Cada vez que sai um livro novo sobre faiança, nós, os amadores de faiança, corremos a compra-lo e a comparar tudo o que ali é reproduzido com as loiças antigas lá de casa, que há muito aguardam identificação. Para os menos familiarizados com a faiança portuguesa, há que explicar que raras são as peças marcadas, os fabricantes usavam decorações e moldes semelhantes, de modo que tentar atribuir uma terrina ou um prato do século XIX ou início do XX a um centro de fabrico, Porto, Lisboa, Coimbra ou Viana é um risco, que pode significar um erro grosseiro. Por essa razão, a publicação de novos catálogos ou monografias sobre faiança é tão importante para ajudar o coleccionador amador a identificar as suas peças.
Recentemente foi publicada a obra A fábrica de Vilar de Mouros/ Paulo Torres Bento [et al]. – Vilar de Mouros: CIRV; Câmara Municipal de Caminha, 2015, que teve o grande mérito de apresentar a história e a produção de uma fábrica de que ninguém sabia quase nada. Segundo palavras de Isabel Maria Fernandes no prefácio da obra, este estudo foi feito a partir de (…)algumas centenas de fragmentos recolhidos onde a fábrica funcionou, a que se juntou um conjunto de peças que se encontram na mão de alguns familiares dos antigos proprietários da fábrica ou de pessoas com eles relacionados. Portanto, este é um livro sério, que se baseia em fontes seguras e não numa mera análise de semelhanças de decorações.
No centro está um templete, um pagode ou um chalet, que a Fábrica de Vilar de Mouros usou nas suas produções |
Porém, após a leitura do catálogo A fábrica de Vilar de Mouros ficamos ainda mais confusos. A produção de Vilar de Mouros entre 1855 e 1920 é muito semelhante a de outras fábricas do Porto e de Gaia. Algumas das peças ali mostradas nós juraríamos a pé juntos que eram Fervença, outras poderiam eventualmente ser inspiradas em Miragaia, manufacturadas por uma fábrica qualquer de uma das margens do Douro. Há também louça de Vilar de Mouros facilmente confundível com Viana e uma ou outra coisa semelhante às faianças de Coimbra. A Fábrica de Vilar de Mouros fabricou ainda o motivo cantão popular, que os consumidores portugueses do século XIX e da segunda metade do XX adoravam. No fundo, este livro reforçou a ideia que todas estas fábricas portuguesas se copiavam muito umas às outras, até porque precisavam de satisfazer o mesmo gosto dominante do Portugal de então.
Imagem retirada de A fábrica de Vilar de Mouros/ Paulo Torres Bento [et al]. – Vilar de Mouros: CIRV; Câmara Municipal de Caminha, 2015 |
Tudo isto vem a propósito de uma chávena com pires que o meu amigo Manel comprou na Feira de Estremoz e que apresenta uma espécie de templo, chalet ou pagode, idêntico a uma terrina de Vilar de Mouros, cuja fotografia está reproduzida na página 107 do livro em causa. Essa terrina está atribuída ao segundo período da fábrica, que decorre entre 1900 e 1920.
Imagem retirada de A fábrica de Vilar de Mouros/ Paulo Torres Bento [et al]. – Vilar de Mouros: CIRV; Câmara Municipal de Caminha, 2015 |
Claro, esta semelhança não significa que forçosamente a chávena do meu amigo Manel seja de Vilar de Mouros. Pode tratar-se de um motivo decorativo usado por mais que uma fábrica de faiança, como por exemplo, a decoração chinesa do cantão popular. Por outro lado, a faiança da chávena do meu amigo Manel parece de melhor qualidade, que a terrina mostrada no livro. Até tem no tardoz do prato um motivo em relevo feito com muita qualidade e a pasta é mais branca. Mas, pode dar-se o caso de as cores no catálogo não terem ficado bem resolvidas. Quem já trabalhou na edição de publicações de arte sabe que por vezes os gráficos não acertam com as cores e as imagens são publicadas com tons empastelados. A chávena e pires que pertencem ao meu amigo Manel parecem mais antigas, talvez do século XIX, e a terrina publicada no catálogo de Vilar de Mouros está datada do período entre 1900-1920. Enfim, pode dar-se o caso de este ser um motivo repetido ao longo de várias décadas de laboração da fábrica ou então a chávena parecer mais antiga, por causa da ingenuidade da composição. As obras ingénuas parecem sempre ancestrais, porque repetem fórmulas e decorações antigas.
No tardoz do pires há um filete picotado muito bonito |
Enfim, não posso fazer muito mais do que afirmar que o motivo decorativo da chávena do Manel é idêntico ao de uma terrina fabricada por Vilar de Mouros. Juntei duas peças de um puzzle. O resto virá com o tempo.
Em qualquer dos casos, ou fábricas, o facto é que acho essas peças muito bonitas.
ResponderEliminarLuisa
ResponderEliminarApesar de ser um sarilho identificar a faiança portuguesa do século XIX e início do XX, as peças são muito sedutoras pela sua ingenuidade e pela criatividade, que nelas foi posta pelos ceramistas portugueses.
Um abraço
Não conheço a cerâmica de Vilar de Mouros, a não ser da obra que saiu recentemente, pelo que não sei muito bem o que esperar.
