sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Um concerto ou uma volta virtual pelas bibliotecas e museus do mundo


Recentemente, na Feira de Estremoz, o Manel e eu vimos uma pequena estampa muito engraçada, certamente do século XVIII, com um preço muito simpático. O Manel perguntou-me se eu ainda tinha espaço para ela em casa, pois poder-me-ia oferece-la como prenda de anos. E eu como não tenho juízo nenhum, aceitei-a e lá tenho mais uma estampa para pôr na parede em casa, não sei exactamente aonde. Julgo que com a idade, desenvolvi uma agorafobia, isto é, o horror aos espaços vazios. Não suporto ver 10 cm de parede sem nada pendurado. 



Esta estampa representando um concerto familiar ou de amigos tem a legenda cortada em baixo, como o Manuel, bem me chamou a atenção. Contudo as inscrições relativas aos nomes do artista e gravador, Guerards Pinxit e G. Texier Sculp escaparam à tesoura assassina de algum antigo proprietário desta estampa e permitiram-me ir para o google pesquisar por estes termos. Em poucos segundos descobri no site da Biblioteca do Congresso, em Washinton, uma gravura igualzinha à minha, só que inteira, com a legenda intacta, onde se podia ler Tiré du Cabinet de Mr. le Brun. / D'après le Tableau Original de Guerards de la Grandeur de 10 pouces sur 12 de large.
o exemplar da Library of Congress
No registo da Biblioteca do Congresso, estava também identificada a obra. Trata-se do concerto, uma estampa feita a partir de uma obra do pintor holandês Gerard Pietersz van Zyl (1607-1665) e gravada pelo francês G. Textier (ca. 1750-1824), que foi um discípulo de Jacques-Philippe Le Bas, de quem já apresentei aqui uma estampa, em 24 de Março de 2011. Entre os nomes relacionados da ficha catalográfica, remetiam ainda para um senhor Le Brun, Jean-Baptiste-Pierre, 1748-1813


Em seguida fiz mais umas pesquisas e voltei a encontrar a mesma estampa no British Museum, só que com mais elementos adicionais. Além da identificação do gravador e artista, que já tinha encontrado na Biblioteca do Congresso, a ficha de inventário do Museu Britânico remetia-me para o nome daquilo que me pareceu de imediato o título do livro de onde tinha sido recortada a estampa Galerie des peintres flamands, hollandais et allemands de Le Brun.
Madame Vigée-Le Brun pintada por ela própria. O expoente máximo de um estilo destinado a seduzir.

Somei dois mais dois e percebi que este Monsieur Le Brun era nada menos, nada mais do que o marido da famosa artista francesa Madame Vigée-Le Brun (1755-1842), que foi pintora oficial da corte de Luís XVI e nos deixou toda uma colecção de retratos encantadores, que representam em si, o melhor do chamado estilo Luís XVI, em que as artes, sejam elas a pintura ou o mobiliário ou a moda pretendem antes de tudo seduzir. Ficaram célebres os retratos que realizou de Maria Antonieta e dos seus filhos, mas pintou também a grande aristocracia francesa e europeia.
Retrato da Baronesa de Crussol, por Madame Madame Vigée-Le Brun Toulouse, musée des Augustins

Este Jean-Baptiste-Pierre Le Brun (1748-1813) era um pintor medíocre, ao contrário da sua mulher. Também não era bom marido, bebia, jogava e não podia ver um rabo de saia, mas Monsieur Le Brun tinha um bom gosto extraordinário, era um marchánd de arte conhecido e formou na sua casa uma belíssima colecção de pintura.


Parti então para a Biblioteca Nacional de França em busca do título Galerie des peintres flamands, hollandais et allemands de Le Brun, para verificar se objectivamente esta minha estampa fez realmente parte da dita obra. Depois de algumas recherches, acabei por ir ter ao gallica.bnf.fr, o portal digital da Bibliothèque nationale de France e lá encontrei o referido livro, Galerie des peintres flamands, hollandais et allemands, ouvrage enrichi de deux cent une planches gravées d'après les meilleurs tableaux de ces maîtres, par les plus habiles artistes de France, de Hollande et d'Allemagne…, que foi editado em 1792. A minha estampa fez parte do volume I e portanto pode ser datada seguramente de 1792.

 
A folha de rosto do livro de onde a minha estampa foi retirada
Em suma, o Monsieu Le Brun, ou talvez alguém que quisesse vender as obras, pois em 1792, já tinha estalado a Revolução Francesa, mandou publicar um catálogo da sua valiosa colecção e esta minha estampa fazia parte desse livro.

