Já há mais há muito mais que dez anos que tenho esta gravura. Sempre a achei encantadora, não só por causa da qualidade do desenho, mas pelo insólito do tema, pois nela podem-se ver dois diabos, um na janela e outro sentado na mesa, que certamente se preparam para fazer alguma ao pobre santo, que está no seu scriptorium a comentar algum livro piedoso ou a copiar algum autor clássico, latino ou grego. Realmente é raro aparecerem representações do diabo e achei que tinha que ter estes dois diabinhos a espreitar numa parede qualquer da minha sala, para contrabalançar os santos, cristos e virgens que sempre povoaram as minhas casas.
A moldura, em estilo D. Maria, comprada por três patacos na feira-da-Ladra. Os dourados velhos vão bem com os diabos que espreitam da estampa a minha casa |
Embora a representação me intrigasse, na época, não me preocupei muito em saber muito sobre esta estampa. Sabia que seria certamente do século XVII, até por causa do tipo de letra patente nas legendas, que teria sido arrancada de um livro, mas limitava-me a gostar dela e era tudo.
O diabo entrando pela janela |
Quando comecei a escrever o blog, achei que esta estampa era um tema estupendo, mas esbarrava com o significado do tema, que me era incompreensível. Um dia, quando à propósito da identificação de uma outra imagem religiosa, andei a estudar um pouco os trajes característicos de cada uma das ordens religiosas, percebi que este santo era um dominicano, pois trajava o hábito preto e branco, característico destes frades, traje esse que ficou associado para sempre à imagem da Inquisição. Enfim, como toda a gente sabe, o Santo Ofício foi exercido pelos dominicanos.
O hábito preto e branco dos Dominicanos |
No entanto, tinha agora a dúvida, sobre qual dos santos dominicanos estava ali representado. Seria S. Tomás de Aquino? A imagem do santo estudioso no scriptorium medieval, representada na minha estampa estava de acordo com o perfil deste Santo medieval, que foi um intelectual de gabarito, num tempo de ignorância, em que muito pouca gente sabia ler e escrever. Conta-se que S. Tomás de Aquino espantava quem de perto convivia com ele, pois lia em silêncio, ao contrário dos outros monges, que liam soletrando em voz alta, como as crianças que andam escola primária.
Fiz uma série de pesquisas sobre a iconografia e a vida de S. Tomás de Aquino, mas na vida dele, dedicada ao estudo, à teologia e à filosofia não houve lugar para milagres estapafúrdios. Passei então à hipótese de se tratar de s. Domingos de Gusmão (1170-1221), o fundador da ordem Dominicana, que se desfez em cuidados para combater a heresia albigense em França. Andei a ler aqui e acolá, nas enciclopédias e no site oficial da ordem e não encontrei referência nenhuma a qualquer milagre que envolvesse o santo e em luta com diabo em forma de símio.
Mas, fiz tantas pesquisas no Google, pelos termos, Diabo, S. Domingos, candeia, escritos em português, inglês e francês, que lá consegui chegar à chave do mistério.
O diabo segurando a candeia |
Trata.se de facto de uma representação de um milagre de S. Domingos de Gusmão, ao qual lhe apareceu o diabo a meio da noite em forma de macaco e o santo com o poder da oração, vergou o referido demónio, obrigando-o a segurar-lhe a candeia, para o alumiar enquanto trabalhava. Há um óleo de Pietro della Vecchia, datado de cerca de 1630, no Indianapolis Museum of Art, exactamente com este tema.
O Diabo segurando na candeia de s. Domingos de Gusmão. Pietro della Vecchia, ca.1630, no Indianapolis Museum of Art, |
Este insólito milagre de S. Domingos de Gusmão não faz parte da biografia oficial do Santo. Representa antes uma das muitas lendas medievais que se contavam em torno dos santos e que durante a Contra-reforma, no século XVI, foram mais ou menos limpas dos relatos hagiográficos (hagio quer dizer santo), pois eram demasiado fantasiosas e impregnadas de um paganismo ancestral e a Igreja Católica, nessa época, queria surgir com uma imagem mais séria e racional, depois dos ataques feitos pelos protestantes ao paganismo mal disfarçado do culto dos santos. Ainda pensei que este milagre de S. Domingos tivesse sido retirado da célebre Lenda Dourada, de Jacopo de Varazze, uma compilação de narrativas hagiográficas da Idade Média, mas o nosso seguidor do blog http://mfls.blogs.sapo.pt/, consultou a obra e já me informou que não. Talvez esta iconografia tenha sido inspirada noutro relato medieval, mas essa pesquisa ficará para outra altura.