ResponderEliminarSei no entanto que a qualidade destas duas peças é muito boa, o vidrado branco, brilhante, impecável, sem sombra de craquelé, o som da peça, quando manuseada, parece-se com o da porcelana, o desenho do "pagode" de boa qualidade (já não tenho a mesma opinião sobre a forma como foram pintados os elementos vegetais), a preocupação em adicionar aquele filete decorativo na parte de baixo do pratinho, enfim, se estas são peças provenientes de Vilar de Mouros então os fabricantes estavam de parabéns.
Mas não há certezas sobre esta produção, ainda que o desenho se assemelhe ao que está na terrina atribuída a Vilar de Mouros.
Pode ser que seja, mas uma peça sem uma marca pode ser de qualquer outro sítio, pois as caraterísticas das peças podem ser enganosas.
Quantas vezes uma peça me pareceu de uma fábrica, e logo depois vi peças semelhantes aparecerem como pertencendo à produção de outra.
A faiança portuguesa, se não estiver marcada, será sempre uma conjetura.
Bem ... não é bem assim, pois na cabeça de algumas pessoas a cerâmica é um livro aberto onde não há lugar a dúvidas ... e afinal elas sentem-se tão felizes. Deixe-mo-las no seu autismo
Eu continuo com dúvidas
Manel
Manel
EliminarCom efeito, a faiança desta chávena e pires parecem de melhor qualidade que a da terrina reproduzida no catálogo de Vilar de Mouros, o que pode significar que foram feitas num período anterior a 1900-1920 ou que saíram dos fornos de outra fábrica qualquer.
O templo, pagode, chalet ou pavilhão é também curioso. Talvez seja uma reminiscência de algum motivo da faiança inglesa.
Enfim, são suposições atrás de suposições e temos que aguardar por mais provas, para tentar acrescentar mais peças a este puzzle.
Um abraço
"Deixemo-las", há sempre uma gralha que escapa
EliminarManel
ora, deixa estar...
EliminarA chávena é linda, qualquer que seja a fábrica. Bom Domingo!
ResponderEliminarMargarida
EliminarMuito obrigado. Peças como esta chávena foram produzidas de uma forma ainda muito artesanal e como escrevia Philip Johnson, "o trabalho manual implica irregularidade, pitoresco, valor decorativo e individualidade". Quer isto dizer que na faiança portuguesa desta época, cada peça é um caso único, um momento de criação de um artista analfabeto ou fracamente instruído.
Um abraço
Aprendendo aqui! As peças são lindas e o filete picotado é mesmo muito bonito.
ResponderEliminarLuis, deixo um beijinho, agradecida pela leitura tão prazerosa, parecendo até uma boa e interessante conversa. E uma ótima semana.
Maria Gloria
EliminarObrigado pelo seu comentário e fico muito satisfeito por saber que aprecia o que escrevo. Um bom começo de semana
Luís
Luís
ResponderEliminarSó ontem dei aqui com estas peças de faiança do Manel e, como deve calcular, fiquei encantada com elas! Formato e cores tão ingénuos quanto encantadores!
Depois adorei ler o texto, saber da existência dessa nova publicação sobre a faiança de Vilar de Mouros - importante sabermos as datas de início e fim da laboração - e deparar aqui com uma terrina atribuída ao segundo período de laboração da fábrica...
Acontece que achei logo familiar o motivo da base da terrina e mais tarde andei no meu blogue à procura de uma que tenho com o mesmo motivo. Ao encontrá-la verifiquei que não só o motivo, embora a azul, mas também o formato são os mesmos. Fiquei contentíssima por ter mais uma peça de faiança portuguesa com atribuição de fabrico.
Tem graça que quando postei a peça foi uma das hipóteses levantadas, mas sem certezas nenhumas. Agora, graças a este seu poste, o grau de certeza aumentou bastante! Veja aqui:
http://artelivrosevelharias.blogspot.pt/2010/09/terrinas-de-faianca-vilar-de-mouros-ou.html
Obrigada por ter divulgado aqui mais este avanço no conhecimento das nossas faianças.
Beijos
Maria Andrade
EliminarFui espreitar o seu post e a segunda terrina que apresentou é muitíssimo parecida com aquela que figura no catálogo "A fábrica de Vilar de Mouros". Tem até mais semelhanças do que a chávena do Manel.
Vale muitíssimo a pena comprar o catálogo A fábrica de Vilar de Mouros, que nem sequer é caro. Encomendei o meu exemplar por correio. O único problema é que depois da sua consulta ficamos baralhadíssimos, porque aquela manufactura do Minho fez no fundo um pouco de tudo aquilo que os outros fabricantes de faiança produziram na segunda metade do século XIX e início do século XX. É um livro que nos faz pensar que temos ter a máxima cautela nas atribuições. Ficamos um pouco como o Sócrates (refiro-me ao filósofo e não ao outro senhor que esteve preso) a dizer com os nossos botões, quanto mais sei, mais sei que nada sei.
Bjos
Que interessante que a Maria Andrade postou aqui esta informação, pois já não me recordava. Que bom que o fez, pois foi mais uma achega.
EliminarUm agradecimento à Maria Andrade
Manel