Já aqui contei no blog que o meu bisavô, José Maria Ferreira Montalvão, tinha a mania dos automóveis. Introduziu o primeiro carro em Chaves, um Darracq, modelo de 1901 e depois a partir dos anos 30, conduziu um Opel 1.8, de 1931, até quase ao final da sua vida, em 1965. Contudo, nunca conseguiu passar no exame de condução e apesar de ser um juiz de Direito conduzia sem carta e de uma forma absolutamente desastrada.
O meu bisavô, o velho Montalvão, como era conhecido em Outeiro Seco |
Quando o polícia sinaleiro da praça principal de Chaves o via, mandava parar de imediato o trânsito todo, não fosse o velho Montalvão chocar com uma das poucas viaturas, que por ali circulava, ou matar algum burro ou uma outra cavalgadura qualquer. Também é verdade que este comportamento só era possível numa época em que poucos automóveis circulavam nas terras do interior.
Chaves, vista da casa dos bisavós, na Madalena. Um burgo medieval quase sem carros |
Se olharmos para fotografias de Chaves ainda em 1952, vemos as ruas vazias, gente a andar a pé no meio da faixa de rodagem tranquilamente e um único automóvel ao fundo. Talvez até fosse o do meu avô, que quando aparecia certamente introduzia alguma animação nestas ruas paradas do velho burgo medieval. O meu pai lembra-se ainda bem das viagens de Outeiro Seco para Chaves. Para fazer este trajecto de cerca de 4 ou 5 km, o meu bisavô, recorria dois co-pilotos para o auxiliar, o meu pai, que viajava o lado direito e um criado, o Zé-Mouco, que ficava encarregue de viajar o que pudesse ocorrer do lado esquerdo. E mesmo assim, o Opel modelo de 1931 atropelava galinhas, gatos, cães, patos e sei lá que mais.
Quanto ao carro, foi vendido por alturas da morte do meu bisavô a uma família de Outeiro Seco e depois disso, passados estes anos todos, acreditámos todos que estaria desfeito em mil pedaços, espalhados pala terra ou fundidos para fazer panelas de pressão ou parafusos.
O Opel no momento em que foi descoberto |
Contudo a semana passada, um Senhor da Associação Automóvel Vale do Ave, o Joaquim Augusto Fernandes da Cunha contactou-me por e-mail, informando-me que tinham o carro do meu avô e que estavam a restaura-lo. Um dos seus dos membros descobriu-o algures em Valongo comprou-o e depois ofereceu-o à Associação Automóvel Vale do Ave. Depois, tal como os conservadores de Museu, os coleccionadores e amantes de carros antigos, tentam sempre traçar o percurso histórico dos seus objectos, encontrar os antigos proprietários, querendo saber algo mais que confira sentido e alma aquela máquina de não sei quantos cilindros. Foram ao Google, introduziram o nome do modelo e a matrícula, clicaram no search e foram ter ao meu blog e descobriram, que o carro pertenceu ao meu bisavô, o último represente de uma fidalguia originária de Espanha, os Montalvões, cuja existência decorreu durante dois séculos no Solar de Outeiro Seco.
O Solar de Outeiro Seco antes de entrar em ruína |
O Joaquim Cunha explicou-me também que este Opel 1.8, o primeiro modelo a sair desta fábrica depois ter sido comprada pela americana General Motors, era um carro extremamente potente, difícil de conduzir, o que explica até certa forma as azelhices do meu bisavô, bem, ou enfim, pelo menos uma parte delas…
Muito curiosa a história e quase um milagre!
ResponderEliminarDeve haver uma hipótese num milhão de que este facto se produzisse e ... eis que aconteceu!
O carro é uma preciosidade, a roda sobressalente exterior, contrária ao lado do condutor, que se encaixa nos páralamas fantásticos que acompanham o contorno das rodas; a grelha frontal com raios todos paralelos, cromados, que tornam a parte da frente uma autêntica preciosidade.
