinhos dos anos dos anos 40, 50 e 60 do século XX, todos vendidos a um euro cada um, descobri esta estampa colorida a aguarela, que suspeitei de imediato que fosse do século XVII. Comprei-a sem hesitar e lá levei todo contente para casa mais um S. Sebastião.

A única palavra que consegui ler da assinatura do impressor foi Merlen
Vi que tinha no canto inferior direito a assinatura do impressor, mas como estou muito pitosga e a estampa é muito pequenina não a consegui ler. Digitalizei então a imagem e ampliando-a no computador consegui identificar a última parte do nome Merlen. Fiz algumas pesquisas combinadas no Google por S. Sebatianus e Merlen, mas não obtive resultados. Como suspeitei que a estampa fosse flamenga, lembrei-me de acrescentar o típico artigo van antes do nome e procurei pela expressão Van Merlen engraving no Google imagens e imediatamente encontrei umas quantas estampas onde assinatura do impressor, que aparecia esborratada na minha gravura se lia claramente Cor. Van Merlen.

Cor. Van Merlen.
Munido destes dados, reformulei a pesquisa e descobri que o autor desta estampa foi um senhor flamengo, chamado Cornelis van Merlen, um gravador activo em Antuérpia na segunda metade do século XVII e que pertencia a uma dinastia de gravadores. Além de uma obra mais séria composta por retratos de personalidades e grandes composições religiosas, este Cornelis van Merlen dedicou-se a produzir registos de santinhos, provavelmente em grande quantidade, a julgar pelos exemplares que encontrei na net e que foram exportados para toda a Europa, inclusive Portugal. Aliás a cidade de Antuérpia é no século XVII um centro editorial próspero e florescente, cujas obras são vendidas em pelo menos todas as nações católicas, apostólicas e romanas.

S. Sebastião socorrido por um anjo. Musée de l’archerie et du Valois, Crépy-en-Valois. Obra anónima flamenga do séc. XVII, inspirada numa gravura de Paul Pontius, de Antuérpia (1603-1658), que reproduziu um quadro, hoje perdido de Gérard Seghers (1591-1651), um dos mestres do barroco, contemporâneo de Rubens.
Esta estampa representa o momento posterior à sagitação de S. Sebastião. Sagitação é um palavrão que quer dizer o acto de martirizar com setas. Não é a iconografia habitual do martírio de S. Sebastião, que normalmente é mostrado só, atado a uma árvore ou a uma coluna com o corpo flagelado por setas. Esta cena simboliza o momento, em que depois do seu martírio, a viúva Irene, juntamente com a sua serva, descobrem o corpo do jovem e extraem com precaução as setas e limpam as suas feridas. Porém, aqui, a figura de Santa Irene é substituída por um anjo, forma típica da Contra Reforma de solenizar uma cena de martírio e de transpor um plano familiar para um plano divino. Esta iconografia de S. Sebastião acompanhado de anjos é rara e foi só praticamente usada na Flandres no século XVII.

S. Sebastião de Cornelis Van Merlen
Contudo, um homem ou uma mulher devotos, que vivessem no século XVII, ao abrirem o livro piedoso onde guardariam esta estampa, não ficariam indiferentes ao corpo voluptuoso do santo, que parece mais oferecer-se de bom grado aos desejos de um anjo brincalhão, do que a sofrer as penas de um martírio.

Pela minha parte, quando olho para esta estampa, não consigo deixar de trautear there must be an angel , playing with my heart, o êxito pop de Annie Lennox


 Alguma bibliografia:


Iconographie de l'art chrétien / Louis Réau. Paris: Puf, 1958.

15 comentários:

  1. Caro Luis Montalvao,

    Mais uma postagem expectacular !
    O encanto da imagem, o deslumbre da pesquisa, a descoberta alcançada, o remate sublime!

    Parabéns!
    Continue, as suas postagens, encantam-nos.
    Bom fim de semana.
    Um abraço,

    Jorge Amaral

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  2. Caro Luis Montalvao,

    Mais uma postagem expectacular !
    O encanto da imagem, o deslumbre da pesquisa, a descoberta alcançada, o remate sublime!

    Parabéns!
    Continue, as suas postagens, encantam-nos.
    Bom fim de semana.
    Um abraço,

    Jorge Amaral

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    1. Caro Jorge

      Obrigado!!!

      Estas pesquisas sobre gravuras são como que umas charadas, mas muito engraçadas de resolver. Neste caso, como a estampa é estrangeira, o trabalho foi muito fácil, porque há centenas de gravuras dos séculos XVI, XVIII e XVIII digitalizadas nas colecções dos museus, bibliotecas, arquivos e antiquários na Europa e nos EUA. Acabei por descobrir o nome do impressor em cerca de 20 ou 30 minutos.

      Um abraço e bom fim-de-semana

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  3. Caro Luís,

    descobri este link que pode fortemente interessar-lhe e como o leilão é já amanhã...
    GENEALOGIA - OS MONTALVÕES
    de J.T. MONTALVÃO MACHADO, Vila Nova de Famalicão, 1948, 198 pgs
    http://www.bidding.pt/web/cc1
    Cumprimentos

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    1. Cara Teresa Laço Pinto

      Muito obrigado pela sua sugestão!!!

