Era jovem, teria uns 23 anos, quando descobri a Igreja de S. Facundo em Vinhais. Era um sítio um bocadinho tenebroso, pois é a igreja do cemitério, mas fiquei logo fascinado com umas esculturas misteriosas, que a igreja apresentava na fachada, dispostas ali sem obedecer a qualquer regra lógica. Parecia que alguém as tinha encastrado ali às três pancadas, numa reconstrução qualquer apressada da igreja.
Comecei a ler tudo o que me aparecia sobre o assunto que era pouco. Basicamente, a obra do Abade de Baçal e as fontes que ele citava. O grupo escultórico principal era tomado como a Santíssima Trindade, o grupo das três cabeças representaria S. Facundo e S. Primitivo e Deus todo-poderoso. Enfim, a coisa não me convenceu de todo e quando comecei a comparar estas esculturas de S. Facundo com as imagens da Trindade e percebi que tinham muito pouco em comum.
A Santíssima Trindade é um dogma católico complicado, cuja compreensão escapa a maioria das pessoas. Os cristãos ortodoxos nunca o aceitaram e foi umas das razões principais porque se zangaram irremediavelmente com Roma. Os protestantes também nunca engoliram a ideia de três divindades que são uma só. Portanto, quer isto dizer, que em termos artísticos, havia o maior cuidado em representar a Santíssima Trindade, de forma, a que as 3 pessoas tivessem exactamente mesmo peso. Ora estas esculturas de S. Facundo não tinham a ver com a simetria das representações da Santíssima Trindade, também conhecidas por trono da Graça. Percebi que não eram a Trindade, mas o que seriam então?
Santíssima Trindade ou o Trono da Graça. Museu de Mação |
Depois de revirar muitos manuais de História da arte, encontrei por acaso uma imagem muito semelhante ao grupo escultórico de S. Facundo, que representava uma Virgem em Majestade Românica do Séc. XII ou XIII, que estava no Museu Arqueológico de Madrid e por coincidência ou não tinha vindo de uma localidade espanhola, onde S. Facundo tinha sido martirizado, Sahagun (corruptela de S. Facundo). Percebi então que estava ali uma representação de Nossa Senhora do período românico, provavelmente do século XIII e bastante rara.
Virgem em Magestade. Museu Arqueológico de Madrid, proveniente de Sahagun |
Mas esta descoberta ficou arquivada na gaveta. Durante a minha juventude andei demasiado ocupado em sobreviver a empregos pagos a recibo verde ou a contrato, a passagens meteóricas pelo ensino e a fusões de direcções-gerais para parar e escrever um texto sobre S. Facundo e publica-lo.
Depois casei, tive filhos e divorciei-me e só agora já perto dos cinquenta, encontrei outra vez disposição para me dedicar à história e aos meus projectos culturais. Quando comecei a escrever o blog, comecei logo a pensar alinhavar um texto sobre as esculturas de S. Facundo, mas o assunto era um bocadinho complexo para um blog, pois na Internet as pessoas não tem pachorra para ler grandes teses ou arrosados, como diria a outra…
Depois, há muito pouco tempo o Roberto Afonso da Câmara Municipal entrou em contacto comigo, pedindo autorização para usar numa exposição uma imagem publicada no meu blog, sobre o convento da Mofreita e eu com o maior desplante, ofereci-me para colaborar no boletim municipal, com um texto sobre S. Facundo. A sugestão foi muito bem aceite, o texto foi publicado no passado mês de Agosto e coloco aqui uma cópia do boletim Municipal de Vinhais (págs. 24 a 25), para quem desejar saber mais sobre esta raríssima imagem medieval da Virgem Maria e a chave para compreender o significado desta representação, que nos parece tão primitiva.
Luis, muitos parabéns pelo ótimo artigo no boletim municipal! Gostei muito de ler sua pesquisa.