A tua gravura, que, na verdade, conheço de há muito, sempre me pareceu de boa manufatura e representativa de qualquer lenda que não se conseguia descobrir.
ResponderEliminarMas tanto esgravataste que, finalmente, deste com o fio da meada! Hélas!
Este S. Domingos foi efetivamente um dos que albergou a luta contra os Cátaros no século XIII, liderada pelo papa Inocente III, que de inocente teria, seguramente, muito pouco.
Uma, das muitas, máculas que recai sobre o catolicismo, e que levou ao assassínio bárbaro e frio à mão de tropas, levantadas pelo apelo à cruzada que aquele papa levou a cabo, sob promessa de doação das terras do Languedoc a quem lutasse contra o catarismo, que ali era relativamente popular, uma doutrina derivada do gnosticismo e que acreditava num dualismo divino.
Não sobra muito da base em que se fundamentava esta doutrina, pois, a par da chacina dos cátaros, desapareceram os escritos sobre as chamas da Inquisição medieval, pois devem ter integrado de imediato o Index católico.
Tratou-se de uma chacina onde pereceram muitas dezenas de milhares de vidas, e, os poucos que escaparam, e que não quiseram converter-se ao catolicismo, foram simplesmente entregues ao poder secular e condenados a morrer queimados na fogueira.
Pensar que estas terras onde a crença no catarismo tinha contornos mais populares, que tinham alguma proteção de alguma nobreza da região, sendo igualmente mais ou menos tolerados pelo clero local, que gozavam de uma paz de tolerância, foram todos colocados a ferro e fogo só porque não eram católicos, e com certeza, porque detinham uma prosperidade que, seguramente, se recusariam a partilhar com a igreja de Roma! Infame!
Como resultado desta cruzada, emergiram os poderes da Inquisição medieval e a institucionalização da ordem dominicana, que em Portugal, teve um papel importantíssimo, sobretudo nos seus inícios, pois chegaram ao nosso país logo na primeira década do século XIII - os "cães de Deus"!
Tudo isto surgiu por causa de um demónio e de um "santo"
Manel
Que bela pesquisa, parabéns!!
ResponderEliminarImagino sua felicidade em quebrar o mistério por trás da gravura, que é realmente muito interessante.
abraços
Fábio
Prezado Luís,
ResponderEliminarEste seu blog está cada vez melhor.
O macaco, em questão, também é um símbolo demoníaco, na forma da "cópia" e do "erro". Cesare Ripa trata basntante disto. No caso específico de São Domingos, ele pode ser relacionado pelo apego daquele santo aos textos clássicos (pré-cristãos), que estariam falsamente iluminando seus escritos, pois a Luz verdadeira só viria das Escrituras. Não que eu concorde com o que foi exposto acima, mas, iconologicamente é a melhor resposta.
Um abraço,
E os melhores votos,
Pedro Queiroz Leite.
Caro Pedro Queiroz Leite
ResponderEliminarMuito bem observado! Para estes estes estudiosos medievais, que tudo o que produziam eram manuscrito e o suporte de escrita, o pergaminho, era muito caro, um erro ou uma gralha eram uma coisas importantes, terríveis até, sobretudo se pensarmos que muitas vezes trabalhavam noite fora, mal alumiados por candeias a azeite ou velas de sebo. A associação do erro com o Diabo é pois muito lógica.
Também acho muito plausível a sua ideia acerca do confronto interior que deveria dividir todos os homens com alguma cultura da idade média. De um lado a admiração pelos clássicos, do outro lado o dever de obedecer às Escrituras e claro a Bíblia como verdadeira luz deveria vencer.
