Recentemente, depois de ter lido o meu post sobre os pais do céu algarvios e os seus nichos, um senhor espanhol, seguidor deste blog, enviou-me um Cristo muito ingénuo, comprado numa feira de velharias do Algarve, que me encantou e de imediato lhe pedi autorização para partilha-lho convosco. Este Cristo, de tão tosco, que é, que quase parece uma escultura românica, serviu-me também para voltar a reflectir sobre a curiosa colocação nas casas algarvias dos altares onde se punham estes cristos.
Um típico nicho nas casas algarvias onde se colocavam os Pais do Céu |
Foi o Zé Júlio, que me deu a conhecer os nichos onde estas esculturas eram colocadas nas casas populares algarvias. Os dois interrogámo-nos muitas vezes acerca das razões da localização destes pequenos altares, logo na primeira divisão pela qual se entrava na casa. Normalmente nas casas portuguesas, pelo menos nas nobres, o oratório é sempre situado na divisão mais privada, o mais longe possível da porta da rua. Por estas razões, o Zé Júlio e eu chegamos a aventar a hipótese, de que colocar o altar à vista de quem passava na rua e espreitava pela porta entreaberta, seria a forma de populações cristianizadas tardiamente e à força, afirmarem a sua ortodoxia.
Estes oratórios podem-se ver da rua |
Hoje já não penso assim. Creio que estes nichos onde se colocavam os pais do céu são antes a sobrevivência dos lararia romanos. O lararium era um pequeno altar sagrado da antiga casa romana onde se realizavam oferendas e orações aos deuses guardiães do lar (os lares) e onde também se fazia o culto dos antepassados. Nestas casas, o lararium situava-se normalmente no átrio, o primeiro pátio interior, que era a zona mais pública da habitação romana, onde se recebiam as visitas e os clientes, isto é, as pessoas dependentes do senhor romano. Havia depois um segundo pátio, o Peristilo, um espaço privado, que era exclusivamente reservado à vida familiar.
Lararium em Herculano. Foto Wikipedia |
Estes pequenos nichos algarvios, colocados logo à entrada de casa, contrariando a tendência portuguesa de situar o oratório na divisão mais reservada da habitação, serão talvez uma reminiscência do lararium romano. Aliás as imagens dos lararia de Herculano e Pompeia são obviamente semelhantes aos nichos dos pais do céu.
Lararium em Pompeia. Foto Wikipedia |
Resta-me agradecer ao Jesus ter-me permitido mostrar este cristo. Natural de Cádiz, o Jesus é um homem que vive rodeado de cristos e santos e que ao contrário de mim, é crente, pois segundo me escreveu, começa a ter a idade em que é mais fácil creer que descreer, uma frase bonita, revelando uma sensibilidade que me é cara.
Estimado Luis:
ResponderEliminarsoy yo quien debe agradecer esta hermosa entrada en su blog, y apenas sé cómo.
Saudações cordiais desde Cádiz, Espanha.
Cara Jesus
ResponderEliminarFoi um prazer. O seu Cristo é uma peça linda, intemporal.
Um abraço
Caro Luis
ResponderEliminar...linda intemporal e com uns traços vincadamente orientais. Até a maneira como foi esculpido o cabelo me remete para um modelo não europeu. Gostei de ler sobre o " lararium".
Um abraço e boa semana
Maria Paula
Luís, parece que este "pai do céu" lhe serviu de guia para uma hipótese muito plausível sobre a razão da localização dos nichos-oratórios nas casas algarvias. É verdade que, tanto quanto eu conheço, por aqui os oratórios e todos os santinhos de devoção doméstica eram colocados nos quartos das pessoas, locais de vivência mais íntima. Não conhecia estes nichos ou altares romanos, os tais lararia, mas realmente a semelhança com os algarvios é flagrante.
ResponderEliminarQuanto ao Cristo, é uma peça excecional de arte popular que o seu seguidor teve a sorte de encontrar no Algarve! Ao Luís lembrou os Cristos românicos e eu pensei logo nos que já vi em cruzes processionais dos séc. XII-XIII.