ResponderEliminarE que fachada realmente intrigante aquela!
abraços
Fábio
ResponderEliminarDepois de ter descoberto estas esculturas nas fachada da Igreja nem calculas as coisas que não me passaram pela cabeça. Pensei que fossem coisas muito mais antigas, talvez visigóticas. Foi um autêntico quebra-cabeças, mas foi um processo muito giro, pois conheci toda uma série de lendas à volta desta igreja que fazem eco de um tempo ancestral, anterior à cristianização da região. Há também uma série de possíveis relações com com o centro monástico de Sahagun, não muito longe dali, em Espanha, que ainda não tive tempo de explorar. Talvez um dia, possa continuar esta investigação.
Um abraço
Olá Luís
ResponderEliminarParabéns. Mais uma vez a sua versatilidade surpreende. Investigação cuidada e criteriosa. As Virgens em Majestade, principalmente as de alta época , são as que mais me fascinam, pela verticalidade das suas linhas e postura magnificente.
If
Muito obrigado cara IF
ResponderEliminarAs Virgens em magestade e esta em particular são imagens poderosas, quase totémicas.
Talvez por deformação profissional ou por educação, interesso-me um bocadinho por tudo.
Um abraço
A peça é vetusta e, seguramente, veio de outra qualquer construção anterior.
ResponderEliminarOs personagens, a rigidez da forma, a sua rusticidade apoiam as teses que advogas.
Mas creio que, com o tempo, ainda poderás chegar mais longe, pois o tema é apaixonante.
Quando vi a primeira vez esta escultura ao vivo fiquei impressionado com ela e cheio de vontade de saber mais.
Ainda bem que te interessas por ela, pois isso significa que a tua pesquisa não vai ficar por aqui.
Manel
E o teu desenho está muito bem.
ResponderEliminarManel
Muito interessante.
ResponderEliminarPassarei mais vezes por aqui... um sítio onde me parece que poderei aprender muita coisa.
Que desafio empolgante lhe colocou esta igreja de S. Facundo de Vinhais! Escusado será dizer que fui ler o texto do boletim municipal e gostei imenso. Imagino a satisfação que lhe deu ter encontrado a chave de um enigma que outros não conseguiram desvendar...
ResponderEliminarEstas Virgens em Majestade fazem lembrar os ícones da Igreja Ortodoxa, Será porque são representações arcaicas que perduraram mais nessa linha do cristianismo?
Eu lembro-me de uma lindíssima, românica, esculpida em madeira, do Museu Grão Vasco.
Têm aquele ar primitivo e tosco da falta de proporção entre a cabeça e o corpo, são geralmente atarracadas mas lindas!
Parabéns, Luís, e obrigada pela descoberta.
Bjs.
Interessantíssimo! Gosto muito de escultura e iconografia românicas.
ResponderEliminarManel
ResponderEliminarSe consegui identificar a figura central como uma Virgem em Magestade românica, as restantes esculturas da igrejas ficaram por decifrar. Também não consegui perceber exactamente em que época as esculturas foram ali colocadas, embora me pareça que tenha sido após a Restauração.
Ficaram também por explorar uma série de coincidências. Consegui identificar esta imagem a partir de uma escultura proveniente de Sahagun, a terra onde foi martirizado S. Facundo. Esta localidade foi durante a Idade Média um centro monástico importante e difusor de um tipo de arquitectura em tijolo, do qual encontramos um belíssimo exemplar, logo a 30 km de Vinhais, a abadia de Castro de Avelãs. Julgo que haverá qualquer ligação entre S. Facundo de Vinhais e Sahagun.
Cara Luisa
ResponderEliminarBem vinda ao meu blog. Ainda bem que gostou, pois eu dei umas boas gargalhadas com a leitura do seu, nomeadamente os textos da "reunião" e do "choro" provocado pelas cebolas.
Um abraço
Maria Andrade
ResponderEliminarA sua observação é pertinente. Há de facto uma ligação com as Virgens bizantinas, nomeadamente as chamadas “Theotokos”.