Abraços lisboetas
Caro Fábio
ResponderEliminar´
Andei uns quantos anos sem conseguir decifrar esta gravura estranha, ilustrada com dois diabos e um santo e que nos transporta para uma Idade das trevas, alumiada com candeias de azeite e povoada de demónios em forma de símios.
Abraços
Manel
ResponderEliminarQuando leio coisas sobre estas perseguições aos Cátaros, aos judeus ou aos protestantes, não posso deixar de pensar que o catolicismo foi um dia como o islamismo mais rígido e intolerante, que se pratica na Arabia Saudita ou no Irão ou anima aqueles terroristas terríveis, que desviam aviões e matam milhares de pessoas em nome da fé.
Luis,
ResponderEliminarInteressante a forma como iniciou a análise da sua gravura. Para mim também é importante situar e perceber o que tenho em casa para poder fruir esses objectos.
Entendo que não podemos deixar de fazer associações, afinal o pensamento caracteriza-se precisamente pela complexidade que nos torna humanos. No entanto não posso fazer da História um tribunal e sobretudo como homem do século XXI fazer leituras do passado à luz do meu mundo e das minhas vivências.
Abraço
C.
Caro C
ResponderEliminarTenho bem presente que não podemos sentar no banco dos réus pessoas mortas há mais de 600 ou 700 anos. Não vale muito a pena julga-las, até porque já morreram. Mas, como referiu muito bem, é impossível não deixar de fazer associações e o hábito preto e branco ficou associado à Inquisição, o que nos causa sempre um certo arrepio. No entanto, os frades dominicanos que conheci não há muito tempo, eram uns tipos muito abertos, diria mesmo até progressistas.
Enfim, uma simples gravura com o Diabo e o S. Domingos de Gusmão leva-nos muito longe e até conseguiu atrai-lo novamente a este blog, o que me dá sempre muito prazer.
Abraços
Fico de novo rendida perante mais uma interessante história que o Luís aqui partilha, a propósito desta gravura da sua coleção. E depois com o contributo do Manel, que consegue sempre acrescentar ainda mais história, ficamos todos muito mais ricos de conhecimentos...
ResponderEliminarGostando de livros e de livro antigo, também não resistiria a uma gravura destas, representando um monge copista numa tarefa que foi fundamental para a história do livro e da sua divulgação, mesmo que eu nunca tivesse conseguido identificar o santo, nem perceber o que lá estavam a fazer os diabinhos.
Adorei poder observar em pormenor os objetos à disposição do copista – livros, tinteiro com pena, areeiro, candeia - assim como o mobiliário de uma cela de monge do século XVII.
Ao contrário da leitura que o Luís faz da figura do diabo junto à janela, penso que ele não está a entrar, mas sim a fugir aflito ao perceber o tratamento que o S. Domingos deu ao “colega” :)
Pergunto a mim própria porque é que o diabo era representado em figura de símio, mas todas estas representações hagiográficas estão cheias de códigos que muitos de nós não dominamos e por isso são terreno fértil para pesquisa e também para alguma especulação.
Esta conversa de diabos fez-me lembrar Lúcifer, o anjo caído, que criava estes diabitos propositadamente para corromperem cada ser humano, em oposição à tarefa dos anjos da guarda… e a evocação de Lúcifer trouxe-me vagas memórias das minhas longínquas aulas de Literatura Alemã, nomeadamente do estudo do “Fausto” de Goethe.
Veja lá, Luís, até onde o seu post me levou! E é isto que é realmente estimulante!
Só me falta dizer que também gostei muito da moldura.
Um abraço
Maria Andrade
ResponderEliminarTal como a si também me fascinou nesta gravura os objectos e o mobiliário da cela deste monge copista, que estão desenhados com grande precisão. Não sei se reparou numa cortina, à esquerda da janela? Será a de uma cama de dossel?
Quanto ao Diabo junto da janela, não sei se não representará dois momentos da mesma cena. Primeiro o Diabo entra, segundo é amansado pelo poder da oração do Santo, mas não tenho a certeza. Se soubesse latim, a legenda esclarecer-me-ia certamente.