Sei que os vidros planos do párabrisas não são nada aerodinâmicos, e aumentam o consumo de combustível, mas transformam surpreendentemente a carlinga de uma forma como já não estamos habituados a ver.
Será que os limpa párabrisas estavam ligados à parte superior do aro do vidro ou em baixo, como é comum hoje em dia? (não consigo percebê-lo na fotografia do carro que publicas no primeiro post de 22 junho de 2010)
Um belíssimo achado e tudo devido ao teu blog! Doutra forma seria muito mais difícil encontrar referências à história afetiva do veículo, pois, dos anteriores donos, até deveria ser fácil, face à pesquisa que se poderia fazer ao livrete da viatura.
Os parabéns ao teu blog e à associação que, por uma feliz coincidência, permite remeter à vida uma nova peça do puzzle que é a tua história familiar
Manel
Manel
EliminarOs blogs tem estas capacidades fantásticas e inesperadas. Colocam em comunicação pessoas que estão a centenas de km de distância e iniciam um processo de troca de informações, documentos e ideias. Quando comecei este blog e a escrever sobre as memórias da família Montalvão havia muitos aspectos dessa história, que desconhecia inteiramente e hoje graças a esta troca de informações no blog sei muito mais sobre Outeiro Seco e a família.
A descoberta que afinal o automóvel do meu bisavô ainda existia foi uma coisa surpreendente.
Este Opel é ainda anterior à moda da aerodinamia, que começou em meados dos anos trinta. Apresenta as linhas quase quadradas.
Um abraço
Caro Luís,
ResponderEliminarEstá de parabéns pelo "achado"!
Realmente o sucedido foi o que se costuma chamar "encontrar agulha em palheiro"!
E o carro é mesmo uma peça de museu. Olhamos para ele, e de imediato somos transportados para outros tempos, outras gentes.
Poderei acrescentar que um Opel é sempre um Opel. São intemporais, e duram, duram, duram (como as pilhas Duracel, do anúncio do coelhinho cor de rosa). Tenho um, que já faltou mais para fazer concorrência a esse...
Abraço
Alexandra Roldão
Os automóveis alemães eram tradicionalmente sólidos e feitos para durar. Os mercedes, os opeis, os volkswagens foram todos carros extraordinariamente robustos.
EliminarUm abraço e obrigado
Bom dia Luís,
ResponderEliminarEsse sim foi um achado.
Como diz o Manel é mais uma peça para a história da tua família.
Esperamos ver fotos quando estiver a sua recuperação terminada.
Um abraço,
Berto
Humberto
EliminarO carro ainda está em restauro e obviamente que este trabalho não é simples. Há muitas peças em madeira que tem que ser copiadas manualmente. A Associação prevê terminar o automóvel dentro de um ano e já me prometeu fotografias, que publicarei aqui naturalmente, até para publicitar o seu trabalho, que bem o merece. Também tenho esperanças de ver o carro ao vivo, talvez um dia em que o tragam até Lisboa para um desses rallys ou encontros de automóveis antigos, que fazem as delícias dos transeuntes.
Um grande abraço
Luís , deliciosa a história do carro e do seu avó .Ainda dei umas gargalhadas !! De facto um belo achado . Como os tempos mudaram nestes 80 anos ...
ResponderEliminarUm abraço
Cara Quina
EliminarAs histórias de condução do meu bisavô são de facto mirabolantes. Duas das suas filhas ficaram com os dentes todos partidos num dos muito acidentes que sofreu e tiveram que usar placa o resto da vida.
Em todo o caso, tem razão, esta petite histoire mostra bem um Portugal muito diferente do actual, com cidades quase sem automóveis, em que quinze kms eram ainda uma distância razoável a vencer.
Um abraço
Sr. Luís Montalvão
ResponderEliminarBoa tarde,
Agrada-me especialmente ler os seus artigos sobre memórias familiares, o solar de Outeiro Seco e os castanheiros monumentais da região de Chaves / Vinhais.