      Cumprimentos

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  4. A gravura é bastante apelativa.
    Pelo facto de ter sobrevivido durante mais de trezentos anos (!!!), deverá isso ser significado de ter sido uma imagem cheia de interesse para uma grande quantidade de pessoas, que, julgo, tenham sido devotas.
    Creio mesmo que o facto de ter sido colorida, algures na história desta peça, deverá ter-lhe aumentado o carisma e o realismo.
    Como, aliás, a Disney logo percebeu quando começou a produzir a sua banda desenhada tão caraterística. A cor é sempre um elemento catalizador do interesse do espetador leigo.
    Ainda bem que a encontraste, pois incorria no perigo de ir parar a algum caixote do lixo, dada a forma como se encontrava à venda.
    Manel

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    1. Manel

      Esta estampa demonstra que ao contrário do que muita gente supõe a arte sacra não é necessariamente macabra e tristonha. Esta pequena gravura, que foi aguarelada posteriormente, acaba por ser muito alegre e divertida, até por causa do duplo sentido que encerra em si. É uma representação religiosa é certo, mas que apela à imaginação erótica e o ao desejo sexual dos devotos. Talvez a porque religião não ande tão afastada do sexo como isso. Os romanos e os gregos aliavam o sexo à religião de forma perfeitamente natural.

      Tenho a ideia que o suporte em que foi impressa é uma qualidade qualquer de velino, o que explica em parte o seu relativo bom estado de conservação.

      Um abraço

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  5. Depois de amanhã, 20 de janeiro é o dia de são Sebastião padroeiro do Rio de janeiro, data comememorada com grande procissão e a imagem linda do santo, linda, em um cúpula, saindo às ruas. Salve são Sebastião e salve vc que tem uma "mão" ótima pra encontrar essas estampas lindas e antiquíssimas. És um sortudo! Adoro as imagens de são S. são very, very sexy, corpo belíssimo, uau!
    Abraços, Luís e um bom dia de são Sebastião!

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    1. Caro Jorge

      É verdade. S. Sebastião é o padroeiro do Rio de Janeiro, a cidade irmã de Lisboa. O culto a este santo é dos mais populares do catolicismo romano.

      Este S. Sebastião tem um corpo escultural, trabalhado em ginásio e ao mesmo tempo uns caracóis loiros, quase femininos.

      Tenho sempre a ideia que mesmo na arte sacra era possível passar uma mensagem mais erótica ou sexual e esta estampa é um bom exemplo disso.

      Um abraço

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  6. Caro Luís
    Amanhã, coincidentemente é o dia de São Sebastião e sabendo eu que não é hábito do Luís adequar os seus posts às efemérides do dia, não posso deixar de achar piada à coincidência.Hoje, em Santa Maria da Feira é o dia das fogaceiras,festa que está na origem de uma promessa solene feita pelo povo, a S. Sebastião por este os ter livrado da peste. A minha mãe, natural deste concelho participou várias vezes no cortejo levando a sua fogaça à cabeça e tenho na memória as histórias engraçadas que ela contava sobre a azáfama da minha avó em preparar as cinco filhas para o cortejo:)Eu desconhecia por completo este momento posterior à sagitação de S. Sebastião que também nunca tinha visto representado.
    O seu "santinho" é uma relíquia. Por onde terá andado durante estes longos anos?
    Bjs e boa semana

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    1. Maria Paula

      Pois desta vez assinalei uma efeméride, foi meramente por acaso, mas enfim, também não faz mal nenhum.

      Como referi ao Jorge Santori, S. Sebastião é das devoções mais populares no mundo católico e em parte essa popularidade deve-se à crença que este santo livrava as pessoas da peste, que era um flagelo no passado, uma verdadeira e terrível sagitação. Se S. Sebastião resistiu e sobreviveu à sagitação, então as pessoas pedindo a sua intercessão, o Santo poderia protege-las certamente do flagelo da peste, que era como uma chuva de setas mortais apontadas a uma comunidade.

      Também é verdade que a devoção a S. Sebastião se sobrepôs e continuou ancestrais cultos pagãos, como o de Apolo.

      Estes Santinhos normalmente eram guardados em livros. Mais recentemente havia quem os coleciona-se em álbum. Há uns tempos comprei umas 2 ou 3 folhas inteiras de um desses álbuns só porque me interessavam uns 3 registos mais antigos. Mas, com efeito, tentar reconstituir a existência desta estampa ao longo de 3 séculos seria um trabalho fascinante.

      Bjos e boa semana

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  7. Olá Luís!
    Que bela estampa de S. Sebastião!!! E do séc. XVII, o que faz dela um objeto raro, talvez assim duradouro graças ao suporte em que foi feito.
    Tem formado uma coleção invejável, com a mais-valia das histórias associadas a cada um destes objetos, que o Luis tão bem pesquisa e aqui partilha...
    Mais uma vez fiquei deliciada com o poste! E a música no final dá-lhe um remate muito agradável!
    Beijos

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    1. Maria Andrade

      Tenho uma fila de cerca de uma dúzia destas estampas à espera de serem emolduradas e nem sei onde as colocarei. Mas são tão baratas. Num site de vendas on-line italiano encontrei um santinho também deste Cornelis van Merlen à venda por 80 euros e eu comprei o meu por um euro. lol.

      O vídeo clip que coloquei no fim serviu para aligeirar a coisa e sublinhar o lado ambíguo do tema S. Sebastião socorrido por um anjo. Recentemente fiz o mesmo com uma Santa Juliana, mas como o vídeo clip era um bocadinho forte e não queria ofender os crentes, disfarcei-o num link no final do texto.

      Bjos

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  8. Lindíssimo este S. Sebastião.
    A sua pesquisa transporta-os na sua viagem.
    Annie Lennox é uma das cantoras que muito aprecio.
    Beijinho. :))

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    1. Ana

      Muito obrigado!

      Esta música de Annie Lennox rematava na perfeição o post deste S. Sebastião com corpo modelado no ginásio e longos caracóis louros, socorrido por um anjo. Ao contrário de outros cantores e bandas que ouvíamos nos anos 80 e início dos 90, as músicas de Annie Lennox não envelheceram com o tempo e continuam com uma frescura espantosa.

      Bjos

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