Diabo, Santanás, Lucifer são nomes que nos fascinam sempre e esta estampa atrai-nos tanto sem dúvida por essa razão.
abraços
A moldura foi comprada por quase nada na feira-da-Ladra. Limitei-me a pintar as falhas com dois tons de dourado, um mais vivo outro mais velho. Levei-a depois a uma casa de molduras muito boa e económica, junto ao hospital de S. José, A Vencedora, em S. Lázaro, que fizeram um passse-partout muito feliz.
ResponderEliminarAbraços
Olá Luís, boa noite !
ResponderEliminarEste teu blog "é um vício", pois fico "em êxtase" com os detalhes dos posts, a descrição minuciosa (porém com uma escrita leve e com uma agradável nota de humor) e claro, também os ótimos comentários dos seguidores ajuda a qualidade deste espaço. Assim quem o lê acaba por ficar "agarrado".
Realmente suas pesquisas são tão minuciosas que acabamos por nos simpatizar até com este demónios que devem ter sido "tocheiros" à força :)
Seu post criou-me o desejo de ir buscar uma publicação da Taschen, "Hieronymus Bosch", por que este foi tão fértil a criar estas figuras demoníacas, pois eu tinha a ideia de ter visto este demoniozinhos em forma de micos (símios), uns com asinhas outros sem ou com outros atributos, mas ali a profusão de tais figuras é tal que nos perdemos no meio de tantas alusões, códigos e significados...
Enfim, o que resta dizer...teu blog é mesmo bom !
Um grande bem haja pelo teu empenho !
José Oliveira
Olá Luis,
ResponderEliminarVou visitando o seu blogue com alguma regularidade e fico sempre mais rico com as suas informações e os comentários dos seus visitantes.
No entanto queria deixar também a minha opinião sobre os Cátaros, que foram uma orientação religiosa, muito importante e enfrentadora à igreja católica à sua Época, dái a sua perseguição e quase extermínio.
Quanto à loja de Molduras não será antes a já quase centenária Competidora ( fundada em 1920)junto ao Hospital de S. José em S. Lázaro, em vez da citada casa.
Abraço
Carlos Caria
Caro José Oliveira
ResponderEliminarDe facto aqui no blog consegue-se por vezes criar uma espécie de tertúlia virtual agradável pois tenho o privilégio de contar com comentadores interessantes.
Julgo que este demónio em forma de símio assenta em tradições antigas, que provavelmente aparecerão nos quadros do Boch. Aliás este pintor é um desafio para todos os que estudam iconografia e simbologia. A própria iconografia de satanás ou do Demónio é um tema com panos para mangas e encontrar a origem da tradição de representar o demónio como um macaco poderia ter sido uma das abordagens possíveis neste post.
Talvez quando descobrir de que livro esta estampa foi retirado, faça um novo post e aproveite para descobrir a razão porqiue se associou o macado ao demónio.
Abraços
Carlos Caria
ResponderEliminarObrigado pelas suas palavras simpáticas. Sei pouco sobre essas heresias medievais, que deixaram uma marca muito grande no Sul de França e nos Alpes. O assunto é fascinante, mas uma pessoa não pode explorar tudo o que gosta.
Quanto à casa de s. Lázaro, chama-se realmente a Vencedora (fui ver o verso de uma das molduras) . A competidora era na Rua dos Correeiros e já fechou. Esta de s. Lázaro, fundada em 1875, vai-se aguentando teimosamente, explorada por uma família, onde todos lá trabalham, pai, filho e filha. É uma gente simpática e os preços são aceitáveis
Abraços
Sim, Luís, reparei no cortinado e também o tomei como sendo de uma cama de dossel.
ResponderEliminarE continuo na minha :) embora seja um pormenor certamente sem importância: o diabo à janela está de costas, o rabo está virado para nós por isso deve estar a sair. Não me parece que seja o mesmo porque não tem figura de símio e até tem asas e uns pequenos chifres, que o macaco obviamente não tem. Como vê estive atenta a todos os pormenores...
Quanto a interpretá-los é que já não serei tão esperta... :)
Abraços
Maria Andrade
ResponderEliminarEstive a observar melhor o diabinho na janela e de facto parece estar antes a sair do quarto.
Anraços