terça-feira, 2 de maio de 2017

A beleza de duas velhas damas

Comprei esta chávena de chá, da Vista Alegre, decorada com florinhas e dourados. O preço foi muito baixo pois o estado de conservação não é dos melhores, apresenta um grande cabelo e os dourados estão muito desvanecidos. O facto de não estar marcada baixou também o preço da peça. Se pelo contrário, a chávena ou o pires ostentassem a marca VA azul o preço teria sido mais caro.
 
Mas que me importa a mim não ter marca, se sei já por intuição que é uma peça da Vista Alegre e os dourados já fanados desta chávena são como aquelas velhas senhoras, que foram muito bonitas na juventude, mas conservaram qualquer coisa da antiga beleza, no olhar, nos gestos ou na elegância do trajar.

Não é que a velhice seja propriamente uma coisa boa. Significa sempre que estamos mais próximos da morte. Mas, talvez por um período de dez ou vinte anos, antes de se cair na completa decadência, alguns de nós bafejados pela sorte alcançam um último momento de esplendor.

Talvez por estas razões associei esta chávena de dourados já fanados a Juliette Greco, que com quase 80 anos, ainda nos surpreendeu a todos com uma interpretação de Les amants d’un jour, um tema difícil, cantado anteriormente pela grande Piaf. Em vez de cantar, Juliette Greco preferiu simplesmente dizer o poema acompanhando a música, que termina precisamente com o som da louça a quebrar-se. Talvez de chávenas como estas...


12 comentários:

  1. Caro Luis
    Estou sempre atento ao seus textos que ilustram tanto ou muito mais que as imagens.Considero isso uma paixão e as paixões têm uma força incrivel.A chávena antiga despida de vaidades, filha bastarda de uma grande família de porcelanas, é o motivo da minha intervenção, dar o valor sentimental a um objecto que por si só pode não valer quase nada, mas aos olhos e nas mãos de um apaixonado, ganha vida e conta histórias....os objectos falam, só nós humanos muitas vezes não conseguimos ouvir porque estamos demasiado entretidos a falar. A comparação a uma cantora já de rugas é encantador....
    Obrigado por tudo
    Vitor Pires

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    1. Caro Vitor

      Obrigado pelo seu comentário, que desenvolveu a ideia deste post.

      Há de facto uma beleza nestes objectos já fanados, restos de serviços ou conjuntos completos, que outrora brilharam em casas abastadas e que são comparáveis às ruínas de igrejas ou casas abandonadas ou aquelas pessoas, que antes de morrerem experimentam ainda um último fulgor..

      Esta interpretação dos Les amants d'un jour de Juliette Greco é particularmente brilhante. A cantora tinha consciência que já não tinha a voz de outrora e preferiu antes dizer o poema sobre a música e o resultado foi brilhante, a última chama antes da vela se apagar de vez.

      Um abraço

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  2. A beleza não tem idade, quero acreditar. A chávena é amorosa e quando gostamos de um objeto, pouco importa o seu valor real.

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    1. Luisa

      Sem dúvida existe uma beleza muito especial nestes objectos fora de moda, já fanados pelo tempo e cujo colecionismo acaba por ser tremendamente sentimental. A Juliette Greco nesta música, que deve ter sido das últimas coisas que gravou, demonstrou-nos que a beleza pode por vezes contornar e enganar a velhice.

      Bjos

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  3. Caro Luis,
    Mais uma deslumbrante postagem, como já nos habituou. Realmente é um entusiasmo esperar pelas suas postagens, pelo conteúdo das mesmas, pela paixão e dedicação que coloca nas mesmas e pelo enlevo e associações combativas que faz.
    Parabéns! Continue, nos cá estamos esperando para as ler!
    Jorge Amaral

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    1. Jorge Amaral

      Agradeço imenso as suas palavras de incentivo. Poderia ter apenas escrito sobre a chávena, data-la e discorrer sobre a produção da Vista Alegre. Mas achei mais interessante explorar o lado sentimental do colecionismo destas peças de louças, "filhas bastardas de uma grande família de porcelana", na expressão do Vítor Pires.

      Um abraço

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  4. O que me saltou logo aos olhos ao ler o seu post,foi sem dúvida a bela associação que o Luís faz de uma humilde chaveninha ,já muito usada á velhice e decadência humana,representada aqui pela Greco.O Vitor e o Jorge Amaral,interpretaram muito bem o seu post.Parabéns a todos,ao Luís pela sua disponibilidade em nos proporcionar tão belos textos e aos seus leitores por admirarem o que faz.Cumprimentos,Graciete

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    1. Graciete

      Muito obrigado pelo comentário e fico sempre contente por saber que o que escrevo proporciona prazer a quem passa por aqui. Tenho também a sorte de ter um grupo de seguidores que agarram no mote e o continuam em outras direcções.

      Como não tenho pretensões científicas neste blog, posso fazer estas associações algo poéticas entre a porcelana, a música e o envelhecimento humano.

      Cumprimentos

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  5. Olá Luis!
    Ao ler sobre as duas velhas damas ao som de Juliette Greco, me fez abrir um largo sorriso. Chegar aqui e deliciar-me com a tua visão poética e delicada e tão bem combinada, realmente me fez feliz!
    Tu és um ser generoso, por compartilhar conosco tanta beleza.
    Muito, muito agradecida!

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    1. Maria Glória

      Há muito tempo que queria mostrar este pequeno vídeo clip de Juliette Greco, que acho admirável, mas faltava-me um pretexto. A oportunidade surgiu com a ideia de relacionar duas chávenas antigas, com uma beleza fanada pelo tempo, com a canção de Juliette Greco, já na fase decadente, mas que apesar disso consegue ser brilhante, pois recita em vez de cantar.

      Bjos

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    2. A melodia é deliciosa, e voz dela também, uma brilhante interpretação, como disse, Luis.

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    3. Interpretar esta música e já no final da sua carreira foi um grande desafio para Juliette Greco, pois les amants d'un jour tinha sido cantada pela grande Piaf e é sempre difícil pegar em qualquer coisa interpretada por alguém muito grande. Fica-se sempre aquém da versão original, com algumas execepções, como o caso aqui mostrado.

      Bjos

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