Uma obra de Gerard Pietersz van Zyl. Os concertos privados e as lições de música eram temas recorrentes da sua obra

Continuei as minhas pesquisas, agora para tentar saber um pouco mais sobre o pintor, o tal Gerard Pietersz van Zyl e sobretudo para conhecer o paradeiro do quadro que deu origem à gravura. segundo li na Biblioteca do Congresso, num artigo mais extenso que entretanto encontrei, Gerard Pietersz van Zyl foi um pintor holandês do XVII, o chamado século de ouro da Holanda, bastante famoso na sua época e cujas obras na altura atingiam preços muito mais altos que as dos seus colegas Vermeer e Rembrandt. Caído hoje no esquecimento, os seus quadros são muito característicos e normalmente representam pequenos grupos em volta de instrumentos musicais. Quanto ao original, que serviu de modelo à obra não o consegui localizar, mas eu também não sou conservador de museu ou investigador e com tantos conflitos na Europa desde 1792, muitas obras se perderam para sempre.

A minha estampa já com a nova moldura

11 comentários:

  1. A estampa é maravilhosa e o resultado dela mais ainda.
    Parabéns pelo aniversário, pela prenda, mas sobretudo pela pesquisa que apresentou.
    Excelente.
    Boa tarde!:)

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    1. Cara Ana

      Tenho um prazer louco em descobrir de que livro foi rasgada esta ou aquela estampa. Talvez por ser bibliotecário desenvolvi uma espécie de faro para essa área e depois, hoje em dia, as grandes instituições culturais da Europa e EUA tem colocado as suas colecções em linha, o que facilita o trabalho dos amadores de antiguidades e velharias.

      Bjos e obrigado

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  2. Caro Luís,

    Tenho andado um pouco emperrada para escrever. Nesta época, quando toda a gente está de férias, os professores andam às voltas com concursos...razão pela qual me foge a veia da escrita...
    Mas vamos ao que interessa:
    - Mais uma lição sobre algo que desconhecia em absoluto! Conhecia Vermeer e Rembrant , mas nunca tinha ouvido falar de Gerard Pietersz van Zyl. Estamos sempre a aprender, e por muito que vivêssemos nunca conseguiríamos saber tudo.
    Gosto da estampa bem como da moldura. Quanto ao lugar aonde irá ficar, certamente arranjará um cantinho, ou então uma outra opção é fazer "rotação" das peças. Por exemplo, no Natal dá destaque aos Meninos Jesus, na Páscoa às crucificações, e assim por diante. Se lhe servir de consolo, eu também tenho agorafobia...e faz-me imensa impressão quando vejo casas sem nada pendurado nas paredes. Parecem-me casas sem alma.

    Abraço

    Alexandra Roldão

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    1. Cara Alexandra

      Pelo que eu percebi este Gerard Pietersz van Zyl era um pintor muito apreciado na época. Pintava umas coisas certinhas, pouco inovadoras, politicamente correctas, que não chateavam ninguém. Mas, como acontece muitas vezes na história, esses pintores apreciados pela boa sociedade, com o tempo caem no esquecimento. Ficam para a história, os outros como Rembrandt, que chocaram os seus contemporâneos pelo seu génio e inovação.

      Mas, para gente como nós, que colecciona o que os outros deitam fora, também nos dá prazer ter em casa esses pintores, que foram famosos na altura e que hoje são ignorados pelos manuais de arte.

      Abraços

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  3. Onde é que encontra estes cantos para as molduras? Ou a moldura é mesmo original?
    Tenho duas gravuras de Leiria do séc.XIX com estas moldutas e no Natal ofereci ao meu marido uma serigrafia de Leiria no séc. XVIII mas vi-me grega para conseguir que me fizessem uma imitação das mesmas... Daí a minha curiosidade pois gosto muito da sua simplicidade e beleza e gostava de ter mais.
    Parabéns pelo aniversário e pela prenda. É bom ter amigos assim!
    Cumprimemntos

    Ana Silva

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    1. Cara Ana Silva

      O Manel e eu temos o hábito de ir comprando nas feiras de velharias estas molduras. Deitamos fora as estampas, normalmente reproduções de mau gosto do século XX e guardamo-las para encaixilhar as boas gravuras antigas. Foi o que aqui aconteceu. Reutilizou-se uma moldura que o Manuel tinha em armazém.

      Um abraço

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Luis, já sabe como aprecio este seu fabuloso trabalho de pesquisa, os meandros onde se mete com cliques sucessivos, até encontrar resposta para os mistérios que pretende resolver.
    Assim acabou por devolver esta belíssima gravura ao seu contexto original - de que foi fisicamente arrancada e depois remetida a um quase anonimato por gente ignorante e insensível a estas coisas, truncando-lhe até a legenda!
    Não haja dúvida que temos hoje um acesso incrível à informação e à imagem de tesouros musealizados através da disponibilização on line de importantes acervos das melhores bibliotecas e museus do mundo. Isto, sim, é democratizar a cultura!
    E fico a lamentar o quanto esse trabalho ainda está atrasado nas nossas instituições... e cada vez há menos pessoal, menos verbas... Decididamente, o dinheiro, por cá, não tem andado nos sítios certos...
    Enfim, mas esta foi realmente uma bela prenda que recebeu do Manel!
    Bjs.