Filho do Judaísmo, uma religião sem imagens, o cristianismo ao difundir-se pelo mundo greco-romano, teve necessidade de se adaptar e representar por imagens Deus, Cristo, a Virgem, os Apóstolos e os santos. Os primeiros cristãos pediram então emprestados ao paganismo imagens para representar os seus símbolos. Para pintarem ou esculpirem Cristo, Deus e a Virgem vão buscar as imagens do Imperador romano entronizado e é no mundo grego de Bizâncio que essa iconografia se desenvolve. Depois a partir do ano mil, com um certo renascimento cultural na Europa, essas imagens passam para Itália (os primitivos italianos) e vão-se difundindo na Europa.
Beijos
Margarida Elias
ResponderEliminarMuito obrigado. Na juventude tive uma paixão por escultura românica, mas depois a necessidade de ter um ordenado e um emprego, afastaram-me dessa paixão. Tento agora retomar esse interesse pelo românico
Um abraço
Olá Luís.
ResponderEliminarParabéns pela sua magnífica investigação e manifesta paixão pelas suas origens transmontanas com a divulgação do seu imenso e rico património.
Abraços
Caro Joaquim
ResponderEliminarMuito obrigado. Muito mais havia para investigar em Trás-os-Montes, mas infelizmente faço parte dos quase 30 por cento da população portuguesa, que vive na área da grande Lisboa e Margem Sul e não tenho oportunidade para visitar os arquivos distritais de Braga, Vila Real ou Bragança.
Um abraço
Quando visitei a Igreja de São Facundo pela primeira vez, reparei nestas magnificas esculturas de pedra que agora refere, mas não fazia ideia do valor cultural que elas possuíam. É de facto magnifico saber que são imagens do século XII e XIII que chegaram até nós. Obrigada pelo seu trabalho de investigação.
ResponderEliminarCara Miquinhas
ResponderEliminarExistem algumas Virgens românicas nos museus portugueses, mas normalmente são imagens em madeira, destinadas a estar dentro das igrejas. Agora Virgens em Majestade em pedra, destinadas provavelmente ao exterior não haverá muitas. Julgo mesmo que em Portugal será a única.
um abraço
Bom e interessante.Continue e dedique-se mais um pouco a toda a ancestralidade de Vinhais e das suas gentes.
ResponderEliminarNão será tempo perdido.
Um abraço
Caro Anónimo ou Anónima
ResponderEliminarVinhais fará sempre parte dos meus interesses e periodicamente regresso a esta Vila, ainda que seja apenas em espírito ou muitas vezes em sonho. Enfim, continuarei a escrever sobre a terra
GOSTEI DE CONHECER. BOM TRABALHO.
ResponderEliminarCaro F. Seixas.
ResponderEliminarMuito obrigado pelo seu cumprimento tão simpático.
Um abraço
Adulterar a história sem encontrar prova documental não é solução para nada. Criar argumentos de fictícios por semelhança é mt arriscado. Se não sabemos o significado não devemos inventar. Devemos sim, indagar por prova arqueológica documental. Não inventem!
EliminarNão entendo esse tom ofensivo. A opinião de que se trata de uma Virgem em Magestade foi muito bem fundamentada e na altura em que fiz este estudo, já há muitos anos, li o que havia sobre escultura românica e se consultar qualquer manual sobre essa arte, vai chegar à mesma conclusão que eu. Se visitar o Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, encontrará em esculturas semelhantes a estas, embora em madeira.
EliminarConsultei também o Abade Baçal e tudo li tudo o que escreveu a respeito desta igreja.
Claro, sou um mero amador e infelizmente nunca cheguei a bater os documentos do Arquivo Distrital de Bragança, para perceber exactamente quando é que estas esculturas foram entaipadas.
Naturalmente se algum dia fizerem escavações arqueológicas nesse templo, muito mais irão descobrir. Talvez o Senhor ou Senhora as queira financiar.
Cumprimentos
Luís Montalvão