Acompanho o blog desde que o descobri em 2009 quando realizava uma pesquisa sobre tectos de masseira / caixotão e fui direcçionado para um artigo em que abordou essa questão.
A leitura dos seus artigos é muito útil e profícua e acredito que os mesmos poderão constituir uma fonte inestimável de informação que poderia ser compilada e sistematizada para orientar alguns aspectos do processo de restauro da sua casa familiar, quando esse projecto for passível de execução.
Ainda que o edifício não seja de sua propriedade, em nome do bem comum, acredite e não desista desse intento, mantenha viva a memória daquela casa, através dos seus escritos, da sua presença e das suas relações em Chaves.
Estes lugares constituem a essência e a identidade de Portugal e se não forem acautelados por pessoas com a necessária sensatez, rigor e sensibilidade,acabarão essas belas paredes reconstruídas um dia, por uma equipa sem qualquer visão, que a partir delas edificará um edifício novo, provavelmente com um anexo contemporâneo, num resultado que não tem nada a ver com as nossas raízes culturais mas que infelizmente é o que vemos de Norte a Sul do país (com muito poucas e honrosas excepções), descaracterizando os nossos lugares, aldeias e paisagens.
Por tudo isto, o seu trabalho de pesquisa e investigação informal sobre este tema, por força do seu elevado interesse cultural, é algo de meritório e que nos orgulha.
Alonguei-me um pouco, mas não queria deixar de lhe transmitir os meus agradecimentos, enquanto português.
Muitos Parabéns!
Caro Anónimo
EliminarMuito obrigado por todas as palavras simpáticas, mas por favor trate-me por Luís.
Desculpe só agora lhe responder, mas não tenho tido vagar para lhe dar uma resposta à altura do seu comentário.
Não tenho muitas esperanças que restaurem o solar dos montalvões, sobretudo agora, que não há dinheiro para nada. Bem, talvez haja ainda dinheiro para fazer uma rotunda com uma fonte luminosa e uma escultura de qualidade duvidosa ou para pagar o cachet do Tony Carreira na festa da senhora local. Mas, apesar tudo, sei que no blog estou a dar elementos valiosos para quem um dia queira restaurar a casa. Mesmo que deixem cair a casa e julgo que o assim vai acontecer, pelo menos fica escrita parte da sua memória. A civilização ocidental é feita de uma cultura escrita e o que não fica registado é como se nunca tivesse existido.
Também sei que aqui no blog, num espaço acessível a milhões de cibernautas, estou a transmitir de uma forma apelativa um gosto, uma certa cultura estética, que poderá despertar a atenção para o antigo, o histórico e o património cultural homens e mulheres que aqui vem ter por mero acaso. E presumo que muitos deles perceberão que as loiças antigas são giras, as casas com história tem muito mais piada que os caixotes de apartamentos e a arte sacra não é uma beatice, mas qualquer coisa apaixonante, mesmo para quem não tem crença em qualquer deus.
Um grande abraço e volte aqui sempre
Parabéns, Luís! Só por esta descoberta já teria valido a pena o projeto do seu blogue... mas a verdade é que ele se tornou imprescindível para muitos de nós. :)
ResponderEliminarQuem sabe se, como alvitra o anterior comentador, também o Solar do Outeiro Seco vai um dia beneficiar destes seus escritos?
Torcemos para que assim seja.
Bjos
Muito obrigado Maria Andrade
EliminarOs seus comentários sempre pertinentes e bem fundamentados tem ajudado a esclarecer muitos pequenos grandes mistérios por aqui.
bjos
Luís
ResponderEliminarQue sorte, ter encontrado o "espada" do seu bisavô, em razoáveis condições, pelo menos de aspecto. As recordações que lhe vêm à memória e as ligações que, de imediato, estabeleceu com os locais por onde ele circulou. Está de parabéns.
if
Cara If.