Mas também ainda saem figuras deste género das mãos dos oleiros de Barcelos, por exemplo.
Beijos
Maria Paula
ResponderEliminarÉ verdade, o cabelo não corresponde bem à forma tradicional das representações do Crucificado.
De facto, a representação de Cristo na Cruz foi variando ao longo de dois mil anos e através dessas diferenças é possível datar as peças. Por exemplo, até aos séculos XII ou XIII eram vulgares as representações do Cristo com os olhos abertos, como se ainda estivesse vivo. Só depois dessa época Jesus na Cruz é sempre representado como se estivesse morto ou moribundo.
Porém, para épocas recentes, como a deste Cristo, que será uma peça talvez com 100 ou 200 anos não há muita bibliografia que nos permita data-las e localiza-las no espaço.
Depois, também há aqui outro fenómeno, que não mencionei. A arte popular é muito conservadora, mantem-se agarrada às mesmas fórmulas durante centenas de anos.
Bjos e obrigado
Maria Andrade
ResponderEliminarDe facto a colocação de um oratório logo à entrada da cada parece inusitada no que nós julgamos ser o panorama geral das casas portuguesas. O oratório é sempre colocado na parte mais intíma da casa. Talvez este hábito algarvio seja pois uma reminiscência dos lararia romanos, que eram colocados logo à entrada das habitações. Mas, claro não tenho provas.
Tem toda a razão quantos aos cristos do Minho. Há uns vinte anos comprei com a minha ex-mulher um Cristo em barro, feito em Barcelos por uma artesã, uma tal Júlia Cota e era uma peça incrível. Podia ser uma coisa vinda dos confins da Idade Média. Mas...enfim, ficou a minha ex-mulher com ele.
A arte popular é muito conservadora e reflecte um o imobilismo rural. Por isso peças com cinquenta anos, parecem ter duzentos ou trezentos, aliás, já vimos esse fenómeno também na faiança.
Bjos
Gostei muito da tua informação sobre os lararia, e da sugestão que os nichos/oratórios algarvios podem estar associados àqueles.
ResponderEliminarÉ uma hipótese a ter em conta e que poderá mesmo ser muito provável que assim tenha acontecido.
Mas este expôr do sagrado a par do profano é uma tendência algo estranha às civilizações mais antigas, como a encontrada no Egito, Mesopotâmia, Creta ou mesmo Micenas.
No entanto, o culto aos mortos praticado pelos romanos é feito em grande pompa, e concretizava-se nos espaços mais públicos da casa (muitas vezes em torno dos átrios), dado o orgulho nos antepassados, pois os romanos eram muito ciosos da sua casta e dos seus progenitores, sobretudo quando estes eram provenientes das classes mais altas, ou, ventura suprema, quando, ao sangue aristocrático, se unia a distinção na arte da guerra.
As mulheres, apesar de terem uma vida recatada, longe de olhares públicos, possuíam uma noção férrea sobre a sua "gens", a qual defendiam contra ventos e marés, e tratavam de a enobrecer através de casamentos selecionados.
Aos mortos recentes de alta estirpe e valor, era-lhes feita a máscara funerária em cera a qual não só era carregada nas procissões pelos seus descendentes, como marca da sua ascendência nobre, como adornavam igualmente os santuários familiares e domésticos, ocupando posições de destaque nos lugares mais públicos da casa.
Esta procura da proteção dos espíritos dos antepassados (que eram chamados de "Penates"), fazia-se a par dos espíritos domésticos, os "lares" e do "genius", o duplo não corpóreo do indivíduo.
Enfim, fizeste com que me lembrasse de algumas das coisas que aprendi e que, para alinhavar de novo de forma correta, tive de me socorrer da Sta. Internet
Manel
Estes cultos que descreves tinham de facto um carácter semipúblico. A eles assistiam o senhor, toda a família, os escravos e ainda os clientes. Por isso estes altares situavam-se no primeiro pátio, isto é, o átrio, a zona mais pública da casa. Foi de facto esta coincidência, bem como o própria forma física que me levou a relacionar os lararia romanos com estes encantadores oratórios algarvios.