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  6. Maria Andrade

    Concordo inteiramente consigo. A democratização da cultura tem passado pela disponibilização em linha de imagens e informações dos bens culturais de cada país, o que permite a gente como nós acesso rápido a informações, que no passado só eram possíveis de encontrar mediante investigações complexas.

    Por cá a Biblioteca Nacional já fez um trabalho notável e pioneiro na digitalização de livros e estampas, mas dão primazia às obras impresas em Portugal, como é lógico. A Torre do Tombo arrancou há uns poucos anos com a digitalização em massa de documentos. o Monumentos.pt também é um bom site. Quanto aos museus portugueses continuam atrasados e o matriz.net embora seja idiscutivelmente útil, o motor de busca é uma porcaria, a identificação das obras deixa muito a desejar e muitas peças não constam pura e simplesmente do matriz.

    Bjos

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  7. Mesmo que as coisas andem mais ou menos organizadas, dependendo do investimento que as instituições fazem na publicações do seu acervo, o certo é que há anos atrás este trabalho que, aliás, fazes na perfeição, seria um quebra cabeças, sobretudo para quem não tem tempo nem dinheiro para viajar e fazer pesquisa nos respetivos países.
    À distância de um clic temos o mundo debaixo da nossa mão. Foi um progresso tremendo no mundo da difusão da cultura.
    Abençoada a Santa Internet!
    Conseguir encontrar toda esta informação é necessário saber onde procurar e como fazê-lo, e para isso, ter a profissão que tens, torna-se numa mais valia.
    Ainda bem, pois todos nós lucramos com isso, eu que o diga!
    Em vez de termos uma imagem perdida numa das paredes, passamos a saber, quanto mais não seja, de que se trata e de onde o "bárbaro" arrancou a folha.
    Esta Madame Vigée-Le Brun é uma das artistas que mais considero deste período, sendo igualmente uma mulher muito bonita.
    Dona de uma vasta obra, a qual lhe serviu para ganhar dinheiro, pois não possuía fortuna nem família abastada, sendo assim uma artista algo comercial, mas com um domínio da cor absolutamente rigoroso.
    Dominava igualmente a técnica fazendo algumas tentativas de originalidade, no entanto, sendo uma pintora de corte, não tinha grandes hipóteses de manobra neste campo.
    Em suma, é considerada como uma artista competente, sendo uma das preferidas da malograda Maria Antonieta, da qual fez inúmeros retratos e com a qual travou relações que se estenderam para lá das estritamente profissionais.
    Trabalhou para quase todas as cortes europeias, sobretudo no estilo do retrato, durante o Terror estabeleceu-se em Inglaterra e regressou a França no 1º império, produzindo alguns retratos para a própria família de Napoleão.
    Deixou um livro de memórias publicado, que, não sendo nenhuma obra prima da literatura, transformou-se num documento precioso para a caraterização da vida de corte durante o reinado de Luís XVI.
    Devo salientar, como se não se tivesse já notado (lol), que nutro uma simpatia muito especial por esta pintora
    Manel

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  8. Manel

    Também partilho a mesma simpatia que tu pela obra da Madame Vigée-Le Brun. Representa muito bem o espírito do estilo Luís XVI, o prazer da sedução. Aliás, introduzi o seu nome aqui no post de uma foma um bocadinho forçada, já que a sua relação com esta estampa é indirecta. Mas a história é assim, começamos numa estampa, passamos para um personagem histórico, depois para o outro e em três parágrafos já mudámos de século duas vezes. E depois achei que o retrato da Baronesa de Crussol ia muito bem com o tema musical do post e também não podia deixar de colocar o seu auto-retrato, que é das coisas mais charmosas que conheço.

    De facto Madame Vigée-Le Brun pintou gente da melhor aristocracia europeia, apesar das suas origens humildes. A este propósito conta-se um episódio, que revela bem como esta pintora estava habituada a lidar com os príncipes de sangue russos, austríacos, ingleses, italianos ou franceses. Quando regressou a França, após o período do Terror, pintou Caroline Murat, a irmã de Napoleão, mas as sessões não correram bem. Madame Vigée-Le Brun terá dito desta rainha "parvenue", ou nova rica como dizemos em português, o seguinte:
    - J’ai peint de véritables princesses qui ne m’ont jamais tourmentée et ne m’ont pas fait attendre.

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