EliminarMuito obrigado. Eu já não tenho memória deste carro. Tudo o que aqui conto, foi visto pelos olhos do meu pai. São as recordações dele que tem permitido este delinear progressivo das memórias de uma família, cuja história teve por cenário o Concelho de Chaves e aldeia de Outeiro Seco.
Um abraço
Esse carro foi vendido ao Zé do Rio,e depois teve um curto circuito ficando avariado por muito tempo, no coberto do alambique, e nós eramos garotos e iamos brincar para ele até que mais tarde foi levado por alguem. joaojacinto
ResponderEliminarÉ verdade caro João Jacinto.
EliminarTenho até ideia de o Altino Rio me ter dito que aprendeu a conduzir neste carro.
Muito obrigado por partilhar as suas recordações.
Um abraço
Subscrevo integralmente as palavras do seu seguidor,(que comentou como Anónimo em 27 de Junho) mas, especialmente, estas:
ResponderEliminar"Ainda que o edifício não seja de sua propriedade, em nome do bem comum, acredite e não desista desse intento, mantenha viva a memória daquela casa, através dos seus escritos, da sua presença e das suas relações em Chaves."
É um prazer, sempre, vir aqui ao seu blogue.
Um abraço.
emília reis
Cumprimentos
Cara Emília Reis
ResponderEliminarMuito obrigado pelo seu apoio. Continuarei a escrever sobre, Chaves, Outeiro Seco, Vinhais e Tras-os-Montes. Aliás, julgo que temos sempre a tendência a andar à volta dos meus assuntos. No fundo, estamos sempre a reescrever as mesmas histórias.
Um abraço
Boa noite,Luis
ResponderEliminarSobre carros ,não posso dar opinião.Pois não entendo nada
Mas que foi uma sorte ter encontrado esse lindo carro do seu avô,lá isso foi
Quanto ao Solar,pode não haver dinheiro para nada
Mas sabe que a união faz a força.
E não dizem que querer é poder?
Querendo,o povo de chaves conseguiria restaurar um Solar com História
A própria Câmara tinha a obrigação de manter de pé uma parte da História de Chaves
Seu avô foi uma pessoa importante na terra,como tal há que respeitar os pergaminhos
:]
Quem sabe...
Um abraço
Que história deliciosa e que terrível devia ser o seu avô! :)
ResponderEliminarQuanto ao automóvel, há relíquias que adoro, esse modelo não conheço mas gostei da história que o envolve.
O Luís tem uma maneira peculiar de chegar ao passado e aos objetos o que encanta.
Bom dia! :)
Cara Grace
ResponderEliminarObrigado pelo incentivo. O Blog serve para manter a questão do solar em aberto. Um grande abraço
Ana
ResponderEliminarTento sempre contar estas historietas de forma a serem agradáveis a todos. Aliás, os meus parentes nem são grandes seguidores do blog.
Um abraço
Viva, Luís...
ResponderEliminarMais uma deliciosa história de família, que acaba por ser uma história colectiva, pois esse carro, tal como o seu avô, contribuíram para a história de uma região e para o seu património cultural e emocional... é bom saber que as suas memórias continuam vivas perpetuando bons momentos.
Caro Gastão
ResponderEliminarObrigado pelo seu comentário. Esta pequena história acaba por ser testemunho de uma certa vivência do interior de Portugal dos anos 30, 40 e 50, quando circulavam muito poucos automóveis, havia ainda famílias da antiga fidalguia rural a residirem nas suas grandes casas solarengas, num modo de vida ainda sobrevivente da sociedade de Antigo Regime. Também é reveladora do corporativismo da época e dos privilégios, que algumas pessoas detinham quase naturalmente. Hoje seria impensável um juiz de direito conduzir sem carta. Talvez um dos nossos políticos seja capaz de conduzir sem carta...mas um juiz nunca.
Abraço e espero poder um dia contar com uma reportagem fantástica do Ruinarte a Outeiro Seco.
Um abraço