ResponderEliminarÉ sempre um risco relacionar o que ocorreu há mil e oitocentos ou mil e novecentos anos com casinhas construídas há 80 anos. Mas acredito nas permanências, no imobilismo do mundo rural, que conservou hábitos de um passado remoto.
um abraço
Gostei muito da análise do Manuel.
ResponderEliminarSempre liguei esses nichos aos deuses domésticos dos romanos.
Lembro-me que em casa da minha avó ela recebia a Sagrada Família (não sei de onde vinha, talvez da igreja) e tinha-a em sua casa uns dias com velas de azeite acesas, depois a Família partia para outra casa.
É um tema caro para mim e invejo o seu amigo que adquiriu este Cristo.
A Paixão é das coisas mais belas e mais terríveis. Talvez por isso tenha suscitado belas peças musicais.
Abraço e outro para o Manuel que me fez sorrir.:)
Que interessante Ana. Este seu comentário fez-me lembrar que, na verdade, sobretudo nos locais por onde andei em África, era mais visível nos menos populosos, as famílias lutavam entre elas (sobretudo as senhoras) para que esse pequeno oratório, propriedade da igreja local, e cuja partilha era decidida pelo pároco (quiçá ele aceitasse suborno!), ficasse determinado tempo em casa delas.
ResponderEliminarE, durante um certo tempo, lá estava aquela construção ambulante, em boa madeira africana, com as portas exteriores enceradas até quase à ofuscação, as quais se abriam revelando as pequenas figuras no seu interior, e sempre rodeada por uma miríade de velas acesas.
Eu achava piada ao facto porque me parecia uma casa miniatura com pequenos bonecos, e isso divertia-me. Ficava cheio de pena porque é que ele, o oratório, não chegava à minha casa, mas, quando entendi melhor, percebi que isso seria impossível, pois nenhum dos meus pais era religioso, no sentido ortodoxo do termo
Manel
Manuel,
ResponderEliminarOs meus pais também nunca tiveram esse pequeno oratório. Julgo pelo mesmo motivo.
Esteve em África. Qual? [Moçambique ou Angola]
Nunca estive em nenhuma delas e um dos meus sonhos era trabalhar uns tempos em Moçambique.
A sua descrição levou-me aos anos 60 e a tentar reconstruir esse espaço social.
Um abraço. :))
Sou moçambicano de gema.
ResponderEliminarUm dos meus avós já estava na Beira na virada do século.
Eu percorri o país do norte ao sul, vivendo mais tempo nesta última região.
Manel
Ana e Manel
ResponderEliminarAqui pelo Minho,num grande número de freguesias, a Sagrada Família, ainda anda de casa em casa. Na minha rua cruzo-me frequentemente com vizinhas minhas que vão entregar esse pequeno oratório a outra casa. Não faço a mais pequena idieia sobre o tempo de permanência em cada família.
Sou Moçambicana e vivo no Minho. Como muito bem diz a Maria Paula, a Sagrada Família ainda anda de casa em casa.
ResponderEliminarNeste momento, está na minha casa! Não porque seja religiosa no sentido ortodoxo da expressão, mas porque acho a tradição verdadeiramente deliciosa. Também eu me encanto com as luzes reflectidas e com a inocência kitch das figuras representadas.
Na minha zona, o "costume" é a Sagrada Família permanecer um dia e uma noite numa casa, sendo depois entregue na casa do vizinho.
Cristina
É muito interessante saber que este hábito ainda perdura.
ResponderEliminarFico feliz pelo facto.
Creio que nas regiões de Moçambique onde vivi a permanência do oratório era superior a este período de tempo que a Cristina refere.
Já passaram mais de quarenta anos desde que me lembro deste uso, mas creio recordar que a permanência do oratório era por volta das duas semanas, com exceção do mês de Maio, quando se rezava o terço pelas tardes, e a permanência do objeto em cada casa era de menor duração, mas sem certezas, pois já lá vão cerca de quatro décadas
Manel